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Alvor,a terra e a ria

Alvor,a terra e a ria

19
Out24

Breve apontamento sobre as traineiras e as conserveiras

Joaquim Morais

 

 

  Meados do século vinte; estava-se em plena temporada do cerco, e o sol, a inaugurar o fogo e a cor, pintava barcos e suas redes, que num enorme leque e vogadas pelo corcho, se estendiam por bombordo. O mar, adormecido, repousava dos desmandos da nortada, que reinava nas tardes, soprando desabridos humores até ao dissuasor abismo da colorida chama do poente.

  A bordo, o guincho virava a arte devagar, que o mar, fundo, não despertava a inquietação da pedra. Com as argolas à borda e a aberta cerrada, era tempo de alar, de trazer à superfície a prateada esperança, alimentar os sonhos, e devolver ao barco a graça que o vazio da rede impede.

  Os braços e a voz em sintonia, arrancam-na do fundo acompanhados pelo grasnar intenso das gaivotas que enxameiam a pesada arte.

  Era assim na pesca do cerco, que, ainda sem mecânicas ajudas, recorria à cantoria do leva leva, para aligeirar a rede e o cansaço.

  As traineiras, que nas décadas de cinquenta e sessenta eram em número considerável, foram o suporte fundamental da indústria conserveira em Portimão, transformando a cidade num importante centro industrial e piscatório. O rio Arade era um soberbo quadro de cor e movimento, e as traineiras o símbolo e referência maior da cidade.

  Utilizavam a arte do cerco, e as capturas predominantes eram de sardinha cavala e carapau, sendo que as duas primeiras, constituíam a quase totalidade do trabalho das conserveiras.

  Sempre que na faina a sorte (elemento que à época era tido por muitos essencial) sorria aos mestres, a abundância de peixe transformava a cidade num quadro de benigno e pitoresco alvoroço.

  O cais era um andar de gente numa constante roda viva, e no percurso do pescado, da rede até à mesa, havia um grande número de famílias a assegurar a subsistência.

  O comércio era a vida e o cais fervilhava.

  Na lota vendia-se a a fatia maior, e nela estavam envolvidos grandes compradores, com comércio assegurado na cidade, e noutros mercados em vários pontos do país. As fábricas tinham também presentes na lota os seus representantes, que asseguravam nos leilões, a compra do peixe indispensável ao seu funcionamento.

  Em pleno cais havia o pequeno comércio, mais em conta, levado a cabo pelos próprios pescadores, que por vezes decidiam vender a parte que lhes cabia nas divisões de bordo, e outros que enchiam a canastra no descuido alheio, fazendo nela pingar a paciência e a sardinha.

  Na procura de uns e de outros, circulavam os muitos que queriam comprar.

  A chegada do pescado às conserveiras, fazia soar de imediato estridentes sirenes, para aviso e convocatória das operárias.. Residentes na cidade, e nas áreas circundantes mais ou menos distantes, depressa se punham a caminho para iniciarem o trabalho.

  Tendo todas as fábricas, idêntico modo de avisar e reunir o pessoal tornou-se necessário que cada um aprendesse a diferenciá-las pelo ouvido; não foi difícil, e até mesmo os que não tinham compromisso laboral com nenhuma delas, o aprenderam, ajudando a divulgar o sonoro recado.

  Escutados na aldeia os estridentes apitos, agitavam-se as envolvidas em apressar domésticos afazeres e promover preparos de caminhada; o caminho era longo, o tempo urgia e o vazio da bolsa clamava. Por vezes não era fácil, sobretudo para as que tinham permanentes exigências familiares, e o tempo mal chegava para o seu cumprimento. A vida dura, e o norte invariavelmente tormentoso, davam-lhes a força para ir sempre mais além.

  Palavra passada no lugar, depressa se juntavam e se punham estrada fora até à cidade, num ritual de cansaço, que a vida exigia mas o paleio suavizava.

