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Alvor,a terra e a ria

Alvor,a terra e a ria

06
Nov21

Alvor à distância da memória (2)

Joaquim Morais

 

 

 

   Ofereciam-se a terra e o mar, e a vida era

feita da rude simplicidade do trabalho.

 

 

 

 

 

   Se da grandeza do mar chegava a dádiva maior, era da terra que ao mar e ao sol assomava, que se erguia o doce tesouro que o saber dos homens e o canto das leveduras, havia de converter no vinho que a natureza exemplar desse berço iniciara.

   Eram inúmeras as adegas, e estavam muito para lá do que o tamanho da terra fazia supor. Lembro-me delas, e das dornas enormes a transbordar aromáticas e suculentas uvas. Vinham em carroças, do lado do mar que a falésia espreitava, e eram acompanhadas e festejadas na aldeia pelas crianças, que as rodeavam na esperança das doces esgalhas.

   Despejadas de seguida em lagares de cimento, eram pisadas por grupos de homens solidários, irmanados na tarefa inicial do milagre do vinho.

   Seguir-se-iam outras etapas, até que o tempo chegasse à desejada harmonia certificada pelos sentidos.

   Havia de aportar à mesa, fazer as delícias de comensais, e levar para lá do lugar suas virtudes.

   Vinham de muitos lados na altura certa. Inauguravam-no de copos ao alto soletrando a sombria transparência, e celebrando o poema da sua condição.

 

   Na aldeia eram quase todos seguidores da igreja católica. Têm particular devoção por Jesus crucificado, e por sua mãe, aqui feita senhora da boa viagem. Dedicam-lhes solenes homenagens, que trazem devotos de muitas terras em redor, e têm um invulgar cunho emocional.

   A festa da senhora da boa viagem envolvia particularmente os pescadores, que à senhora pediam protecção e graças,

  A festa do senhor Jesus era uma impressionante manifestação de devoção e fé. A origem lendária, e as miraculosas ocorrências atribuídas à comovente imagem de cristo crucificado, transformaram este exemplar de arte sacra numa referência, para todos os que, nos apertos extremos, viviam a expectativa duma intervenção divina.

   Em ambas as festas, desfilavam em procissão inúmeros andores com vistosos arranjos florais, e encimados pelas imagens que a tradição recomendava. Nas ruas, decoradas para recebê-las, a multidão caminhava ladeando os andores, e cantando louvores e orações. Das janelas pendiam bonitas colchas, e assomavam pessoas que assumiam respeitosa atitude à passagem das imagens.

   Para a homilia, costumavam convidar pregadores de outras paróquias. Vinham recomendados pela reputação,e garantiam sempre intermináveis e inflamados sermões.

   As práticas não deixavam quase ninguém indiferente, e não era raro que as lágrimas ilustrassem os rostos mais sensíveis.

 

   Pelo natal, a festa era a da simplicidade. A modéstia do lugar e o carácter despojado da quadra ajustavam-se, e situavam-nos a todos mais próximos da humildade, que a celebração genuína recomendava.

   Era a festa da família, feita de regressos e sorrisos e do calor dos abraços; dos sabores que a época costumava e os sentidos festejavam; das cantigas ao menino; dos bucólicos presépios; da missa do galo; da agitação experimentada pelas crianças pela expectativa duma guloseima natalícia, e de muitas outras pequenas coisas, que a todos nos faziam felizes.

   Na mesa de natal, reinavam as bebidas da região: o vinho da aldeia, de primazia disputada pelas diversas adegas que o produziam; um licor também da aldeia oferecido pelas delicadas uvas de Francisco Mendes, vulgo “Alvanilho”, que à beira da praia as areias e o sol douravam, e o medronho de Monchique a convidar os que a rijeza habitava.

   Nas comidas, destaque para a panela de milhos, cuja preparação começava alguns dias antes: na primeira cozedura eram aferventados com cinza durante algum tempo, para amaciarem e saírem as peles; a seguir eram-lhes retirados um a um os chamados "olhinhos", para, depois de bem lavados, serem acrescentados da carne de porco e dos enchidos, e voltarem a ser cozinhados durante horas em fogo lento. Era, e ainda continua a ser, a minha comida preferida do natal.

