As Fases da Ria
Esteve quase sempre longe dos olhares do mundo. Viam-na os que em seu redor se fixavam, e, sobretudo, os que nela decidiam modo de vida, ou dela faziam caminho para o largo.
Para esses, o olhar, essencialmente comprometido com o pão, raramente era animado por vislumbres contemplativos.
De entre os que visitavam a terra que lhe deu o nome, eram poucos os que a afoiteza convocava para o desafio de percorrê-la. Ao tempo, o trajecto e o conforto raramente coincidentes, suscitava muitas vezes a hesitação, e abria quase sempre caminho para a recusa.
Viam-na à distância, privada da inteireza que só os detalhes lhe conferem, e desfrutavam-na apenas à mesa saboreando as suas diversas iguarias, com particular destaque para as deliciosas ameijoas.
Isentos de sérias obrigações, e fazendo da diversão razão maior, foram os mais pequenos, onde felizmente me incluo, que, atraídos pelo seu mágico chamamento, a ela se chegaram e com ela firmaram singelo compromisso.
Sem o calvário das tormentas, que os ventos por vezes teciam na vastidão oceânica, a ria oferecia-se mansa e disponível.
As crianças fizeram-na sua semeando nela as flores das suas primaveras; navegando os impulsos da verde condição; guinchando a vida e chapinhando a nudez em lamacentos regatos; mareando toscos barcos, que, guiados pelas pétalas da mão, ou soprados pelos ventos do desejo, faziam da noite o palco onírico de náuticas proezas.
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A passagem do tempo, as mudanças que em nós iam ocorrendo, e o constatar mais ou menos explícito da sua generosidade, fizeram considerá-la para lá da lúdica feição: sugeriram novas abordagens, e tiveram como resultado a exploração dos seus recursos e decorrente descoberta dos seus tesouros.
O início foi um suceder de emoções,e o entusiasmo resultante, muito próximo da juvenil euforia.
Foi uma fase intensa, duradoura, e que havia de manter-se enquanto colorido o quadro da frescura física.
A diversidade disponível, impossibilitava delimitar no tempo, a tarefa da sua pesquisa e entendimento. Era uma iniciativa para a vida, mas as fronteiras do saber pleno, ficavam sempre muito longe da maioria das pretensões.
A ria inteira, era apenas dos poucos que ela fizera cúmplices.
Entretanto, a ria abriu-se ao mundo e ficou à distância dum olhar.
E aos meus olhos, já livres de juvenis anseios e esperançosas pescarias, chegaram as imagens que, sendo iguais ao que sempre foram, ocupam agora toda a largueza do olhar, e serenam na perfeição as águas deste tempo.
É talvez por isso, que a vejo todos os dias como se fosse a primeira vez.
com cânticos de algas e de ventos,
o oceano exalta o reencontro
e a terra celebra o orgulho da raiz.
É uma gota de universo;
será decerto um poema;
porventura branda inquietação;
é janela clara e alucinante
onde o olhar se afunda,
as gaivotas florescem,
e o mar respira o sopro das luas.