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Alvor,a terra e a ria

Alvor,a terra e a ria

17
Ago23

Carlos Nicolau Jaques, o pescador e o homem

Joaquim Morais

 

 

 

 

  Chamava-se Carlos Nicolau Jaques, mas na terra onde sempre viveu, se alguém precisasse de citá-lo para dele dizer o que a ocasião exigisse, poucos o reconheceriam no nome com que o baptismo o designara para a vida.

 

  A alcunha de “pão e metade” relegou os apelidos primeiros para o papel das raríssimas formalidades, e juntou-se ao nome, para colocá-lo sem reservas nas bocas do mundo.

  É bem possível que Carlos ou familiar que o antecedeu, tenha, por dito, atitude, ou procedimento usado acerca desse popular alimento na medida referida, dado a alguém, pretexto para esse improvável epíteto. O rótulo acompanhou-o enquanto permaneceu entre nós, e esvaiu-se nas gerações que se seguiram, pouco ou nada motivadas para as coisas do passado.

 

  Pescador no tempo que o vigor lhe consentiu, Carlos foi também conhecido pela sua paixão pelo cinema e pelo particular entusiasmo que lhe suscitavam os filmes de aventuras.

  Facilmente contagiado pelo desenrolar da acção, comentava com gestos e falas as cenas que mais o inflamavam, desfiando por elas um agitado rosário de emoções.

 

  Baixo, dotado duma invulgar força, viu-o sempre a abrir as procissões nas festas religiosas, transportando o enorme pendão a que ninguém mais se atrevia: adereço cujo peso considerável aliado à grande superfície, tornava o seu transporte proeza para poucos. O enorme esforço percebia-se no rosto e no traje de Carlos, tomados sempre por abundante transpiração.

  Recordo na sua face a permanente escrita do sol, matizada pelo rosado que o esforço acendia, e coberta por esse extemporâneo e copioso orvalho.

 

  Chegaram-lhe bem cedo as propostas do mar: de sul acenava-lhe o mar inteiro; a oriente, para cumprir o arco que ilustrava o dia, erguia-se da flor das águas o sol, trazendo com ele a cor dos alvores levantinos; inundava de luz o oceano, até ao quadro da colorida decadência que os poentes celebravam e o abismo afundava.

 

  Com o olhar prenhe de fascinante azul e nas suas costas breve e ocupada terra, que outro senão o mar.

 

  Os galeões ocuparam parte das suas andanças pelo mar. As extensas e pesadas redes da faina iniciaram o molde e a têmpera da sua atlética figura; os elementos lapidaram-lhe o rosto; sopraram nele o engenho agreste da sua arte e deram-lhe o ar olímpico dos que merecem o sorriso da eternidade.

 

  Após o tempo da arte do cerco na pesca da sardinha a bordo dos galeões, Carlos decidiu-se pela pesca à linha, passando a desvendar pesqueiros e fundos , registando referências noturnas e diurnas que a vista lhe oferecia, e criando mapas dos lugares que a experimentação e a prática ia revelando frutuosos. Quando às coordenadas da memória se juntavam ventos, correntes e águas favoráveis, era quase certo o sucesso das pescarias.

 

  Tinha um pequeno barco a que chamou “pirata”; movia-o a força dos seus braços, e, quando bonançoso, o vento que, emprenhando a carangueja, fazia dele uma gaivota à flor da água.

 

  Solitário na pesca e parco de palavras, trazia no andar o desenho das vagas e no olhar a distância que a terra negava; nas mãos, escavadas pelo punho dos remos, encaixava na perfeição a vara do pendão, que os braços carregaram com firmeza anos a fio, perante a admiração de todos.

 

  Deixou-nos cedo; O coração, que as emoções foram consumindo ao longo da vida, privou-o delas aos sessenta e três anos

03
Jun23

As Fases da Ria

Joaquim Morais

 

 

 

 

  Esteve quase sempre longe dos olhares do mundo. Viam-na os que em seu redor se fixavam, e, sobretudo, os que nela decidiam modo de vida, ou dela faziam caminho para o largo.

Para esses, o olhar, essencialmente comprometido com o pão, raramente era animado por vislumbres contemplativos.

 

  De entre os que visitavam a terra que lhe deu o nome, eram poucos os que a afoiteza convocava para o desafio de percorrê-la. Ao tempo, o trajecto e o conforto raramente coincidentes, suscitava muitas vezes a hesitação, e abria quase sempre caminho para a recusa.

 

  Viam-na à distância, privada da inteireza que só os detalhes lhe conferem, e desfrutavam-na apenas à mesa saboreando as suas diversas iguarias, com particular destaque para as deliciosas ameijoas.

 

  Isentos de sérias obrigações, e fazendo da diversão razão maior, foram os mais pequenos, onde felizmente me incluo, que, atraídos pelo seu mágico chamamento, a ela se chegaram e com ela firmaram singelo compromisso.

 

  Sem o calvário das tormentas, que os ventos por vezes teciam na vastidão oceânica, a ria oferecia-se mansa e disponível.