   Nos doces o delicioso sabor dos pastéis de batata doce e de gila e os fritos da massa simples polvilhada de açúcar e canela, que, acompanhados pelo meloso licor ou pelo ardente medronho, rematavam e prolongavam a refeição e a conversa.

 

   Após a missa do galo, grupos de pessoas cantavam de porta em porta louvores ao menino nascido, trazendo ao silêncio da noite, uma sonoridade que a memória de criança gravou por particular agrado, e o adulto conserva, dela guardando a sua mágica essência.

 

   Nessa altura o sopro do natal pairava em todas as coisas, porque na aldeia o silêncio permitia o rumor, a noite permitia as estrelas, e o homem ainda era dado à sua contemplação.

 

 

 

01
Nov21

Saudade

Joaquim Morais

 

 

 

 

 

   Hoje é dia de todos os santos: dia que a tradição recomenda ter presente na memória, os que a terra acolhe nas suas entranhas.

   Sendo certo que estas lembranças nem sempre se conjugam com o turbilhão existencial de muitos, não é menos certo, que, apesar disso, os cemitérios têm nos dias que o antecedem e sucedem, desusado movimento.

   Não me afligem correrias nem me tolhem exigentes obrigações. Tenho, como porventura muitos outros terão, alguns episódios de pensamento preenchidos pela melancolia dos que já partiram, e outros, onde os inesquecíveis registos do que me concederam me suscitam ternurentos sorrisos.

   Como acontece habitualmente, voltei a fazer a “visita” aos que apesar de ausentes, continuam a ocupar-me, nas viagens que com eles decido fazer pelos caminhos que percorremos juntos.

   Comoveu-me a evidência do fim. A realidade pareceu-me mais dura do que noutras vezes.

   Fiz o percurso das suas definitivas moradas, olhei-os nos retratos que o tempo empalideceu, e li na pedra fria as palavras que os dizem.

   As imagens trouxeram-nos de volta, e às inúmeras e partilhadas ocorrências que os anos teceram.

   É claro que também sou fruto dum tempo feito da sua proximidade.

  Talvez a saudade exija ser citada.

 

30
Out21

Alvor à distância da memória (1)

Joaquim Morais

 

    Ofereciam-se a terra e o mar, e a vida era feita

  da rude simplicidade do trabalho.

 

 

 

 

   Num lugar assediado pelo mar, presumível seria que a maioria dos homens traçasse nele os seus caminhos.

   Alguns havia, poucos, que no redor a terra tomara; uns por herança, e outros, eleitos, a quem ela sorrira e convidara, para que nela fossem: eram pequenos agricultores que cultivavam hortas de que a aldeia se valia, e colhiam do sequeiro a doçura dos frutos que o sol dourava.

  As mulheres dos que o compromisso à terra ligara, trabalhavam nela conjugando o esforço com a sua condição, prevalecendo nas tarefas, que, portas adentro o costume ditava.

  As outras, a quem o mar coubera por conjugal união, ajudavam a cuidar das artes de pesca, tratavam dos filhos, tinham a seu cargo domésticos afazeres, e algumas, ainda palmilhavam esforçados caminhos, para, em fumeiros e fábricas de conservas, acrescentarem ganhos que suavizassem a vida.

 

  Do que em terra e no mar a dureza do trabalho mostrava, o destaque ia para os que no mar se mostravam mais capazes.

Havia sempre quem dele tirasse maior proveito por melhor sabê-lo.

  A terra, previsível demais para realçar desempenhos, não se prestava a graduar os seus obreiros.

  As diferenças, provinham da excelência ou da vulgaridade das espécies que nela cresciam.

 

  Os dias na aldeia eram feitos de rotinas, e a novidade pouco ou nada se atrevia.

  O mar e a terra eram o suporte de vida, e o bem-estar decorria do adequado aproveitamento dos frutos do trabalho, tendo por certo, que o caprichoso decorrer do tempo nunca permitia certezas na sua obtenção.

  A consciência do risco de privação, levou a que não existissem hábitos nem práticas de desperdício.

 Quando no inverno se demoravam temporais, a ria espantava inquietações e temores, valendo a todos os que nela buscavam a mesa da sobrevivência.

  Para lá da generosidade, tudo o que crescia era de sabor reconhecido, com destaque para as ameijoas, com toda a justiça elogiadas, e desde sempre consideradas simbólica iguaria.

