Uma história do mar
Alguém que a noite esconde, aninhado num útero de tábuas e de sal, sob um céu que a escuridão permite que se acenda e brilhe, flutua na sombra, estendendo as linhas num mar sem horizontes.
Da lua, apenas um rumor, uma ténue linha, curva, embrião de crescente, que exalta o fulgor da cúpula: estrelas convictas, que revelam o mundo e desafiam os olhares; outras, fugazes, a hesitar a presença; algumas riscando o céu com poemas de luz; outras, agrupadas, solidárias, insinuando caminhos.
Nos encantos da noite, não cabem os olhares de quem o reparo é outro: apenas as linhas, e por vezes, para ajustes no rumo, a breve mirada às rosas que o céu exibe.
As linhas já repousam na fundura, e o dia ergue-se do transitório crepúsculo.
A bordo uma trégua de alba, a curta pausa, a acomodação do olhar.
Olhos agora de águas calmas, onde se jogam destinos e se lançaram linhas que o côncavo das mãos já acolhe.
Os braços revezam-se, com as mãos à altura do verdugo; braços longos, puxados pelas linhas e pelos anos, acima, abaixo, num vai vem de alcatruz.
No rosto, a fogueira do sol e do vento, que não de agora, que reina a quietude e o sol é verde.
Ventos de todos os mares e de todos os tempos, escritos de sal, e a fogueira dos sol a arder continuamente.
A puxada brusca prende a atenção e o olhara aguça-se. As mãos soletram a linguagem da linha, e os braços, longos de incontáveis fainas, num vai vem, agora à flor da água, capturando a esperança que o cavername espera.
Os remos abreviam a tensão das linhas e das mãos que as colhem.
O sol despiu os tons de cereja e suspendeu as tréguas, mas o mar não o devolve: sem viração que o lapide, vai permitindo o repouso do olhar. Cintilações, apenas no assomar das presas a teimar a fundura.
Navega o barco em berço de mercúrio no rumo das linhas, e o olhar a saber do redor: procura o horizonte da bóia, o que anuncia a linha e a distância, já que outro, apenas esta embaciada calmaria, que paira a preencher o que nos cerca.
Os braços prosseguem a faina, de novo à altura do verdugo; acima, abaixo, num vai vem de alcatruz. Linhas no côncavo das mãos, e os ollhos no horizonte do corcho, onde poisam agora. Poisam e demoram, que a surpresa cresce.
À volta, um sobressalto de água estranho e desusado. Um vulto escuro que emerge, e mergulha, e rodopia, gerando um turbilhão que envolve o suporte das linhas.
Prestes se decide a pausa, e o rumo das águas que se agitam.
Chegados, depressa tudo se oferece ao entendimento: o cabo que o flutuador sustém é um emaranhado de seios que prendem um debilitado golfinho, quase rendido à acidental grilheta; há um outro, que rodopia a inquietação à sua volta.
O cabo tê-lo-à colhido talvez por imprudente e curiosa consulta, as voltas constantes criaram seios que o foram cingindo; o desespero das piruetas consolidou o abraço; depois, a briga ansiosa, a inútil porfia, e por fim a rendição.
Do companheiro a solidária presença, o agitar das águas, o sinal que as transparências do verão revelaram, aos olhos de quem tem no mar as raízes da vida.
A prisioneira já quase não se debate, mas o olhar ilumina-se quando se cruza com os de bordo.
A súplica e a esperança, parecem ilustrar a mensagem que o companheiro subscreve com vistosa e estridente evolução.
Sossega, sossega, sossega, é a voz das carícias que Macário faz no torturado dorso.
Lesta a navalha, e ágil o punho que a manobra, no urgente propósito do resgate.
A liberdade, é o mar que se oferece de novo.
Exausta, hesita o movimento. Esteia-o o companheiro e o desejo de bordo, que o acompanha no silêncio, como se faz aos deslumbramentos da vida.
Ligeiros mas seguros os progressos sugerem o regresso à faina.
De novo os braços, longos, acima, abaixo, à altura do verdugo. A vida suspensa de linhas precárias, que os braços sustêm, e as mãos por vezes soletram; agitadas sílabas que traduzem a porfia da vida.
De sul insinuou-se um hálito de sal, respiração da lonjura, onde não cabem noivados de mar e de céu.
A aragem contesta a união, sopra-a nos seus etéreos fluidos, refaz horizontes e abranda a fogueira do rosto, que a saúda em pausa de astral olhar.
Um novo alento a incitar à faina, que prossegue em final de tarefa, no rumo das linhas que a noite ditou.
A diligência é agora de remate; de arrumos; de avaliação. Olha-se a safra, converte-se em pão, que o resto, são luxos de terrenas empresas.
À memória o episódio de há pouco, e um estranho bem estar, dos que se geram em insondável matriz e apenas acontecem.
Aprestava-se o regresso na placidez de alma conferida pela lembrança, e eis que um torvelinho de água envolve o barco.
A gratidão, expressa num abraço de espuma gerado pelo incessante movimento em torno do barco e festejada a dois com aparatosas acrobacias e estridente e alegre melodia.
Embaraçados pelo espanto, Macário e o seu companheiro de bordo trocam olhares que a emoção toma, e onde o orvalho se insinua.
Nenhum outro lugar, porventura nenhuma outra circunstância, traduziria melhor a festa da vida.