 

  As crianças fizeram-na sua semeando nela as flores das suas primaveras; navegando os impulsos da verde condição; guinchando a vida e chapinhando a nudez em lamacentos regatos; mareando toscos barcos, que, guiados pelas pétalas da mão, ou soprados pelos ventos do desejo, faziam da noite o palco onírico de náuticas proezas.

.

 

  A passagem do tempo, as mudanças que em nós iam ocorrendo, e o constatar mais ou menos explícito da sua generosidade, fizeram considerá-la para lá da lúdica feição: sugeriram novas abordagens, e tiveram como resultado a exploração dos seus recursos e decorrente descoberta dos seus tesouros.

  O início foi um suceder de emoções,e o entusiasmo resultante, muito próximo da juvenil euforia.

  Foi uma fase intensa, duradoura, e que havia de manter-se enquanto colorido o quadro da frescura física.

 

  A diversidade disponível, impossibilitava delimitar no tempo, a tarefa da sua pesquisa e entendimento. Era uma iniciativa para a vida, mas as fronteiras do saber pleno, ficavam sempre muito longe da maioria das pretensões.

  A ria inteira, era apenas dos poucos que ela fizera cúmplices.

 

  Entretanto, a ria abriu-se ao mundo e ficou à distância dum olhar.

 

  E aos meus olhos, livres de juvenis anseios e esperançosas pescarias, chegaram as imagens que, sendo iguais ao que sempre foram, ocupam agora toda a largueza do olhar, e serenam na perfeição as águas deste tempo.

 

  É talvez por isso, que a vejo todos os dias como se fosse a primeira vez.

 

 

com cânticos de algas e de ventos,

o oceano exalta o reencontro

e a terra celebra o orgulho da raiz.

É uma gota de universo;

será decerto um poema;

porventura branda inquietação;

é janela clara e alucinante

onde o olhar se afunda,

as gaivotas florescem,

e o mar respira o sopro das luas.

 

 

11
Jul22

AS SALGADEIRAS

Joaquim Morais

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  A aldeia, como quase todas as do seu tempo, convidava ao mosquedo. Era o resultado de comportamentos descuidados, e da ausência de regras de higiene pública: a uma lixeira colectiva, a céu aberto, sem qualquer tratamento e não muito distante do casario, juntavam-se em muitos quintais pequenas compostagens, também ao ar livre, sem critérios de higiene na selecção e na preparação dos resíduos, que continham frequentemente restos de fácil putrefacção. Num cenário de evidente ausência de cuidados sanitários, era inevitável que as moscas reinassem, tornando-se difícil acabar com o seu consistente protagonismo.

 

 

  Pestilentas e atrevidas, eram um desafio permanente para os que recusavam ser alvo das suas intermináveis investidas, e porto para as escalas do seu voejar.

  Nalgumas casas, as portas que davam acesso aos quintais, alguns deles a funcionar como excelentes locais de incubação, estavam protegidas com fitas coloridas, que drapejavam ao gesto e ao vento, mas evitavam em certa medida, o acesso destes e doutros insectos voadores. O mesmo processo era utilizado nalguns estabelecimentos comerciais. Nas casas de habitação, era costume as pessoas enxotá-las várias vezes ao dia, agitando panos ou toalhas, que as encaminhavam de divisão em divisão, até à rua.

  Não existindo diligência publica estruturada para atalhar a sua disseminação, ficava ao critério daqueles a quem importava o desconforto, a improvisação de medidas que o minorasse.

 

 

  Vinham de todos os lados, atraídas pelo odor açucarado das uvas. Esvoaçavam o desejo de sugar, seguindo o rasto meloso deixado no caminho das adegas, e pairavam nos lagares, teimando nos homens, os braços e os rostos peganhentos do labor da pisada. Sem bracejar que as demovesse instalavam-se no pasto de doçura em que o lugar se convertera, e por lá haviam de ficar até à consumação do néctar que as enormes pipas hospedavam.

 

  As adegas eram, pelo seu adocicado e aromático ambiente, locais de excelência para a permanência destes insectos, e capazes de atraí-los de grandes distâncias. Por tudo isto, e pela aparente inevitabilidade da sua presença, houve quem nelas engendrasse maneira de a manter em níveis aceitáveis.

  A natureza da actividade por um lado, e a qualidade dos vinhos produzidos por outro, convidavam não só as moscas, mas também os inúmeros discípulos de Baco, que, no tempo devido, estavam sempre presentes para festivas e preciosas libações. Não sendo inconciliável a presença dos insectos com o desfrutar dos néctares, o exagero do seu assédio acabava por importunar.

 

  Os edifícios onde as tabernas estavam instaladas, eram de média dimensão, e alguns tinham na divisão do atendimento aos clientes, estupendos tectos com estruturas baseadas em robustas armações de asnaria, que a tradição acolhia e recomendava.