 

  Adequado à dimensão da aldeia havia também um pequeno comércio. Era importante para todos, e ajustava-se aos cenários que o tempo tecia. A incerteza dos ganhos obrigava por vezes ao prazo, ao coração, e ao fardo do rol, que, nalguns casos, podia levar a prolongada, e por vezes até, incobrável dívida.

 

 

  Em casa, não havia o conforto da água fácil do nosso tempo. Existia no seu lugar, a escassez imposta pelo diminuto volume do cântaro de barro, que a voz do aguadeiro lembrava sempre que passava.

  Tal como a água, a iluminação ainda estava longe do que temos hoje. A opção generalizada era a dos velhos candeeiros a petróleo, com torcidas que exigiam apuro no corte, para evitar tisnaduras que as imperfeições do talhe produziam na chaminé.  

  Eram um pôr do sol descolorido, e deixavam no ar o desagradável cheiro da sua combustão.

 

  Em certas alturas, e determinado por ocorrências e assuntos que o interesse comum recomendasse levar ao conhecimento público, um homem bradava de rua em rua, convidando à atenção e à escuta.

  A mensagem era feita de diversidade, e o vozeirão empenhava-se em fazer chegar o recado do mandador.

  Alertadas pelo pregão, as mulheres vinham à porta vestindo graciosos bibes, e enxugando as mãos a pingar tarefas de cozinha, em encardidos aventais.

  Esclareciam as falhas do ouvido, e avaliavam na proposta algum interesse ou benefício.

 Os anúncios, sugeriam na maior parte dos casos, produtos que vinham da terra ou do mar, habitualmente do agrado de todos, e que se ajustavam ao desejo e à carteira das famílias.

  Por vezes apregoava-se também a perda dum objecto de alguma valia, com a promessa de alvíssaras aos que o achado contemplasse.

 

  Vinham de fora e no tempo certo, os que a proviam de algumas coisas que o hábito adquiriu para acrescentar à vida na aldeia. Deslocavam-se em carroças, anunciavam ruidosamente a sua vinda, e tornaram-se presença familiar e alegremente aguardada.

  Traziam com eles a diferença de outros lugares.

 

 

05
Set21

O outro tempo da pesca da sardinha

Joaquim Morais

 

 

 

 

   De cristal o mar e cintilantes as formas que o animam. Despontam na flor da água, ondulando a timidez. Navegam os beijos do vento, até que o tempo diga se o porvir mantém gentil o sopro, ou se é feito de gene capaz de embravecer.

   Sem pétalas de sal à vista, parecem mais talhadas por delicado cinzel, de presumível pertença a amistosa viração.

Muito ao largo, cercada do azul que o sol acende, e sem que à vista conceda a terra mostra alguma, há uma traineira que ao mar lançou a sua rede.

   O mar é fundo e não apoquentam as incertezas da pedra; por isso, a retenida corre vagarosa nos tambores do guincho; há-de trazer à borda por bombordo, as argolas que fecham a rede, barrando a fuga pela aberta, e encerrando do lance a parte primeira.

   Desponta o sol e descobrem-se as cabeças em respeitosa saudação.

   Faz-se tempo de alar a rede; a prendem as mãos e se ensaia a melopeia que a adoça.

Imensa, negra de azeviche, repassada de breu e voejada de estridentes gaivotas,estende-se como um leque ao lado da embarcação.

  O canto e os braços em esforçada sintonia, e a rede, medrando a bordo, pesada e vagarosa, preenchendo a ausência semeada no mar da esperança.

   Na popa desenham-se as voltas do corcho, que cresce com a rede em criteriosa arrumação.

  A cantilena confronta a canseira; desafia-a na monocórdica harmonia que alguém entoa; depois, a uma só voz, a solidária resposta da companha às pretensões do desalento.

  Prossegue a faina melodiosa e dura.

  Exige-a o mar, tomado nas entranhas. Por ora, apenas esforçado labor, que reina a bonança e o tempo sorri.

  Vão os olhos percorrendo a rede que se apouca. Buscam nos sinais vislumbres de pão.

  No convés que corre por bombordo da popa às argolas, cresceu o corcho e a rede, e no barco a graça da inteireza.

  Na chata julga-se o lance; mede-se o sucesso ou o fracasso; as razões se de revés se trata, que a sorte explicações dispensa.

