Primeiro os idosos
Quando saíamos para revigorantes caminhadas nos passadiços da ria de Alvor, o caminho de regresso a casa levava-nos muitas vezes à mercearia da Sandra.
A sua vista lembrava quase sempre uma necessidade de última hora, e a leitura das estantes ditar-nos-ia tudo o resto, que, por vezes, não era assim tão pouco.
Para quem a memória das faltas se apagara, o volume de compras final era deveras surpreendente.
Voltou a acontecer desta vez. Aliás, acontecia muitas vezes.
O espaço era acanhado, o que obrigava por vezes a esperar lá fora.
Na altura, a pressa não me afligia. Aguardei no exterior, e surgiu entretanto a oportunidade de conversa com inesperado interlocutor, pelo que, o tempo, feito de palavras, suavizou a demora, e fez da espera agradável prefácio.
Após falas de poucos dedos, e quando me pareceu acertado, entrei, mas a estreiteza do espaço tornava difícil o giro entre prateleiras.
Condicionado pelo abreviado recinto e rodeado de gente, virei a atenção para as coisas pretendidas, e para outras que as estantes iam acenando.
Compras terminadas, e, tal como noutras vezes, a surpresa da quantidade que a ideia inicial não pensara.
Provido do indispensável e do acessório, cheguei-me à fila da caixa e aguardei.
À minha frente, de sacos na mão e deslocada da ordem, uma jovem conversava animada com alguém, descuidando o lugar. Já perto da caixa e não querendo adiantar-me, alertei-a dizendo que era a sua vez.
Olhou-me, com ar feliz e sorridente, e disse-me:
- Não, faz favor, primeiro os idosos!
Agradeci, claro, e sorri também. Muitos mais riram à minha volta. Alguém, pela primeira vez me chamara idoso, o que, não sendo totalmente verdade, também não era inteiramente mentira. Ainda não carregava o peso da palavra, mas já percebera a mudança.
Raios partam o tempo, o que nos faz.
Lá fora, disse a um amigo de tempo igual e rimos, rimos da nova, “velha” condição.
As marcas do tempo, as claras e subtis evidências do dia-a-dia e a transparência sombria do envelhecer, comprovadas pelo olhar risonho de alguém a quem os anos ainda não pesam.