  Das conserveiras, que durante décadas levaram no singular soar das suas sirenes uma mensagem de vitalidade a todo o concelho, nada resta.E eram muitas, talvez mais de duas dezenas, que ao longo das margens do Arade, deixaram na cidade a indelével marca duma actividade que a envolveu, porventura como nenhuma outra. Ficaram delas e nos lugares onde estavam implantadas, as características chaminés, quase todas com alados inquilinos, que por ironia são símbolos de anunciadas vidas, já não permitidas ao moribundo senhorio.

  Restou apenas o edifício da fábrica Feu Hermanos, transformado agora em museu municipal, que tem na representação detalhada de toda a laboração da indústria o foco principal.

  Actualmente, existe em funcionamento uma pequena unidade artesanal criada em 2015 no Parchal. Chama-se Conserveira do Arade, tem processos de fabrico próprios, e está certificada como produtora artesanal.

 

 

28
Set24

Francisco da Adelina

Joaquim Morais

 

  Quando acontecia surgirem duvidas na identificação dos que, tendo igual graça, e quando ausentes vinham à conversa, era costume associar ao nome, e como apelido, o nome das mães, ajudando com isso ao seu mais fácil reconhecimento. Adoptado ficaria a partir daí o informal aditamento e o seu uso, sem necessidade de administrativa formalização.

  Por idêntica razão foi o nome de Francisco acrescido do maternal apêndice, passando a ser aos olhos de todos e para o resto da vida, o fulano de sua mãe

 

  Francisco da Adelina foi sineiro, jornaleiro e pregoeiro; conheci-o durante a infância e a adolescência, e a sua exígua e indefesa figura suscitou-me sempre uma estranha ternura. Era uma espécie de criança muito velha, mas sem família, nem os costumados laços afectuosos que entre parentes se costumam desenvolver e nos confortam por sabê-lo.

 

  Andava descalço, com camisolas gastas que raramente inaugurou, e quase sempre em discordância com a estação; calças já roçadas noutros corpos, remendadas, enormes, presas na cintura com uma corda que passava pelas presilhas dum inexistente cinto, e com as dobras do que sobrava subindo nas breves pernas, deixando à vista uns pés minúsculos onde se acumulava sujidade sem limites.

 

  Conhecido pelos pregões que anos a fio vozeou pela aldeia fazendo chegar aos ouvidos de toda a gente as novidades que a ocasião tinha disponível, ou o anuncio de qualquer coisa que sumira, e que alguém, com a promessa de alvíssaras esperançava recuperar, Francisco tornou-se também popular e estimado pelos jornais que vendia, preenchidos das frescas notícias que se ofereciam aos poucos que eram capazes de os decifrar.

 

  A vida na terra também passava nessa altura pelo soar do sino, e Francisco, que o compromisso elegera para levar a toda a gente os seus sonantes recados, fazia-o sempre que religiosos imperativos assim o exigissem. Ao fim e ao cabo era o sineiro, e respondia perante a igreja a que o sino estava particularmente associado.

 

  Através dele convocava os fiéis para a oração, dizia do tempo, repicava festas, baptizados e casamentos, dobrava a morte em confrangedora dolência, e quando pairavam ameaças que a todos diziam respeito, tocava a rebate para que fosse decidida solidária e adequada resposta.

 

  Já não se ouvem os sinos; já não há quem os toque nem quem os entenda.

 

  Francisco viveu numa pequena casa sem janelas, escura e funda, com a luz que a porta consentia incapaz de refrear o sombrio quadro da sua abreviada dimensão.

  Tinha uma companheira, a “ti zorrinha” com quem partilhava o nada da sua vida, e de quem recebia coisa nenhuma, preenchendo-se mutuamente com o vazio decorrente das suas acanhadas existências.

 

 

21
Set24

Fernando (farinha), a metáfora do mar

Joaquim Morais

 

  Ao mar se fez ainda verde, que outro, por raro, difícil seria, sendo como era em tons de azul a oferta que soía.

  O pão sabia a sal, na mesa de quase todos.

 

  Fernando, que a terra decidiu pelo canto, alcunhar de “farinha”, foi bem maior que o contido nesse redutor apelido. Por ele passava apenas a voz, que, mediana no desempenho, nunca foi o melhor caminho para chegarmos ao entendimento da sua real valia.