  Afloram cardumes que percorrem a rede que o canto aligeirou e os braços porfiaram.

  Do cerco já muito abreviado, irrompe um turbilhão de prata vibrante, que ilumina o olhar.

22
Ago21

Fortunato, o pescador

Joaquim Morais

 

 

 

 

   No lugar onde somos, o azul vai muito para além do que o céu nos mostra, a terra é pobre e acanhada, e o rumo era quase sempre feito desse outro azul, mais rasteiro, que o tempo escreve, os olhos preenchem e a vida obriga.

   Quando Fortunato, muito novo ainda o decidiu, talvez ele já o quisesse, por perto.

  Gerada em precoce cumplicidade, a relação que cedo estabeleceu com o mar, foi sempre feita de genuína afeição, e de desafios que os anos foram tornando cada vez mais aliciantes pela crescente exigência.

  Do mar, o acolhimento dado aos que o relevo assinala, e que nele se afirmam com a devoção própria das liturgias da sobrevivência.

  O que dele recebeu, também foi a medida do seu respeito e humildade, e o reconhecimento do seu nada, perante a desmedida vastidão, e a infindável energia da sua natureza.

 

  Mestre do anzol na sua expressão mais simples: a leitura perfeita da mostra elementar; uma linha que a mão segurava e traduzia como ninguém as mensagens dos fundos; alguns anzóis que a experiência armava, e a isca das circunstâncias preenchia.

  Tudo isto, associado a um particular jeito e modo de fazer, deram a Fortunato a reputação que todos reconheciam.

  Na vida dum pescador o êxito ficava muitas vezes ligado à sorte, mas a argúcia deste homem banalizava o papel do acidental na arte que abraçou.

  Apesar de todas as incertezas do ofício, raramente o seu bom desempenho, foi aleatório.

 

  Pescava lulas à noite, com os faróis a petróleo na borda a arrancá-las do fundo e do redor, e com tóneiras forradas de brancura, que ele agitava com gestos calculados para fisgá-las.

  Conservava-as dentro de água em cesto próprio, preso na chumaceira e encostado às obras vivas que o verdugo estremava.

  Por vezes, as guelhas atraídas pela luz e pelo recheio do cesto, destruíam-no e devoravam as lulas.

  Quando a pescaria decorria sem incidentes, o nascer do dia fá-lo-ia pescador de corvinas, de pargos e de dentões.

  Usava para isso as lulas como isco, anzolando-as de maneira a mantê-las vivas, e atrair pelo movimento, as espécies que o desejo elegera.

 

  Alguns relatos de vivências piscatórias na primeira pessoa, trouxeram-me à memória a última grande obra de ficção com que Hemingway nos presenteou: o velho e o mar.

  Tal como o velho Santiago, Fortunato teve nas corvinas, (sem o desconforto dos tubarões), os seus espadartes gigantes, e os desafios que o levaram a envolver-se em duras disputas, que a natureza hostil e desajustada do meio, tornavam mais cansativas, por demoradamente sofridas.

  Algumas vezes arrastado por peixes enormes durante muito tempo e por grandes distâncias, Fortunato viveu as suas capturas com o esforço que as situações exigiam, e a sabedoria que a experiência ia produzindo.

 

  Nos últimos anos, a arte do anzol tornou-se insuficiente pela acentuada baixa das espécies, o que o levou a ensaiar nas redes, uma nova forma de assegurar a subsistência.

  O seu tempo de mar, deu lugar como em muitos outros pescadores, ao tempo da ria em Alvor. À agitação do oceano seguiu-se a tranquilidade lagunar e a sua descontraída fruição.

  Sempre com o mar por perto, teve em permanência e de viva voz, notícias suas.

06
Set20

carta a uma professora

Joaquim Morais

   A escola primária era uma imposição, e raros os que colhiam algum prazer na sua frequência. A rua e os espaços abertos foram sempre os lugares primeiros para a brincadeira, e estavam sempre presentes do nascer ao pôr do sol, com todos os ingredientes reclamados pela gente moça. Era nesses lugares, naquela época plenos de liberdade festiva, que as exigências da idade verde encontravam eco, e, ao contrário da inércia dos bancos escolares, celebravam a vida a cada instante.