  Enquanto criança, quase todos os dias e a pedido do meu pai, deslocava-me às adegas que abundavam em Alvor nessa altura, algumas bem perto do lugar onde morava. Os mandados destinavam-se a trazer à mesa das refeições, o vinho que ele tanto apreciava. Nessas andanças de mandado e quando o atendimento demorava, o olhar vagueava no redor fixando as evidências que nem sempre iam ao encontro do entender dos anos. Bem à vista, suspensos do vigamento inferior das asnas, alguns conjuntos de ramos de um arbusto desconhecido para mim, pendiam criteriosamente amarrados e distanciados uns dos outros. Não entendi o propósito, nem a curiosidade se moveu para deslindá-lo.

   O esclarecimento chegou já em adulto, quando, em amena conversa se lembravam tempos de adegas buliçosas, animadas pelo prazer do vinho que o S. Martinho renovava em primaveras de circunstância, feitas da sua vibrante, aromática e cristalina condição.

 

   Eram salgadeiras o que as traves continham suspensas da sua imobilidade. Um arbusto comum nos sapais que circundavam a ria, e que alguém decidiu usar em desfavor do mosquedo.

   A noite interrompia nas adegas a azáfama das moscas. Era tempo de se recolherem e abrigarem, até que o dia rompesse e retomada fosse a sua maçadora existência. Eleitas dormitório, as salgadeiras eram cobertas por revoadas de moscas mal caía a noite, transformando a sua natureza vegetal em alado e disforme pendente.

  Encerrada a loja, seguia-se o tratamento ao mosqueiro que repousava do labor do dia: munido duma saca de serapilheira de boca larga, o taberneiro subia cuidadosamente e em silêncio por uma escada até junto à salgadeira inundada de moscas, e, com um movimento rápido e preciso, introduzia a salgadeira na saca, segurando e fechando o ramo pela base; acto contínuo, desatava o nó que prendia o ramo à trave e descia com ele bem preso e a saca bem cingida à sua volta. Feita a captura, restava eliminá-las. Nada mais simples, apesar da sua feição um tanto ou quanto bizarra: com a saca a envolver o ramo e a prendê-lo com firmeza, fustigava com ele o chão do quintal ou da rua, até que não houvesse rumor ou sinal de mosca viva.  

  A seguir era devolver a nudez ao ramo, varrer o mosquedo, e voltar a pendurar nas vigas das bonitas asnas, essa traiçoeira alcova.

 

  E assim se cumpria com êxito, uma estratégia de controlo sanitário pouco ortodoxa, mas de razoável eficácia.

 

 

26
Jun22

A AROEIRA

Joaquim Morais

 

                                                                

              

                                              

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                                                                             A AROEIRA

   Era o arbusto preferido das felosas, que saltitavam a aparente inquietação no aromático entrelaçado dos seus ramos: buscavam drupas, as bagas que o amadurecimento tingia de negro, e que eram ao fim e ao cabo, a razão primeira para a cíclica aventura migratória que a sobrevivência determinava.

  Os coelhos escolhiam-nas, para junto aos troncos fortes que as enraizavam, escavarem labirínticas tocas, enquanto as perdizes urdiam o futuro abrigadas pela sua cerrada e frondosa copa.

   Parte activa do eco-sistema a que pertencia, e inserida na paisagem terrena com correspondente relevância paisagística, a aroeira havia de revelar inesperado préstimo em aquático meio, levada pela mão do homem que nele tinha o seu modo de vida.

  E que melhor lugar do que a ria de Alvor, para protagonizar uma nova e inesperada valia, e garantir um desempenho duplamente benéfico, apesar da aparente discordância elementar.

 

  A ria é um desafio permanente a quem a ousar. A sua linguagem nem sempre explícita, seduz apenas os que a virtude arregimentou para a aprendizagem, tornando-os confidentes duma natureza que tem muitas vezes no improvável, a porta de entrada da sua revelação. Privilegiados e dedicados ao seu entendimento, talvez tenham sido estes, que nas marés e no tempo certos, pela experimentação, ou pela constatação de que um fortuito ramo de árvore trazido pela corrente e depositado em acessível remanso era abrigo habitual de chocos, terão inaugurado um novo meio de captura destes saborosos cefalópodes.

  Restava encontrar nos campos em redor, a árvore ou arbusto que melhor poderia servir para o efeito. De ar frondoso, copa cerrada, resistente e aparentemente capaz para integrar e compor o novo habitat, a aroeira parecia ajustar-se perfeitamente ao que dela se pretendia.

 

  Para mantê-las submersas, e resistir aos ventos de água soprados pelas marés, dotaram-nas de raízes de pedra. Passariam a vogar a dinâmica das águas oceânicas, na medida dos cabos que as prendiam.

   Eram colocadas em lugar acessível pela baixa mar, mas de maneira a ficarem completamente submersas, mesmo em marés de vazantes extremas.

  Com a ria escoada, nas manhãs calmas e de águas transparentes, o pescador fazia o circuito das aroeiras pelos baixios que as continham, deslocando-se em silêncio e fazendo atenta e cuidadosa abordagem ao seu redor, e à parte que os ramos cobriam. Após contacto visual com os chocos, que, umas vezes enterrados na areia, noutras imobilizados mas prontos para escapar à mais pequena ameaça, redobravam-se os cuidados para não os afugentar. A sua captura era feita com fisgas artesanais fabricadas pelo ferreiro “Justo”, homem competente na arte da forja, e que trabalhava o ferro com mestria.