 

  O mar e a faina navegaram-no como a nenhum outro, deixando nele relevante marca, e dele fazendo especial discípulo.

 

 E foi nessa tarefa de convocá-los muito para lá das suas fronteiras, fazendo deles menção nas mais improváveis circunstâncias, que Fernando revelou invulgar e precioso talento.

 

  Pouco conhecida dos que escolheram terrenos ofícios, a terminologia náutica marca a diferença para tudo o resto que a palavra contempla. Dizer do mar, dos ventos, do navegar, dos barcos, das artes de pesca e de tudo o mais que envolve a relação, significa para os que nela decidem viver, a aprendizagem dum património linguístico fascinante, que é parte fundamental da nossa tradição marítima, e que resulta da necessidade de entendimento sem equívocos em plena faina.

 

  Pela ria chegou ao mar aberto; nele semeou desmedidas linhas de canseira, que consumiram o olhar e acenderam a noite e a esperança. Puxou redes em chachorros, secadas e traineiras, e em latitudes pouco ajustadas à sua carnadura, foi-lhe imposto em precário batel, um mar feito de novos imprevistos.

  Do mar e do que lhe estava associado veio toda a matéria para o poema da sua vida; só tinha que o recitar ao mundo.

 

  Da bacalhoeira vivência, e de sua lavra, cantou os versos que a diziam: singelo retrato da exigência da faina, dos benefícios de bem cumprir as tarefas, da vida a bordo, dos constrangimentos, do raro e passageiro ócio, dos proveitos que a arte de pescar trazia aos mais capazes. e tudo o mais que, não tendo sido dito, podermos supor acontecer a quem vivia durante meses a fio no reduzido espaço dum navio que a modernidade não consente, cercado de céu e mar férteis em diferentes e inesperadas ameaças

 

  De Portimão, compôs a imagem da pitoresca azáfama do seu cais nas décadas de cinquenta e sessenta, e levou-a pelo canto a toda a gente. Descrição fiel, que a linguagem coloquial realça, e a alusão a recorrentes e curiosos factos se revela particularmente interessante para os que a vida obrigou ao convívio com essa alvoroçada realidade.

 

  Por imperativo de saúde fez uma pequena cirurgia no hospital de Portimão, fazendo dela posterior relato, num desfiar de vocabulário próprio da faina, engendrando para alguns procedimentos cirúrgicos da intervenção e para o ambiente e logística do bloco operatório, invulgares imagens alegóricas que a sua imaginação ia ditando.

  Esta linguagem não era de fácil entendimento para os que viviam à margem do seu mundo, sendo no entanto notório, que a sua descodificação surpreendia sempre todos pela curiosa e divertida originalidade.

 

  São incontáveis, e muitos deles registados pela memória dos que viviam atentos ao seu delicioso discorrer, os exemplos que o dia a dia e as conversas de ocasião que o envolviam, nos ofereciam.

 

  Tinha um olhar algo ausente e apagado, mas sempre que na sua expressão o assomava demorado e maroto, fitando enviesado o seu interlocutor com brejeiro sorriso e pausada atitude, era quase certo que o mar o tomara e que a maré cheia do seu pulsar havia de inundar de versos o mundo à sua volta.

 

  Fernando foi metáfora do mar em toda a sua vida, e soube dizê-lo com a autenticidade que apenas os eleitos, (poucos), a ele vinculados por rara afeição e que dele se fizeram fiéis seguidores e intérpretes, ousaram conseguir.

 

 

15
Set24

OUTROS ENCONTROS

Joaquim Morais

 

 

  A rua foi sempre o sítio primeiro. Ponto de encontro nascido do desejo comum de dizer e de escutar, onde cada um urdia pela fala e a seu jeito, a singela malha de ocorrências que os dias teciam.

  Formavam-se grupos mais ou menos numerosos, em função do interesse das conversas, e da vocação dos envolvidos para prender a atenção e o ouvido. Predominavam nos lugares que o hábito elegia, e traziam à cena pela palavra o mundo da aldeia.

