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Alvor,a terra e a ria

Alvor,a terra e a ria

29
Jul23

De braço dado com o mar

Joaquim Morais

 

Era calmo e tépido o mar inicial.

Ajustadas as velas ao sopro da vida,

navegaram no tempo preciso

as maternas rosas

e o hábito das águas;

habitaram submersos o fértil remanso,

e vieram ao mundo

marcados pelo indelével traço

da sua vital relevância.

O nascimento deixou-os

de braço dado com o mar.

Porque assomava a todas as janelas;

porque a todos

fazia chegar a sua voz,

e, por previsível e breve,

a terra se ter esgotado no olhar,

aceitaram o desafio da imensidão,

reinventaram as origens

num útero de tábuas e de sal

e fizeram-se ao mar.

01
Jul23

Belchior

Joaquim Morais

 

 

  Belchior há muito que é parte da ria: Uma pequena extensão móvel que se desloca pela baixa mar, sempre que a manhã, por vezes a tarde, coincidem com esse vazio de águas que o refluxo da maré desenha todos os dias ao longo do seu curso.

  Franzino, curvado sobre a terra para olhá-la de perto, parece ter encontrado nessa arte rasteira da apanha de amêijoa, uma espécie de culto a que se obrigou por insondáveis razões.

 

  Para os que o conhecem e costumam vê-lo nessa faina, o seu perfil, trazido pela proximidade ou pela lonjura, será porventura a pontuação que à leitura da ria sentido.

  Para os outros, a figura, o semblante e a determinação, farão certamente aportar aos seus olhares no tempo devido, a estreiteza dos laços que o vinculam a esta janela de águas vivas.

 

  Quando os rigores do tempo, pela idade e pela aparente fragilidade, recomendariam aconchegado recanto, Belchior faz assomar o espanto aos que o sinalizam, descalço, de oleado vestido e sueste na cabeça, no meio da intempérie.

 

  A sua ausência, rara, e com origem na imponderável força que as circunstâncias por vezes tecem, tem sempre a grandeza que a justifica, daí decorrendo que, a falta, por infrequente, legitima assim com acentuada razão a regra da sua assiduidade.

 

  Já passaram por ele mais de oito décadas. Foi sempre pescador: a arte do cerco nas traineiras, e a pesca artesanal do anzol, (vulgo aparelhos), foram as mais relevantes, e preencheram quase toda a sua vida de mar.

 

  Como a muitos outros, a quem o mar deixou de sorrir, a ria recebeu-o de braços abertos, mas nenhum outro a conjugou com a disponível inteireza da sua constante presença.

 

 

11
Jun23

As flores do passadiço

Joaquim Morais

 

 

foto limoniastrum.jpg

 

 

 

  Privados da flor que as ilustra, adormecem entre dezembro e fevereiro, não deixando, apesar disso, que a inércia comprometa a sua viçosa graça.

  Regressam em março para guarnecer de cor a margem esquerda da ria, e até novembro, vão animar a vista dos que por lá se passeiam, com os lilases variados das suas bonitas flores.

 

  Quando a vida nos permite o tempo que as inúmeras obrigações impediram em grande parte do seu decurso, é altura de olharmos em redor. Teremos por certo esta e outras surpresas, que nos farão despertar para uma realidade da qual fomos parte activa, e de que nos temos vindo a afastar tempo demais.

 

  As estações oferecer-nos-ão os frutos das suas árvores; reparar neles talvez espante a ausência que nos tolhe.

 

  A natureza também somos nós.

 

  É uma planta tipicamente mediterrânica, conhecida pelo nome científico de limoniastrum monopetalum, e pela designação comum de salado ou purslane seco.

 

  Tolera bem a salinidade dos terrenos onde está habitualmente implantada, mas pode embelezar os jardins das nossas casas, não necessitando de especiais cuidados. É resistente a pragas e a secas; não requer grande manutenção; não precisa de ser podada, sendo suficiente fertilizá-la apenas uma vez por ano. Multiplicam-se no verão atras de estacas.