   Ainda muito jovem, também passei pela sua oficina, e tive o privilégio de o conhecer. Alguns dos bicheiros e fisgas, que na adolescência usei na pesca dos polvos nas praias rochosas de Alvor, foram feitas por esse bom homem e grande mestre. Com ele trabalhou também o sr Alfredo, conhecido por Alfredo “Nórinha”, figura popular, e profissional competente na mesma arte.

 

   À natureza cabe estabelecer relações entre os elos da cadeia, para que a harmonia do sistema prevaleça. Ao homem cabe tirar dela vantagens em benefício próprio, com a sensatez necessária à salvaguarda do seu equlíbrio.

 

   É claro que não veio mal ao mundo pela aroeira, e que, muito pelo contrário, até ajudou: os novos habitats criados passaram a funcionar como banco de ovas, e a ria, porta aberta para o mar, garantiu e acentuou a renovação da espécie no seu seio, contribuindo também com ajuda de relevo para o repovoamento oceânico; acresceu a tudo isto, uma pequena achega ao ganha pão do pescador.

 

 

 

   No meio piscatório a aroeira era conhecida por dároeira. Nem sempre as palavras do lugar coincidiam com as do manual. Talvez particularidades próprias do meio social, e ou cultural, porventura do aparelho vocal, tenham levado à junção da consoante d à vogal inicial, para mais comodidade no dizer.

  Por esta ou aquela razão, acontecia na comunidade serem retocadas palavras, principalmente entre os pescadores.

       

 

                                                                              

 

 

 



 

 

 

                                                                              

 

 

 

01
Jan22

A moda na igreja do padre David

Joaquim Morais

 

 

 

 

 

  David Marreiros Neto, nasceu em Monchique em 1902. Homem de saberes variados, tinha na terra as suas raízes mais profundas.

  Iniciou-se no ministério como padre auxiliar em Loulé, ocupando nos anos trinta, por nomeação da diocese, a paróquia de Santa Bárbara de Nexe.

  Aí, e segundo alguns paroquianos, cedo começou a revelar o seu carácter interventivo, principalmente junto dos jovens, ficando na memória de muitos paroquianos, variados exemplos do seu controverso temperamento.

  Depois de uma década ao serviço da igreja nessa localidade do barrocal algarvio, o polémico pároco foi colocado em Alvor, onde viria a desenvolver o seu longo e por vezes agitado ministério, até ao ano de 1975, data em que faleceu por doença negligenciada.

 

  Os anos que passou em Alvor permitiram-lhe conhecer e ser conhecido. Se por um lado, esse mútuo entendimento preparou os seus paroquianos para os cuidados a ter na abordagem de assuntos, que envolvessem mudanças na ordem estabelecida, serviu, por outro, para tê-los prevenidos em relação à sua frontal e nem sempre simpática maneira de os interpelar.

  Inovar não era seguramente a sua vocação, nem para isso o convocava réstia de entusiasmo.

 Sendo homem assumidamente avesso a modernices, não hesitava nas críticas e consequentes advertências, a quem pusesse em causa os preceitos vigentes, que a igreja e ele próprio, entendiam como os mais adequados. Cristalizado na tradição litúrgica mais conservadora, pouca ou nenhuma abertura mostrava para refrescá-la, ao contrário do que se ia fazendo noutras paróquias.

  No entanto, e em desacordo com o que a doutrina sugere em relação ao decoro no uso da palavra, permitia muitas vezes que a grosseria tomasse o seu lugar.

 

  A década de sessenta trouxe coisas novas para o lado feminino. A moda mexia com o mundo, e as mulheres iam mostrando no rosto e no vestir os sinais da mudança. Se algumas ainda hesitavam a plenitude da moda, outras havia que exibiam sem vacilações a sua exuberante inteireza.

  Particularmente atento a tudo isso, agraciava-as com mordazes alfinetadas, sempre que a ausência de sobriedade no semblante, ou no traje, as transformasse em peças carnavalescas, como costumava dizer.

 

  A novidade era fértil, e a esses novos desafios que as tendências da moda iam colocando, ia o padre David respondendo, umas vezes com divertida frontalidade, e noutras com intransigente rispidez.

  Era ágil na palavra, muitas vezes metafórica, carregada de ironia, que, para além da acidez, cumpria o seu propósito com a graça própria do seu dizer.

  Deixou-nos um conjunto de divertidas intervenções que se tornaram populares pela contundente chacota.

 

 

 

 

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   Chamaram-na de missa do galo. Claro se torna, ter havido influência de macho galináceo na razões da designação.

  São muitas as versões que o relatam, e, por extensas, e mais ou menos fantasiosas, importará pouco nesta altura o pormenor dos seus conteúdos.

  Porventura mais relevante, será a constatação que apenas nos países onde se fala português ou espanhol se celebra com o nome de missa do galo, aquela que no resto do mundo católico é chamada de missa da meia noite.