 

  Quando o tempo esfriava e a rua esmorecia, algumas vizinhas mais chegadas, juntavam-se após o jantar na casa de uma delas para conviverem. O hábito, socialmente exemplar, criou raízes, generalizou-se, e fez da terra um enorme centro de convívio, onde se suavizavam tensões, abrindo novos e divertidos caminhos, que achanavam o mar agitado do dia dia. Distinguiram-se mulheres, frescas no dizer, que chalaceavam os assuntos mais sérios e delicados, alargando as fronteiras da graça, e derrubando velhos e resistentes tabus.

  Para além da palavra, esses encontros eram férteis na produção de trabalhos, que cada uma decidia pelo particular saber, pela necessidade, ou apenas pelo prazer do desempenho.

  Tricotando, bordando, costurando ou fazendo empreita, e com um fundo de palavras que invariavelmente semeavam o riso e a boa disposição, foram serões inesquecíveis, que perduraram e fizeram-se exemplos bem sucedidos, da arte de conviver.

 

  Sempre que o verão trazia pela mão do levante a canícula africana, as noites expulsavam toda a gente de casa.

  Bancos rasteiros e cadeiras de atabua preenchiam o redor das portas e davam poiso às gentes, que com pachouchadas e dichotes convertiam a noite em prolongada e divertida tertúlia. Era assim por toda a aldeia quando o sueste se instalava.

 

            (Que vento é o sueste, que ainda de véspera fazia turvar a água dos poços?)

 

  É o mais desalmado de todos os ventos. Sopro rebelde, porventura nascido das angústias do tempo, faz do mar raivoso torvelinho, devorador de pacíficas areias. Entre o casario, remoinha a sujeira em nuvens que ferem o olhar, e que o cansaço há-de juntar, rasteiras, pelos recantos de ruas e terreiros.

  Repousa dos desmandos na frouxidão do sol, e, cúmplice da inquietante mormaceira converte a noite em palco caótico de sonhos e vigílias.

  Traz nas vagas as flores que o deserto secou, e faz assomar a lembrança dum trono anunciado por improvável bruma.

 

 

  Também na oficina do barbeiro se formavam animados grupos: por lá passavam os que, dedicados à notícia aí exercitavam, levando e trazendo, exultando quando percebiam relevante assunto, e, ufanos, rumavam a outros portos, sempre com a palavra pronta e o ouvido desperto.

  Alguns havia que lá iam pelos jornais. Uns, incapazes desde sempre de decifrar o mistério das letras, alimentavam a esperança que outros, nelas entendidos e dispostos a isso, lhes fizesse chegar o que ia acontecendo noutros lados. Falava-se de tudo no barbeiro, mas o futebol e o clubismo estavam sempre presentes. As tribos, envolviam-se em acesas disputas vozeirando argumentos e reclamando para as suas cores todas as razões do mundo.

 

  As tabernas e as mercearias também eram lugares de encontro.

  Nas mercearias predominavam as mulheres, que, por doméstico imperativo, abreviavam o tempo, aflorando assuntos para paleio futuro noutros palcos e fazendo prevalecer sempre o primado da casa e da família. Quando no entanto se conjugassem local e ocasião, e a razão aplaudisse, a veia oratória diria de si sem delongas nem papas na língua.

 

  Nas tabernas, onde apenas os homens tinham assento, (excepção feita à mulher do taberneiro,) o vinho era rei, prevalecendo pelo mérito dos seus excepcionais atributos.

 

                                                            (  A razão do vinho )

 

  Para lá da terra habitada, as cercanias de Alvor possuíam o tesouro das vinhas. As areias onde cresciam, estendiam-se, sobranceiras ao mar, até às arribas que as guarneciam e rematavam.

  O sol inteiro, a terra arenosa e as contidas águas, ofereciam às uvas características únicas que explicavam a valia da pinga.

As adegas abundavam apesar da pequenez da terra, e porque chegava longe a excelência do vinho, todas não eram muitas, para acolher os que vinham comungar da arte de beber o prazer do vinho.

