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Alvor,a terra e a ria

Alvor,a terra e a ria

01
Jul23

Belchior

Joaquim Morais

 

 

  Belchior há muito que é parte da ria: Uma pequena extensão móvel que se desloca pela baixa mar, sempre que a manhã, por vezes a tarde, coincidem com esse vazio de águas que o refluxo da maré desenha todos os dias ao longo do seu curso.

  Franzino, curvado sobre a terra para olhá-la de perto, parece ter encontrado nessa arte rasteira da apanha de amêijoa, uma espécie de culto a que se obrigou por insondáveis razões.

 

  Para os que o conhecem e costumam vê-lo nessa faina, o seu perfil, trazido pela proximidade ou pela lonjura, será porventura a pontuação que à leitura da ria sentido.

  Para os outros, a figura, o semblante e a determinação, farão certamente aportar aos seus olhares no tempo devido, a estreiteza dos laços que o vinculam a esta janela de águas vivas.

 

  Quando os rigores do tempo, pela idade e pela aparente fragilidade, recomendariam aconchegado recanto, Belchior faz assomar o espanto aos que o sinalizam, descalço, de oleado vestido e sueste na cabeça, no meio da intempérie.

 

  A sua ausência, rara, e com origem na imponderável força que as circunstâncias por vezes tecem, tem sempre a grandeza que a justifica, daí decorrendo que, a falta, por infrequente, legitima assim com acentuada razão a regra da sua assiduidade.

 

  Já passaram por ele mais de oito décadas. Foi sempre pescador: a arte do cerco nas traineiras, e a pesca artesanal do anzol, (vulgo aparelhos), foram as mais relevantes, e preencheram quase toda a sua vida de mar.

 

  Como a muitos outros, a quem o mar deixou de sorrir, a ria recebeu-o de braços abertos, mas nenhum outro a conjugou com a disponível inteireza da sua constante presença.

 

 

03
Jun23

As Fases da Ria

Joaquim Morais

 

 

 

 

  Esteve quase sempre longe dos olhares do mundo. Viam-na os que em seu redor se fixavam, e, sobretudo, os que nela decidiam modo de vida, ou dela faziam caminho para o largo.

Para esses, o olhar, essencialmente comprometido com o pão, raramente era animado por vislumbres contemplativos.

 

  De entre os que visitavam a terra que lhe deu o nome, eram poucos os que a afoiteza convocava para o desafio de percorrê-la. Ao tempo, o trajecto e o conforto raramente coincidentes, suscitava muitas vezes a hesitação, e abria quase sempre caminho para a recusa.

 

  Viam-na à distância, privada da inteireza que só os detalhes lhe conferem, e desfrutavam-na apenas à mesa saboreando as suas diversas iguarias, com particular destaque para as deliciosas ameijoas.

 

  Isentos de sérias obrigações, e fazendo da diversão razão maior, foram os mais pequenos, onde felizmente me incluo, que, atraídos pelo seu mágico chamamento, a ela se chegaram e com ela firmaram singelo compromisso.

 

  Sem o calvário das tormentas, que os ventos por vezes teciam na vastidão oceânica, a ria oferecia-se mansa e disponível.

 

  As crianças fizeram-na sua semeando nela as flores das suas primaveras; navegando os impulsos da verde condição; guinchando a vida e chapinhando a nudez em lamacentos regatos; mareando toscos barcos, que, guiados pelas pétalas da mão, ou soprados pelos ventos do desejo, faziam da noite o palco onírico de náuticas proezas.

.

 

  A passagem do tempo, as mudanças que em nós iam ocorrendo, e o constatar mais ou menos explícito da sua generosidade, fizeram considerá-la para lá da lúdica feição: sugeriram novas abordagens, e tiveram como resultado a exploração dos seus recursos e decorrente descoberta dos seus tesouros.

  O início foi um suceder de emoções,e o entusiasmo resultante, muito próximo da juvenil euforia.

  Foi uma fase intensa, duradoura, e que havia de manter-se enquanto colorido o quadro da frescura física.

 

  A diversidade disponível, impossibilitava delimitar no tempo, a tarefa da sua pesquisa e entendimento. Era uma iniciativa para a vida, mas as fronteiras do saber pleno, ficavam sempre muito longe da maioria das pretensões.

  A ria inteira, era apenas dos poucos que ela fizera cúmplices.

 

  Entretanto, a ria abriu-se ao mundo e ficou à distância dum olhar.

 

  E aos meus olhos, livres de juvenis anseios e esperançosas pescarias, chegaram as imagens que, sendo iguais ao que sempre foram, ocupam agora toda a largueza do olhar, e serenam na perfeição as águas deste tempo.

 

  É talvez por isso, que a vejo todos os dias como se fosse a primeira vez.

 

 

com cânticos de algas e de ventos,

o oceano exalta o reencontro

e a terra celebra o orgulho da raiz.

É uma gota de universo;

será decerto um poema;

porventura branda inquietação;

é janela clara e alucinante

onde o olhar se afunda,

as gaivotas florescem,

e o mar respira o sopro das luas.

 

 

15
Mai23

As Andorinhas e a Ria

Joaquim Morais

 

 

 

 

 

  Não buscam caranguejos, nem moluscos, tão pouco vermes, ou outros em que a lama da ria é fértil.

  As andorinhas ocupam um baixio que a vazante deixou a descoberto, e debicam o lodo tal como as aves aquáticas ao seu lado, como se da procura de alimento se tratasse. O que as move e faz diligentes no afã que envolve o pequeno bando, não tem a ver com gastronómicos intentos.

 

  Chegaram como sempre com a primavera. Deixam África onde passam o inverno, quando o desconforto climático, eventualmente a escassez de alimentos, ou outras razões menos explícitas mas não menos importantes a isso obrigam, e têm o regresso agendado ao mesmo continente, a partir de setembro pelas mesmas razões. Movidas por questões de sobrevivência, seguem os ditames do instinto, que as conduzem por extensas rotas migratórias, e conseguem a proeza de chegar ao lugar pretendido sem auxílio de qualquer tecnologia.

 

  Orientam-se, é suposto, recorrendo à posição do sol e das estrelas; dizem entendidos, que talvez percebam o campo electromagnético da terra; e com razoável grau de certeza, valendo-se da memória para referenciar pontos visuais em percursos repetidos. Para os que inauguram a viagem, basta seguir os adultos que a realizaram antes e fazer dela o prefácio duma aventura que a sua frágil compleição não faria supor.

 

  Mas voltemos à ria e ao baixio que convocou a surpresa, ou nem por isso. Não sendo alimento a razão desse esgravatar, percebi desde muito jovem que afinal as andorinhas apenas acautelam o futuro, como progenitores cuidados e responsáveis. A lama com que preenchem os bicos, destina-se à construção dos ninhos, e andará à volta do milhar, as vezes a que esse vai vem obriga para a sua conclusão.

 

  Organizadas, pacientes e sem a pressão do calendário e do relógio humanos, cumprem-se ainda de acordo com naturais desígnios, e enquanto o permitir o precário equilíbrio do planeta.

 

 

 

 

 

As andorinhas plantam a ria no beiral.

Trazem-na no bico,

suspensa da terra e dos beijos

com que amanham a leira branca do futuro.

 

 

 

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