 

  E foi pouco antes da meia noite, que teve início a celebração da missa do galo num ano da década de sessenta, que não posso precisar.

  A terra ainda tinha nas alturas muitos dos seus olhos, e a igreja fazia-a mais próxima dos que a crença iluminava; e eram muitos, os que, nessa noite, celebravam o menino, e a esperança.

 

  Após o jantar de natal, a mesa mantinha-nos juntos, e por lá ficávamos até à altura da missa do galo. As cantorias e a conversa, intercaladas pelo permanente apelo da doçaria e das bebidas que a mesa mostrava, consumiam depressa o tempo, até à hora de voltar a cumprir a tradição.

  Era um hábito consolidado, e raras as pessoas que não participavam na festa do nascimento que a igreja propunha.

 

  A liturgia da noite de natal era de especial significado para a igreja, e para os que nela se reviam. O nascimento de Jesus foi um marco relevante para o mundo cristão, e o padre David punha sempre na homilia sobre as leituras e sobre o evangelho, toda a sua alma de apóstolo da igreja.

  Aliás, era reconhecida em toda a diocese, a sua fama de grande orador.

  Na parte final da missa, era costume o beija pé ao menino. As pessoas enfileiravam-se ordenadamente, e aproximavam-se uma a uma da capela mor, onde o padre David, segurando a imagem do menino com a mão esquerda, ia dando a beijar o seu pezinho. Após cada beijo, limpava o pé do menino com um pano que a mão direita segurava. Era a higiene possível, e, em tempo de miraculosas ocorrências, a fé havia de valer-nos a todos.

  A fila era enorme, porque raros os que prescindiam de exercer o privilégio.

  Uma a uma, as pessoas aproximavam-se para o beijo, sob o olhar atento do pároco.

  Até que, surgiu a mulher, que abriu no rosto a rosa vermelho vivo dos seus lábios, e depressa incendiou os olhos do padre David. O choque foi imediato e a resposta pronta:

- Vá embora mulher! Desapareça! Desapareça! Não me suje o boneco! Não me suje o boneco! E num repente, retirou do alcance da garrida boca o pé de Jesus.

  Se esteve ou não eminente, afronta séria ao carácter sagrado do ritual, apenas o padre David poderia esclarecer.

  Claro deve ter ficado, se dúvidas houvesse, que, daí em diante, exuberantes adereços não tinham cabimento na igreja do padre David.

  O termo “boneco”, usado pelo pároco aquando do incidente, não era de grande estranheza.

  Recordo que, quando os que tinham a responsabilidade da organização de procissões, decidiam as imagens eleitas para nelas desfilarem, e o seu número parecia exagerado, o padre David atalhava dizendo: “ já chega de madeira na rua”.

 

  O divino, não parecia para ele, estar associado à diversidade imagética, mesmo que, pontualmente comovente, da arte sacra. Eram apenas figuras, (bonecos) feitas de materiais comuns, (madeira) que artistas, no exercício do seu ofício produziam. Homens ou mulheres, que até podiam viver à margem da igreja.

  Arte terrena, rasteira, que ele recusava sacralizar.

 

11
Dez21

O velho pescador

Joaquim Morais

 

 

 

 

  A casa situava-se ao rés da água. Tão ao rés que em alturas de marés vivas os poiais, propositadamente altos, quase submergiam ao assédio das águas. Era uma casa térrea, branca, aninhada na falésia que contemplava a ria. A cal inundava-a de luz e os poentes revelavam-lhe os segredos da cor.

   Por ela passavam as inumeráveis águas das incessantes marés no seu eterno vai vem.

   Na encosta da arriba que a escrevia, cresciam arbustos e flores silvestres que ajudavam a consolidar alguma frouxidão. No cimo reinavam as amendoeiras que as flores nevavam, e onde, nas esquinas do dia, os melros disputavam o futuro em cristalinos concertos.

   Nela vivia um velho pescador: habitava a solidão dos anos, e trazia na mão esquerda um velho crucifixo; chegava-o ao peito enquanto dormia, acreditando que tomava o lugar do coração; sentia-o pulsar entre os dedos, e repousava esquecido no sono, como se ainda perfumasse os jardins do tempo.

   Homem com olhos de mar e de céu, que transbordavam horizontes, e, entre os muros da terra, habitavam a ausência.

   Era uma figura esplêndida apesar da baixa estatura. No rosto de feições bem definidas e carinhosamente austero, a rudeza da vida esculpira sólidas marcas, curtidas e consolidadas pelo sol, pelo vento, e por esse mar de versáteis encantos a quem dedicara a sua vida.

   Da cabeça coberta por um velho boné a resguardar uma precoce calvície, pendiam a circundá-la alvas e finas madeixas que emolduravam a tez rosada, onde a fogueira do sol ardia continuamente. As suas mãos eram fortes e ásperas e nelas se desenhava claramente o traço de incalculáveis remadas. Os braços eram poderosos, e o tronco, robusto, quase sempre cingido por uma grossa camisola. O andar simiesco, que o mar obrigara, denunciava uma vida passada sobre as águas, e traduzia o hábito de compensar os contínuos desníveis que a ondulação produzia.