   O meu tempo de criança passado nos finais da década de cinquenta, tem lugar neste cenário de natural privilégio, e a escola acontece da primeira à terceira classe, num ambiente repressivo e sombrio, incapaz de concorrer com o que lá fora estava à minha disposição.

   Até que, chegado ao último ano da então chamada instrução primária, a novidade vem pela mão duma professora nova.

   Acabado o curso do magistério primário que lhe conferia o direito de exercer pela primeira vez o ensino, coube à Senhora Solange Maria da Palma Fernandes trabalhar com os alunos da quarta classe da escola primária de Alvor onde eu estava incluído.

   A propósito desse tempo de escola único, passado consigo, escrevi-lhe uma carta. Já há algum tempo. Guardei-a porque não sabia do seu paradeiro. Leio-a muitas vezes. Para si. Leio-a como quem dita e recorda-me o que no banco da escola escrevia ditado por si.

   Tenho-a entre as coisas que mais prezo.

   Sem saber do seu lugar de agora, decidi enviá-la para parte incerta, na ilusão do feliz acaso.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

   Cara D. Solange Maria da Palma Fernandes

 

 

 

 

   Os tesouros da infância, são sempre o resultado da vivência de sublimes trechos existenciais, numa altura em que os sentimentos emergem da forja das emoções, passando por isso a constituir referências para a vida, permanentemente cintilantes e presentes.

   Escrever-lhe, é, de alguma maneira, reencontrar-me com o pequeno tesouro que constituiu algum do meu tempo de escola, protagonizado pela figura graciosa duma professora que o pensamento amiúde aflora, e faz despontar um sorriso, uma lembrança precisa, um episódio alegre, uma vivência que a infância registou indelevelmente preciosa.

   Passaram seis décadas. Não obstante, a memória, esse écran da vida onde desfilam as imagens das pequenas felicidades que a compõem, teima em iluminar-se e revelar esse tempo de excepção, onde os dias se cumpriam sucessivamente fascinantes, ao compasso do pulsar pleno, que nove anos de vida naturalmente impunham.

   Frequentava então a quarta classe. Os três primeiros anos não tinham sido muito estimulantes, já que, as recordações que deles trazia, reflectiam, de algum modo, a repressão e os laivos de brutalidade, com que eram agraciados, os que por força das circunstâncias, tinham naturais dificuldades. Aliás uma práctica, na época acho que generalizada. Por todas as razões próprias duma criança cujo entendimento da vida se está a fazer, a metodologia expressa teria mais efeitos dissuasores, do que um despertar para a via do saber.

   É neste contexto, em finais dos anos cinquenta, princípios da década de sessenta, que a senhora, nessa altura penso que a iniciar-se na profissão, chega a esta terra, para ministrar aos alunos que comigo partilhavam a sua aula, os ensinamentos que encerravam a chamada instrução primária, ratificada depois pelo exame final.

   Desde logo, a sua figura afável e simpática espantou os nossos receios, e depressa se gerou um clima de empatia, que transformou a aula num local desejado, onde o interesse pela aprendizagem competia de igual modo com a ânsia de brincar. Foi uma sensação nova, um prazer inusitado, uma lição, que, por essencial nunca esqueci.

   Esse ano passou, iniciei os estudos liceais, e fui surpreendido pelo convite para participar na festa do seu casamento. Naturalmente sensibilizado, na medida em que me permitiam os dez ou onze anos, lá fui com um outro colega e amigo da escola, também convidado.

   Entretanto os anos passaram. Cresci; fiz-me homem; casei; tenho duas filhas , um neto e uma neta que me preenchem a vida já há alguns anos liberta do peso das obrigações profissionais, e vivo com a relativa tranquilidade que me permite ser.

   Perdi o seu contacto, mas não perdi a lembrança desse tempo. Algumas vezes, quando encontrava alguém da sua terra, perguntava se a conheciam, se sabiam do seu paradeiro, como é que estava, enfim, procurava o fio duma meada que o tempo e as circunstâncias da vida haviam enredado, mas que a vontade teimava em libertar.

   A poeira dos anos e os meandros da vida nublaram o caminho até si, mas a luz da sua presença manteve-se acesa, e continua a iluminar o menino que o homem conserva.

   Por isso aqui estou.

   Ser adulto, é também ser a criança que as recordações exigem.

 

 

 

 

Joaquim António da Costa Morais

 

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