Alvor à distância da memória (2)
Ofereciam-se a terra e o mar, e a vida era
feita da rude simplicidade do trabalho.
Se da grandeza do mar chegava a dádiva maior, era da terra que ao mar e ao sol assomava, que se erguia o doce tesouro que o saber dos homens e o canto das leveduras, havia de converter no vinho que a natureza exemplar desse berço iniciara.
Eram inúmeras as adegas, e estavam muito para lá do que o tamanho da terra fazia supor. Lembro-me delas, e das dornas enormes a transbordar aromáticas e suculentas uvas. Vinham em carroças, do lado do mar que a falésia espreitava, e eram acompanhadas e festejadas na aldeia pelas crianças, que as rodeavam na esperança das doces esgalhas.
Despejadas de seguida em lagares de cimento, eram pisadas por grupos de homens solidários, irmanados na tarefa inicial do milagre do vinho.
Seguir-se-iam outras etapas, até que o tempo chegasse à desejada harmonia certificada pelos sentidos.
Havia de aportar à mesa, fazer as delícias de comensais, e levar para lá do lugar suas virtudes.
Vinham de muitos lados na altura certa. Inauguravam-no de copos ao alto soletrando a sombria transparência, e celebrando o poema da sua condição.
Na aldeia eram quase todos seguidores da igreja católica. Têm particular devoção por Jesus crucificado, e por sua mãe, aqui feita senhora da boa viagem. Dedicam-lhes solenes homenagens, que trazem devotos de muitas terras em redor, e têm um invulgar cunho emocional.
A festa da senhora da boa viagem envolvia particularmente os pescadores, que à senhora pediam protecção e graças,
A festa do senhor Jesus era uma impressionante manifestação de devoção e fé. A origem lendária, e as miraculosas ocorrências atribuídas à comovente imagem de cristo crucificado, transformaram este exemplar de arte sacra numa referência, para todos os que, nos apertos extremos, viviam a expectativa duma intervenção divina.
Em ambas as festas, desfilavam em procissão inúmeros andores com vistosos arranjos florais, e encimados pelas imagens que a tradição recomendava. Nas ruas, decoradas para recebê-las, a multidão caminhava ladeando os andores, e cantando louvores e orações. Das janelas pendiam bonitas colchas, e assomavam pessoas que assumiam respeitosa atitude à passagem das imagens.
Para a homilia, costumavam convidar pregadores de outras paróquias. Vinham recomendados pela reputação,e garantiam sempre intermináveis e inflamados sermões.
As práticas não deixavam quase ninguém indiferente, e não era raro que as lágrimas ilustrassem os rostos mais sensíveis.
Pelo natal, a festa era a da simplicidade. A modéstia do lugar e o carácter despojado da quadra ajustavam-se, e situavam-nos a todos mais próximos da humildade, que a celebração genuína recomendava.
Era a festa da família, feita de regressos e sorrisos e do calor dos abraços; dos sabores que a época costumava e os sentidos festejavam; das cantigas ao menino; dos bucólicos presépios; da missa do galo; da agitação experimentada pelas crianças pela expectativa duma guloseima natalícia, e de muitas outras pequenas coisas, que a todos nos faziam felizes.
Na mesa de natal, reinavam as bebidas da região: o vinho da aldeia, de primazia disputada pelas diversas adegas que o produziam; um licor também da aldeia oferecido pelas delicadas uvas de Francisco Mendes, vulgo “Alvanilho”, que à beira da praia as areias e o sol douravam, e o medronho de Monchique a convidar os que a rijeza habitava.
Nas comidas, destaque para a panela de milhos, cuja preparação começava alguns dias antes: na primeira cozedura eram aferventados com cinza durante algum tempo, para amaciarem e saírem as peles; a seguir eram-lhes retirados um a um os chamados "olhinhos", para, depois de bem lavados, serem acrescentados da carne de porco e dos enchidos, e voltarem a ser cozinhados durante horas em fogo lento. Era, e ainda continua a ser, a minha comida preferida do natal.
Nos doces o delicioso sabor dos pastéis de batata doce e de gila e os fritos da massa simples polvilhada de açúcar e canela, que, acompanhados pelo meloso licor ou pelo ardente medronho, rematavam e prolongavam a refeição e a conversa.
Após a missa do galo, grupos de pessoas cantavam de porta em porta louvores ao menino nascido, trazendo ao silêncio da noite, uma sonoridade que a memória de criança gravou por particular agrado, e o adulto conserva, dela guardando a sua mágica essência.
Nessa altura o sopro do natal pairava em todas as coisas, porque na aldeia o silêncio permitia o rumor, a noite permitia as estrelas, e o homem ainda era dado à sua contemplação.