   O olhar era sereno e profundo, a perscrutar talvez os horizontes da memória, os das vivências ardentes, que não cabem na dimensão previsível, circular e enfadonha do espaço terreno.

   Tivera com o mar uma longa e frutuosa relação; hoje, ausente do seu lavrar, a solidão era maior; o mar continuava igual; não envelhecera como ele; permanecia talvez como no dia em que nascera: uma vida que era o próprio tempo na sua expressão mais profunda, salpicada de incontáveis efémeras gerações de humanidade. Os homens passavam e o mar ficava, indiferente ao desfile dos dias, exibindo a sucessão de recursos que o tornava venerado e temido, e usando o fascínio irresistível da sua serena ou desabrida majestade.

   Começara a soletrá-lo ainda muito novo: a decifrar os seus sinais mais elementares; a interpretar a sua linguagem de sal e de vento; a entender a sua mansidão e a sua revolta.

   O mar, esse lago imenso abrigado na concha da terra; essa várzea ondulante que desafiava horizontes que o olhar em vão teimava; essa escola de virtudes, geradora de nobres e sólidos princípios, e que fizera dele discípulo para a eternidade.

 

28
Nov21

Alfredo e o mar

Joaquim Morais

 

 

 

 

  A revolução iria trazer coisas novas, dizia-se. No lugar, pouco dado a novos motivos de conversa, depressa as falas se ocuparam da notícia, e sobre ela  teceram as mais variadas considerações.

  Os jornais, a rádio e a televisão, desdobravam-se no esforço de informar, e a profusão, também feita de palavras nem sempre coincidentes com as de quem escutava, levava com frequência a alguma confusão.

  Os militares percorriam o país, tentando esclarecer toda a gente acerca da nova realidade política, e dos benefícios que ela poderia trazer à vida das pessoas.

  A informação passava de boca em boca, e, retocada pelo entendimento de cada um, depressa se transformava num conjunto arrevesado de palavras de impreciso sentido.

  A impaciência especulava, e o desejo era ser informado e esclarecido de viva voz, pelos que, em representação do movimento das forças armadas, para isso estavam mandatados.

 

  Entre os pescadores, onde a precariedade na protecção social após a vida activa era quase generalizada, vivia-se a esperança de mudança; também por isso, a expectativa da mensagem clara, olhos nos olhos, era evidente, e ansiosamente aguardada.

 

  Não obstante as limitações que o avanço dos anos naturalmente traziam a quem ao mar dedicara as suas vidas, alguns havia, que, mesmo com idade de puderem vir a colher os benefícios de eventuais pensões, desejavam em simultâneo, prolongar a vida activa.

  Para outros, o divórcio era pacífico e desejado, encerrando sem constrangimentos, um importante capítulo das suas vidas.

 O tempo e a duradoura ligação ao mar, foram deixando ao longo dos anos marcas de amores e desamores, que haviam de importar, na decisão final de cada um.

 

  Alfredo era um dos atormentados pela inquietação, e a quem uma eventual separação compulsiva desagradava.

  Ao mar a vida, e a entrega, feita de estranha afeição, sem idade, conduzida pelo olhar e pelo gesto, talhados para apenas nele serem por inteiro.

 

  Chegou por fim a aguardada comitiva, que trazia palavras novas, e se desejavam esclarecedoras; ouvia-se a música dos novos tempos; e os rostos sorriam a esperança de dias melhores.

 

  E nem os anos esmoreceram Alfredo, que, na plateia apinhada de gente, fez chegar o seu desassossego, aos que vieram para ouvir e dizer.

  Um jovem oficial do exército, escutou Alfredo com tranquila atenção; ouviu das suas incertezas, das suas expectativas, do seu desejo de prolongar o mar para lá do tempo, e respondeu-lhe:

 

  - Sr. Alfredo, pelo que me acabou de dizer, atrevo-me a concluir que a sua ligação ao mar é profunda, tal como o desejo de continuar essa dedicada relação. A sua pretensão não fere a legalidade, e não faria sentido impor-lhe esse amargo divórcio; Recomendo-lhe até, que enquanto a primavera lhe sorrir, faça-se ao mar e escreva nele as páginas que essa duradoura afeição lhe for ditando.

  Apesar do perigo e do abismo, talvez a Alfredo sorrisse o céu que o mar espelhava.

 

06
Nov21

Alvor à distância da memória (2)

Joaquim Morais

 

 

 

   Ofereciam-se a terra e o mar, e a vida era

feita da rude simplicidade do trabalho.

 

 

 

 

 

   Se da grandeza do mar chegava a dádiva maior, era da terra que ao mar e ao sol assomava, que se erguia o doce tesouro que o saber dos homens e o canto das leveduras, havia de converter no vinho que a natureza exemplar desse berço iniciara.