 

 

  Apesar da realeza do vinho, era na assembleia dos súbditos que residia a matéria que aqui me trouxe. Os da terra e os outros, que a partir do S. Martinho ansiavam por traduzir o saibo das novas colheitas e opinar sobre elas, vinham numerosos. Discorriam sobre os atributos do néctar que a competência dos homens fabricara, e tropeçavam quase sempre na intenção de eleger favoritos. A experiência e o saber dos envolvidos na arte, acabava sempre por determinar uma qualidade transversal a toda a produção, diferindo apenas em particularidades, próprias da abordagem de cada um.

  O mérito, abraçava por isso todos de igual modo.

 

  O rumo e o tom das conversas nesses lugares era diverso. Com uma clientela de homens onde predominavam os que faziam do mar o seu modo de vida, era da dura arte de nele se afirmar e sobreviver que falavam; e faziam-no com imagens sonoras recheadas de palavras e expressões muitas vezes difíceis de entender, sobretudo pelos que, distantes dessa curiosa maneira de dizer, acabavam muitas vezes enredados na teia verbal daí resultante.

  A alteração das falas decorrente das prazenteiras libações punha à vista efeitos diversos: se por vezes acontecia que alguns mais tímidos, se faziam ouvir com tom e euforia desusados, outros havia habitualmente alegres, que eram repassados por estranha e comovente tristeza. Era no entanto mais comum, que em todas as tabernas o tom de voz subisse, e que a animação se instalasse.

  Às vezes, o convívio também trazia a surpresa do canto, que, nas tabernas, tinha no fado a sua expressão mais desejada; assim quando entre a clientela, marcava presença alguém agraciado pelo dom, era quase certo, que, a dada altura, o fado com toda a sua aura de nostalgia e sentimento, brindaria todos os presentes pela voz, pelo silêncio e pelas emoções que em cada um iria despertar.

  Preenchida assim de todos os pressupostos que a faziam, dir-se-ia que a taberna se cumpria.

 

  De entre o que era costume e para lá do que já foi dito, será interessante referir que nesta terra também se contavam histórias. Naturalmente associadas a tranquilos serões e outros convívios, nada impediria de acontecer, se oportuna fosse, diferente ocasião.

  Não era uma terra de letrados; pouco favorecidos pela época e pelas circunstâncias, foram quase todos vítimas do analfabetismo que o regime semeava.

  A tradição oral colmatara a ausência de livros e leitores, e, na continuidade, proclamou o conto como elemento essencial na formatação da memória e da consciência colectiva. Alguns contadores eram particularmente dotados, fazendo com as suas narrativas as delícias de crianças e adultos.

 

  Em criança, ouvi do meu avô materno alguns relatos, que, ora me prendiam pelo insinuante enredo, ora me espantavam pela estranheza, suscitando-me também por vezes, incómodo receio; tenho da feição bizarra de algumas dessas historietas, vaga memória.

  Apesar do seu ar habitualmente severo e até mesmo pouco simpático, meu avô transfigurava-se como narrador, pondo todo o seu empenho nesse papel e representando razoavelmente as figuras das histórias.

 

  As aldeias como Alvor, tinham nos anos cinquenta e sessenta do século passado hábitos sociais interessantes que em termos gerais tentei trazer aqui.

  Não pretendendo ser cansativo na abordagem, decidi fazê-lo pela rama, esperando mesmo assim ter avivado memórias e provocado alguns sorrisos.

 

  A rede social era concreta e genuína e acontecia pela espontânea necessidade de afirmar pelo encontro, a nossa humanidade; sem o outro não existimos; e todos também somos o outro.

30
Jul22

os pescadores e os deuses

Joaquim Morais

 

  Do alto das serras do redor, desceram ribeiras com sonhos mareantes. Talharam na terra novos rumos; fizeram-se ria; e abriram as portas do mar aos que na imensidão tinham o destino e a razão.

