Carlos Nicolau Jaques, o pescador e o homem
Chamava-se Carlos Nicolau Jaques, mas na terra onde sempre viveu, se alguém precisasse de citá-lo para dele dizer o que a ocasião exigisse, poucos o reconheceriam no nome com que o baptismo o designara para a vida.
A alcunha de “pão e metade” relegou os apelidos primeiros para o papel das raríssimas formalidades, e juntou-se ao nome, para colocá-lo sem reservas nas bocas do mundo.
É bem possível que Carlos ou familiar que o antecedeu, tenha, por dito, atitude, ou procedimento usado acerca desse popular alimento na medida referida, dado a alguém, pretexto para esse improvável epíteto. O rótulo acompanhou-o enquanto permaneceu entre nós, e esvaiu-se nas gerações que se seguiram, pouco ou nada motivadas para as coisas do passado.
Pescador no tempo que o vigor lhe consentiu, Carlos foi também conhecido pela sua paixão pelo cinema e pelo particular entusiasmo que lhe suscitavam os filmes de aventuras.
Facilmente contagiado pelo desenrolar da acção, comentava com gestos e falas as cenas que mais o inflamavam, desfiando por elas um agitado rosário de emoções.
Baixo, dotado duma invulgar força, viu-o sempre a abrir as procissões nas festas religiosas, transportando o enorme pendão a que ninguém mais se atrevia: adereço cujo peso considerável aliado à grande superfície, tornava o seu transporte proeza para poucos. O enorme esforço percebia-se no rosto e no traje de Carlos, tomados sempre por abundante transpiração.
Recordo na sua face a permanente escrita do sol, matizada pelo rosado que o esforço acendia, e coberta por esse extemporâneo e copioso orvalho.
Chegaram-lhe bem cedo as propostas do mar: de sul acenava-lhe o mar inteiro; a oriente, para cumprir o arco que ilustrava o dia, erguia-se da flor das águas o sol, trazendo com ele a cor dos alvores levantinos; inundava de luz o oceano, até ao quadro da colorida decadência que os poentes celebravam e o abismo afundava.
Com o olhar prenhe de fascinante azul e nas suas costas breve e ocupada terra, que outro senão o mar.
Os galeões ocuparam parte das suas andanças pelo mar. As extensas e pesadas redes da faina iniciaram o molde e a têmpera da sua atlética figura; os elementos lapidaram-lhe o rosto; sopraram nele o engenho agreste da sua arte e deram-lhe o ar olímpico dos que merecem o sorriso da eternidade.
Após o tempo da arte do cerco na pesca da sardinha a bordo dos galeões, Carlos decidiu-se pela pesca à linha, passando a desvendar pesqueiros e fundos , registando referências noturnas e diurnas que a vista lhe oferecia, e criando mapas dos lugares que a experimentação e a prática ia revelando frutuosos. Quando às coordenadas da memória se juntavam ventos, correntes e águas favoráveis, era quase certo o sucesso das pescarias.
Tinha um pequeno barco a que chamou “pirata”; movia-o a força dos seus braços, e, quando bonançoso, o vento que, emprenhando a carangueja, fazia dele uma gaivota à flor da água.
Solitário na pesca e parco de palavras, trazia no andar o desenho das vagas e no olhar a distância que a terra negava; nas mãos, escavadas pelo punho dos remos, encaixava na perfeição a vara do pendão, que os braços carregaram com firmeza anos a fio, perante a admiração de todos.
Deixou-nos cedo; O coração, que as emoções foram consumindo ao longo da vida, privou-o delas aos sessenta e três anos