   Eram inúmeras as adegas, e estavam muito para lá do que o tamanho da terra fazia supor. Lembro-me delas, e das dornas enormes a transbordar aromáticas e suculentas uvas. Vinham em carroças, do lado do mar que a falésia espreitava, e eram acompanhadas e festejadas na aldeia pelas crianças, que as rodeavam na esperança das doces esgalhas.

   Despejadas de seguida em lagares de cimento, eram pisadas por grupos de homens solidários, irmanados na tarefa inicial do milagre do vinho.

   Seguir-se-iam outras etapas, até que o tempo chegasse à desejada harmonia certificada pelos sentidos.

   Havia de aportar à mesa, fazer as delícias de comensais, e levar para lá do lugar suas virtudes.

   Vinham de muitos lados na altura certa. Inauguravam-no de copos ao alto soletrando a sombria transparência, e celebrando o poema da sua condição.

 

   Na aldeia eram quase todos seguidores da igreja católica. Têm particular devoção por Jesus crucificado, e por sua mãe, aqui feita senhora da boa viagem. Dedicam-lhes solenes homenagens, que trazem devotos de muitas terras em redor, e têm um invulgar cunho emocional.

   A festa da senhora da boa viagem envolvia particularmente os pescadores, que à senhora pediam protecção e graças,

  A festa do senhor Jesus era uma impressionante manifestação de devoção e fé. A origem lendária, e as miraculosas ocorrências atribuídas à comovente imagem de cristo crucificado, transformaram este exemplar de arte sacra numa referência, para todos os que, nos apertos extremos, viviam a expectativa duma intervenção divina.

   Em ambas as festas, desfilavam em procissão inúmeros andores com vistosos arranjos florais, e encimados pelas imagens que a tradição recomendava. Nas ruas, decoradas para recebê-las, a multidão caminhava ladeando os andores, e cantando louvores e orações. Das janelas pendiam bonitas colchas, e assomavam pessoas que assumiam respeitosa atitude à passagem das imagens.

   Para a homilia, costumavam convidar pregadores de outras paróquias. Vinham recomendados pela reputação,e garantiam sempre intermináveis e inflamados sermões.

   As práticas não deixavam quase ninguém indiferente, e não era raro que as lágrimas ilustrassem os rostos mais sensíveis.

 

   Pelo natal, a festa era a da simplicidade. A modéstia do lugar e o carácter despojado da quadra ajustavam-se, e situavam-nos a todos mais próximos da humildade, que a celebração genuína recomendava.

   Era a festa da família, feita de regressos e sorrisos e do calor dos abraços; dos sabores que a época costumava e os sentidos festejavam; das cantigas ao menino; dos bucólicos presépios; da missa do galo; da agitação experimentada pelas crianças pela expectativa duma guloseima natalícia, e de muitas outras pequenas coisas, que a todos nos faziam felizes.

   Na mesa de natal, reinavam as bebidas da região: o vinho da aldeia, de primazia disputada pelas diversas adegas que o produziam; um licor também da aldeia oferecido pelas delicadas uvas de Francisco Mendes, vulgo “Alvanilho”, que à beira da praia as areias e o sol douravam, e o medronho de Monchique a convidar os que a rijeza habitava.

   Nas comidas, destaque para a panela de milhos, cuja preparação começava alguns dias antes: na primeira cozedura eram aferventados com cinza durante algum tempo, para amaciarem e saírem as peles; a seguir eram-lhes retirados um a um os chamados "olhinhos", para, depois de bem lavados, serem acrescentados da carne de porco e dos enchidos, e voltarem a ser cozinhados durante horas em fogo lento. Era, e ainda continua a ser, a minha comida preferida do natal.

   Nos doces o delicioso sabor dos pastéis de batata doce e de gila e os fritos da massa simples polvilhada de açúcar e canela, que, acompanhados pelo meloso licor ou pelo ardente medronho, rematavam e prolongavam a refeição e a conversa.

 

   Após a missa do galo, grupos de pessoas cantavam de porta em porta louvores ao menino nascido, trazendo ao silêncio da noite, uma sonoridade que a memória de criança gravou por particular agrado, e o adulto conserva, dela guardando a sua mágica essência.

 

   Nessa altura o sopro do natal pairava em todas as coisas, porque na aldeia o silêncio permitia o rumor, a noite permitia as estrelas, e o homem ainda era dado à sua contemplação.

 

 

 

01
Nov21

Saudade

Joaquim Morais

 

 

 

 

 

   Hoje é dia de todos os santos: dia que a tradição recomenda ter presente na memória, os que a terra acolhe nas suas entranhas.

   Sendo certo que estas lembranças nem sempre se conjugam com o turbilhão existencial de muitos, não é menos certo, que, apesar disso, os cemitérios têm nos dias que o antecedem e sucedem, desusado movimento.

   Não me afligem correrias nem me tolhem exigentes obrigações. Tenho, como porventura muitos outros terão, alguns episódios de pensamento preenchidos pela melancolia dos que já partiram, e outros, onde os inesquecíveis registos do que me concederam me suscitam ternurentos sorrisos.