 

  Tal como o salado, mas apenas na zona onde desponta o relevo dunar, portanto um pouco mais afastada dos terrenos salgados, há uma outra espécie, que, para além da utilização feita por alguns pescadores em Alvor há algumas décadas, e descrita por mim em post anterior, tem características idênticas e pode perfeitamente integrar-se em jardins. Tem o nome comum de Aroeira, sendo também conhecida por Lentisco: possui folhagem abundante, e tem de entre as suas valias paisagísticas, a possibilidade de gerar bonitas sebes.

 

  São plantas autóctones de raiz mediterrânica, sobretudo recomendadas para ter em conta num contexto de escassez de recursos hídricos.

03
Jun23

As Fases da Ria

Joaquim Morais

 

 

 

 

  Esteve quase sempre longe dos olhares do mundo. Viam-na os que em seu redor se fixavam, e, sobretudo, os que nela decidiam modo de vida, ou dela faziam caminho para o largo.

Para esses, o olhar, essencialmente comprometido com o pão, raramente era animado por vislumbres contemplativos.

 

  De entre os que visitavam a terra que lhe deu o nome, eram poucos os que a afoiteza convocava para o desafio de percorrê-la. Ao tempo, o trajecto e o conforto raramente coincidentes, suscitava muitas vezes a hesitação, e abria quase sempre caminho para a recusa.

 

  Viam-na à distância, privada da inteireza que só os detalhes lhe conferem, e desfrutavam-na apenas à mesa saboreando as suas diversas iguarias, com particular destaque para as deliciosas ameijoas.

 

  Isentos de sérias obrigações, e fazendo da diversão razão maior, foram os mais pequenos, onde felizmente me incluo, que, atraídos pelo seu mágico chamamento, a ela se chegaram e com ela firmaram singelo compromisso.

 

  Sem o calvário das tormentas, que os ventos por vezes teciam na vastidão oceânica, a ria oferecia-se mansa e disponível.

 

  As crianças fizeram-na sua semeando nela as flores das suas primaveras; navegando os impulsos da verde condição; guinchando a vida e chapinhando a nudez em lamacentos regatos; mareando toscos barcos, que, guiados pelas pétalas da mão, ou soprados pelos ventos do desejo, faziam da noite o palco onírico de náuticas proezas.

.

 

  A passagem do tempo, as mudanças que em nós iam ocorrendo, e o constatar mais ou menos explícito da sua generosidade, fizeram considerá-la para lá da lúdica feição: sugeriram novas abordagens, e tiveram como resultado a exploração dos seus recursos e decorrente descoberta dos seus tesouros.

  O início foi um suceder de emoções,e o entusiasmo resultante, muito próximo da juvenil euforia.

  Foi uma fase intensa, duradoura, e que havia de manter-se enquanto colorido o quadro da frescura física.

 

  A diversidade disponível, impossibilitava delimitar no tempo, a tarefa da sua pesquisa e entendimento. Era uma iniciativa para a vida, mas as fronteiras do saber pleno, ficavam sempre muito longe da maioria das pretensões.

  A ria inteira, era apenas dos poucos que ela fizera cúmplices.

 

  Entretanto, a ria abriu-se ao mundo e ficou à distância dum olhar.

 

  E aos meus olhos, livres de juvenis anseios e esperançosas pescarias, chegaram as imagens que, sendo iguais ao que sempre foram, ocupam agora toda a largueza do olhar, e serenam na perfeição as águas deste tempo.

 

  É talvez por isso, que a vejo todos os dias como se fosse a primeira vez.

 

 

com cânticos de algas e de ventos,

o oceano exalta o reencontro

e a terra celebra o orgulho da raiz.

É uma gota de universo;

será decerto um poema;

porventura branda inquietação;

é janela clara e alucinante

onde o olhar se afunda,

as gaivotas florescem,

e o mar respira o sopro das luas.

 

 

15
Mai23

As Andorinhas e a Ria

Joaquim Morais

 

 

 

 

 

  Não buscam caranguejos, nem moluscos, tão pouco vermes, ou outros em que a lama da ria é fértil.

  As andorinhas ocupam um baixio que a vazante deixou a descoberto, e debicam o lodo tal como as aves aquáticas ao seu lado, como se da procura de alimento se tratasse. O que as move e faz diligentes no afã que envolve o pequeno bando, não tem a ver com gastronómicos intentos.