 

  No lugar, o azul intenso que do sul acenava marulhando na praia as vozes da lonjura, preenchia as vontades e dizia-se caminho. Quase nada, para além dessa sedutora via.

 

   Entre a terra e o azul profundo, a mansidão da ria; uma largueza de águas vivas respiradas pelo vigor da lua; o lugar da iniciação, onde o aprender rimava com o ser; o repousado ensaio para a peça por vezes dolorosa, que os homens decidiam levar à cena em mar aberto.

 

  Porventura fascinados pelo canto e pela cor, ou porque a terra pouco ou nada tinha para lhes dar, foram muitos os que se fizeram pescadores. Viveram o desconforto da faina em precários berços de tábuas, ao sabor dos elementos, e navegando as emoções que as circunstâncias urdiam.

 

  Aos barcos, que o tempo decidia, impelia-os a força de vigorosos braços. Forjados no calor da faina, e temperados por bátegas de sal governadas pelo vento, tinham nas mãos o desenho das incontáveis remadas, escrevendo rotas que as estrelas ditavam. Quando reinavam sopros bonançosos, festejavam-se as tréguas, emprenhavam-se velas, e nasciam na proa dos botes, risadas de alabastro que os olhares celebravam.

 

  Porque era dura a faina, e por vezes violenta a escrita do mar, os homens chegavam-se aos deuses: diziam-no nas vistosas amuras das pequenas embarcações, inscrevendo nelas os eleitos da sua devoção. Consagrados pelo culto e sustentados pela crença, era suposto estarem a seu lado, quando tivessem que afrontar o aperto ou a má sorte.

 

  No tempo, e quando ao largo medravam ameaçadoras sombras e crescia a incerteza, algumas mulheres rezavam na praia, alternando os olhares entre o céu e o mar revolto

 

 

  Pelos meus avós, ambos pescadores, e por todos os que trocaram a relativa e provável firmeza terrena, pelo exíguo espaço dum barco a vogar a inquietação e o imprevisto, fica, mais uma vez, a notícia dum tempo e dum lugar onde os milagres dos homens eram obra dos deuses.

 

11
Jul22

AS SALGADEIRAS

Joaquim Morais

salgadeira.jpg

 

 

 

 

 

 

                                                                       

 

 

 

 

 

 

  A aldeia, como quase todas as do seu tempo, convidava ao mosquedo. Era o resultado de comportamentos descuidados, e da ausência de regras de higiene pública: a uma lixeira colectiva, a céu aberto, sem qualquer tratamento e não muito distante do casario, juntavam-se em muitos quintais pequenas compostagens, também ao ar livre, sem critérios de higiene na selecção e na preparação dos resíduos, que continham frequentemente restos de fácil putrefacção. Num cenário de evidente ausência de cuidados sanitários, era inevitável que as moscas reinassem, tornando-se difícil acabar com o seu consistente protagonismo.

 

 

  Pestilentas e atrevidas, eram um desafio permanente para os que recusavam ser alvo das suas intermináveis investidas, e porto para as escalas do seu voejar.

  Nalgumas casas, as portas que davam acesso aos quintais, alguns deles a funcionar como excelentes locais de incubação, estavam protegidas com fitas coloridas, que drapejavam ao gesto e ao vento, mas evitavam em certa medida, o acesso destes e doutros insectos voadores. O mesmo processo era utilizado nalguns estabelecimentos comerciais. Nas casas de habitação, era costume as pessoas enxotá-las várias vezes ao dia, agitando panos ou toalhas, que as encaminhavam de divisão em divisão, até à rua.

  Não existindo diligência publica estruturada para atalhar a sua disseminação, ficava ao critério daqueles a quem importava o desconforto, a improvisação de medidas que o minorasse.

 

 

  Vinham de todos os lados, atraídas pelo odor açucarado das uvas. Esvoaçavam o desejo de sugar, seguindo o rasto meloso deixado no caminho das adegas, e pairavam nos lagares, teimando nos homens, os braços e os rostos peganhentos do labor da pisada. Sem bracejar que as demovesse instalavam-se no pasto de doçura em que o lugar se convertera, e por lá haviam de ficar até à consumação do néctar que as enormes pipas hospedavam.