   Como acontece habitualmente, voltei a fazer a “visita” aos que apesar de ausentes, continuam a ocupar-me, nas viagens que com eles decido fazer pelos caminhos que percorremos juntos.

   Comoveu-me a evidência do fim. A realidade pareceu-me mais dura do que noutras vezes.

   Fiz o percurso das suas definitivas moradas, olhei-os nos retratos que o tempo empalideceu, e li na pedra fria as palavras que os dizem.

   As imagens trouxeram-nos de volta, e às inúmeras e partilhadas ocorrências que os anos teceram.

   É claro que também sou fruto dum tempo feito da sua proximidade.

  Talvez a saudade exija ser citada.

 

30
Out21

Alvor à distância da memória (1)

Joaquim Morais

 

    Ofereciam-se a terra e o mar, e a vida era feita

  da rude simplicidade do trabalho.

 

 

 

 

   Num lugar assediado pelo mar, presumível seria que a maioria dos homens traçasse nele os seus caminhos.

   Alguns havia, poucos, que no redor a terra tomara; uns por herança, e outros, eleitos, a quem ela sorrira e convidara, para que nela fossem: eram pequenos agricultores que cultivavam hortas de que a aldeia se valia, e colhiam do sequeiro a doçura dos frutos que o sol dourava.

  As mulheres dos que o compromisso à terra ligara, trabalhavam nela conjugando o esforço com a sua condição, prevalecendo nas tarefas, que, portas adentro o costume ditava.

  As outras, a quem o mar coubera por conjugal união, ajudavam a cuidar das artes de pesca, tratavam dos filhos, tinham a seu cargo domésticos afazeres, e algumas, ainda palmilhavam esforçados caminhos, para, em fumeiros e fábricas de conservas, acrescentarem ganhos que suavizassem a vida.

 

  Do que em terra e no mar a dureza do trabalho mostrava, o destaque ia para os que no mar se mostravam mais capazes.

Havia sempre quem dele tirasse maior proveito por melhor sabê-lo.

  A terra, previsível demais para realçar desempenhos, não se prestava a graduar os seus obreiros.

  As diferenças, provinham da excelência ou da vulgaridade das espécies que nela cresciam.

 

  Os dias na aldeia eram feitos de rotinas, e a novidade pouco ou nada se atrevia.

  O mar e a terra eram o suporte de vida, e o bem-estar decorria do adequado aproveitamento dos frutos do trabalho, tendo por certo, que o caprichoso decorrer do tempo nunca permitia certezas na sua obtenção.

  A consciência do risco de privação, levou a que não existissem hábitos nem práticas de desperdício.

 Quando no inverno se demoravam temporais, a ria espantava inquietações e temores, valendo a todos os que nela buscavam a mesa da sobrevivência.

  Para lá da generosidade, tudo o que crescia era de sabor reconhecido, com destaque para as ameijoas, com toda a justiça elogiadas, e desde sempre consideradas simbólica iguaria.

 

  Adequado à dimensão da aldeia havia também um pequeno comércio. Era importante para todos, e ajustava-se aos cenários que o tempo tecia. A incerteza dos ganhos obrigava por vezes ao prazo, ao coração, e ao fardo do rol, que, nalguns casos, podia levar a prolongada, e por vezes até, incobrável dívida.

 

 

  Em casa, não havia o conforto da água fácil do nosso tempo. Existia no seu lugar, a escassez imposta pelo diminuto volume do cântaro de barro, que a voz do aguadeiro lembrava sempre que passava.

  Tal como a água, a iluminação ainda estava longe do que temos hoje. A opção generalizada era a dos velhos candeeiros a petróleo, com torcidas que exigiam apuro no corte, para evitar tisnaduras que as imperfeições do talhe produziam na chaminé.  

  Eram um pôr do sol descolorido, e deixavam no ar o desagradável cheiro da sua combustão.

 

  Em certas alturas, e determinado por ocorrências e assuntos que o interesse comum recomendasse levar ao conhecimento público, um homem bradava de rua em rua, convidando à atenção e à escuta.

  A mensagem era feita de diversidade, e o vozeirão empenhava-se em fazer chegar o recado do mandador.

  Alertadas pelo pregão, as mulheres vinham à porta vestindo graciosos bibes, e enxugando as mãos a pingar tarefas de cozinha, em encardidos aventais.

  Esclareciam as falhas do ouvido, e avaliavam na proposta algum interesse ou benefício.

 Os anúncios, sugeriam na maior parte dos casos, produtos que vinham da terra ou do mar, habitualmente do agrado de todos, e que se ajustavam ao desejo e à carteira das famílias.

  Por vezes apregoava-se também a perda dum objecto de alguma valia, com a promessa de alvíssaras aos que o achado contemplasse.

 

  Vinham de fora e no tempo certo, os que a proviam de algumas coisas que o hábito adquiriu para acrescentar à vida na aldeia. Deslocavam-se em carroças, anunciavam ruidosamente a sua vinda, e tornaram-se presença familiar e alegremente aguardada.

  Traziam com eles a diferença de outros lugares.

 

 

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