 

  Chegaram como sempre com a primavera. Deixam África onde passam o inverno, quando o desconforto climático, eventualmente a escassez de alimentos, ou outras razões menos explícitas mas não menos importantes a isso obrigam, e têm o regresso agendado ao mesmo continente, a partir de setembro pelas mesmas razões. Movidas por questões de sobrevivência, seguem os ditames do instinto, que as conduzem por extensas rotas migratórias, e conseguem a proeza de chegar ao lugar pretendido sem auxílio de qualquer tecnologia.

 

  Orientam-se, é suposto, recorrendo à posição do sol e das estrelas; dizem entendidos, que talvez percebam o campo electromagnético da terra; e com razoável grau de certeza, valendo-se da memória para referenciar pontos visuais em percursos repetidos. Para os que inauguram a viagem, basta seguir os adultos que a realizaram antes e fazer dela o prefácio duma aventura que a sua frágil compleição não faria supor.

 

  Mas voltemos à ria e ao baixio que convocou a surpresa, ou nem por isso. Não sendo alimento a razão desse esgravatar, percebi desde muito jovem que afinal as andorinhas apenas acautelam o futuro, como progenitores cuidados e responsáveis. A lama com que preenchem os bicos, destina-se à construção dos ninhos, e andará à volta do milhar, as vezes a que esse vai vem obriga para a sua conclusão.

 

  Organizadas, pacientes e sem a pressão do calendário e do relógio humanos, cumprem-se ainda de acordo com naturais desígnios, e enquanto o permitir o precário equilíbrio do planeta.

 

 

 

 

 

As andorinhas plantam a ria no beiral.

Trazem-na no bico,

suspensa da terra e dos beijos

com que amanham a leira branca do futuro.

 

 

 

09
Out21

O apelo da terra

Joaquim Morais

 

 

 

 

   Com o aproximar da época de caça, chegava também a todos os que por ela tinham inexplicável apego, uma estranha inquietação.

   Talvez os dias que antecedem o acontecer de qualquer coisa prometida e muito desejada pela criança, traduzam bem esse adulto desassossego.

   Todos os anos, sempre que a terra nos convocava para o reatar dessa ardente relação, a agitação nos colhia.

Não estando em causa elementares necessidades, nem a sobrevivência das origens, que outras insondáveis razões teriam levado o homem a prolongar no tempo esta primordial, e até certo ponto, dispensável e anacrónica atividade?

   Perdurará ainda em recôndito lugar da nossa humana arrumação, alguma coisa que a ruralidade desperta, e que, como um estranho chamamento, nos convida ao regresso?

   Somos claramente feitos de passado, faltando saber se a sua ingerência tenha ainda laivos de tão remota era.

   O acto venatório, é um exercício, que, para além do eventual e não tão importante assim, abate, reclama de nós apropriada e rigorosa concentração. Porventura esse estado de consciência pleno, conduzido pelos sentidos e pela intuição, nos permitisse voltar a sentir alguma inteireza e restaurar emoções, pensamentos, impulsos e vivências, há muito arredados da pessoa que somos.

   Tudo isso nos transformava, tudo isso nos devolvia.

   No que me diz respeito, e pelo que me foi dado perceber enquanto seu caloroso seguidor durante alguns anos, nada do que nos movia intencionava a malvadez que muitos querem fazer crer.

   As coisas eram assim mesmo, e fosse pelas razões referidas, ou por muitas outras que a controvérsia do tema produz com abundância, havia uma realidade que nos fazia ansiosamente agradados nessa altura.

   O início das jornadas de caça era um nervosismo pegado. Os tiques mais ou menos evidentes, e que contemplavam quase todos, diziam da excitação, e prolongavam-se até ao cansaço.

   A época de caça, feita da diversidade de ocorrências mais ou menos previsíveis, era também, e acima de tudo, divertido e são convívio, e, fora do palco, ilustrado de relatos onde muitas vezes se misturavam imaginação e realidade.

   Pelos insucessos, das circunstâncias viria a explicação.

   Pelos bons resultados, o relevo do exemplar desempenho apesar das circunstâncias.

  As histórias preenchiam a semana, e eram partilhadas entre grupos. As iniciais, raramente coincidiam com as versões derradeiras, pelos arranjos criativos dos variados interlocutores.

   Não sendo contos, eram neles transformados, e acrescentados de infindáveis pontos.

 

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