 

  As adegas eram, pelo seu adocicado e aromático ambiente, locais de excelência para a permanência destes insectos, e capazes de atraí-los de grandes distâncias. Por tudo isto, e pela aparente inevitabilidade da sua presença, houve quem nelas engendrasse maneira de a manter em níveis aceitáveis.

  A natureza da actividade por um lado, e a qualidade dos vinhos produzidos por outro, convidavam não só as moscas, mas também os inúmeros discípulos de Baco, que, no tempo devido, estavam sempre presentes para festivas e preciosas libações. Não sendo inconciliável a presença dos insectos com o desfrutar dos néctares, o exagero do seu assédio acabava por importunar.

 

  Os edifícios onde as tabernas estavam instaladas, eram de média dimensão, e alguns tinham na divisão do atendimento aos clientes, estupendos tectos com estruturas baseadas em robustas armações de asnaria, que a tradição acolhia e recomendava.

  Enquanto criança, quase todos os dias e a pedido do meu pai, deslocava-me às adegas que abundavam em Alvor nessa altura, algumas bem perto do lugar onde morava. Os mandados destinavam-se a trazer à mesa das refeições, o vinho que ele tanto apreciava. Nessas andanças de mandado e quando o atendimento demorava, o olhar vagueava no redor fixando as evidências que nem sempre iam ao encontro do entender dos anos. Bem à vista, suspensos do vigamento inferior das asnas, alguns conjuntos de ramos de um arbusto desconhecido para mim, pendiam criteriosamente amarrados e distanciados uns dos outros. Não entendi o propósito, nem a curiosidade se moveu para deslindá-lo.

   O esclarecimento chegou já em adulto, quando, em amena conversa se lembravam tempos de adegas buliçosas, animadas pelo prazer do vinho que o S. Martinho renovava em primaveras de circunstância, feitas da sua vibrante, aromática e cristalina condição.

 

   Eram salgadeiras o que as traves continham suspensas da sua imobilidade. Um arbusto comum nos sapais que circundavam a ria, e que alguém decidiu usar em desfavor do mosquedo.

   A noite interrompia nas adegas a azáfama das moscas. Era tempo de se recolherem e abrigarem, até que o dia rompesse e retomada fosse a sua maçadora existência. Eleitas dormitório, as salgadeiras eram cobertas por revoadas de moscas mal caía a noite, transformando a sua natureza vegetal em alado e disforme pendente.

  Encerrada a loja, seguia-se o tratamento ao mosqueiro que repousava do labor do dia: munido duma saca de serapilheira de boca larga, o taberneiro subia cuidadosamente e em silêncio por uma escada até junto à salgadeira inundada de moscas, e, com um movimento rápido e preciso, introduzia a salgadeira na saca, segurando e fechando o ramo pela base; acto contínuo, desatava o nó que prendia o ramo à trave e descia com ele bem preso e a saca bem cingida à sua volta. Feita a captura, restava eliminá-las. Nada mais simples, apesar da sua feição um tanto ou quanto bizarra: com a saca a envolver o ramo e a prendê-lo com firmeza, fustigava com ele o chão do quintal ou da rua, até que não houvesse rumor ou sinal de mosca viva.  

  A seguir era devolver a nudez ao ramo, varrer o mosquedo, e voltar a pendurar nas vigas das bonitas asnas, essa traiçoeira alcova.

 

  E assim se cumpria com êxito, uma estratégia de controlo sanitário pouco ortodoxa, mas de razoável eficácia.

 

 

26
Jun22

A AROEIRA

Joaquim Morais

 

                                                                

              

                                              

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                                                                             A AROEIRA

   Era o arbusto preferido das felosas, que saltitavam a aparente inquietação no aromático entrelaçado dos seus ramos: buscavam drupas, as bagas que o amadurecimento tingia de negro, e que eram ao fim e ao cabo, a razão primeira para a cíclica aventura migratória que a sobrevivência determinava.

  Os coelhos escolhiam-nas, para junto aos troncos fortes que as enraizavam, escavarem labirínticas tocas, enquanto as perdizes urdiam o futuro abrigadas pela sua cerrada e frondosa copa.

   Parte activa do eco-sistema a que pertencia, e inserida na paisagem terrena com correspondente relevância paisagística, a aroeira havia de revelar inesperado préstimo em aquático meio, levada pela mão do homem que nele tinha o seu modo de vida.

  E que melhor lugar do que a ria de Alvor, para protagonizar uma nova e inesperada valia, e garantir um desempenho duplamente benéfico, apesar da aparente discordância elementar.

 

  A ria é um desafio permanente a quem a ousar. A sua linguagem nem sempre explícita, seduz apenas os que a virtude arregimentou para a aprendizagem, tornando-os confidentes duma natureza que tem muitas vezes no improvável, a porta de entrada da sua revelação. Privilegiados e dedicados ao seu entendimento, talvez tenham sido estes, que nas marés e no tempo certos, pela experimentação, ou pela constatação de que um fortuito ramo de árvore trazido pela corrente e depositado em acessível remanso era abrigo habitual de chocos, terão inaugurado um novo meio de captura destes saborosos cefalópodes.

  Restava encontrar nos campos em redor, a árvore ou arbusto que melhor poderia servir para o efeito. De ar frondoso, copa cerrada, resistente e aparentemente capaz para integrar e compor o novo habitat, a aroeira parecia ajustar-se perfeitamente ao que dela se pretendia.

 

  Para mantê-las submersas, e resistir aos ventos de água soprados pelas marés, dotaram-nas de raízes de pedra. Passariam a vogar a dinâmica das águas oceânicas, na medida dos cabos que as prendiam.

   Eram colocadas em lugar acessível pela baixa mar, mas de maneira a ficarem completamente submersas, mesmo em marés de vazantes extremas.

  Com a ria escoada, nas manhãs calmas e de águas transparentes, o pescador fazia o circuito das aroeiras pelos baixios que as continham, deslocando-se em silêncio e fazendo atenta e cuidadosa abordagem ao seu redor, e à parte que os ramos cobriam. Após contacto visual com os chocos, que, umas vezes enterrados na areia, noutras imobilizados mas prontos para escapar à mais pequena ameaça, redobravam-se os cuidados para não os afugentar. A sua captura era feita com fisgas artesanais fabricadas pelo ferreiro “Justo”, homem competente na arte da forja, e que trabalhava o ferro com mestria.

   Ainda muito jovem, também passei pela sua oficina, e tive o privilégio de o conhecer. Alguns dos bicheiros e fisgas, que na adolescência usei na pesca dos polvos nas praias rochosas de Alvor, foram feitas por esse bom homem e grande mestre. Com ele trabalhou também o sr Alfredo, conhecido por Alfredo “Nórinha”, figura popular, e profissional competente na mesma arte.

 

   À natureza cabe estabelecer relações entre os elos da cadeia, para que a harmonia do sistema prevaleça. Ao homem cabe tirar dela vantagens em benefício próprio, com a sensatez necessária à salvaguarda do seu equlíbrio.

 

   É claro que não veio mal ao mundo pela aroeira, e que, muito pelo contrário, até ajudou: os novos habitats criados passaram a funcionar como banco de ovas, e a ria, porta aberta para o mar, garantiu e acentuou a renovação da espécie no seu seio, contribuindo também com ajuda de relevo para o repovoamento oceânico; acresceu a tudo isto, uma pequena achega ao ganha pão do pescador.

 

 

 

   No meio piscatório a aroeira era conhecida por dároeira. Nem sempre as palavras do lugar coincidiam com as do manual. Talvez particularidades próprias do meio social, e ou cultural, porventura do aparelho vocal, tenham levado à junção da consoante d à vogal inicial, para mais comodidade no dizer.

  Por esta ou aquela razão, acontecia na comunidade serem retocadas palavras, principalmente entre os pescadores.

       

 

                                                                              

 

 

 



 

 

 

                                                                              

 

 

 

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