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Alvor,a terra e a ria

Alvor,a terra e a ria

28
Set24

Francisco da Adelina

Joaquim Morais

 

  Quando acontecia surgirem duvidas na identificação dos que, tendo igual graça, e quando ausentes vinham à conversa, era costume associar ao nome, e como apelido, o nome das mães, ajudando com isso ao seu mais fácil reconhecimento. Adoptado ficaria a partir daí o informal aditamento e o seu uso, sem necessidade de administrativa formalização.

  Por idêntica razão foi o nome de Francisco acrescido do maternal apêndice, passando a ser aos olhos de todos e para o resto da vida, o fulano de sua mãe

 

  Francisco da Adelina foi sineiro, jornaleiro e pregoeiro; conheci-o durante a infância e a adolescência, e a sua exígua e indefesa figura suscitou-me sempre uma estranha ternura. Era uma espécie de criança muito velha, mas sem família, nem os costumados laços afectuosos que entre parentes se costumam desenvolver e nos confortam por sabê-lo.

 

  Andava descalço, com camisolas gastas que raramente inaugurou, e quase sempre em discordância com a estação; calças já roçadas noutros corpos, remendadas, enormes, presas na cintura com uma corda que passava pelas presilhas dum inexistente cinto, e com as dobras do que sobrava subindo nas breves pernas, deixando à vista uns pés minúsculos onde se acumulava sujidade sem limites.

 

  Conhecido pelos pregões que anos a fio vozeou pela aldeia fazendo chegar aos ouvidos de toda a gente as novidades que a ocasião tinha disponível, ou o anuncio de qualquer coisa que sumira, e que alguém, com a promessa de alvíssaras esperançava recuperar, Francisco tornou-se também popular e estimado pelos jornais que vendia, preenchidos das frescas notícias que se ofereciam aos poucos que eram capazes de os decifrar.

 

  A vida na terra também passava nessa altura pelo soar do sino, e Francisco, que o compromisso elegera para levar a toda a gente os seus sonantes recados, fazia-o sempre que religiosos imperativos assim o exigissem. Ao fim e ao cabo era o sineiro, e respondia perante a igreja a que o sino estava particularmente associado.

 

  Através dele convocava os fiéis para a oração, dizia do tempo, repicava festas, baptizados e casamentos, dobrava a morte em confrangedora dolência, e quando pairavam ameaças que a todos diziam respeito, tocava a rebate para que fosse decidida solidária e adequada resposta.

 

  Já não se ouvem os sinos; já não há quem os toque nem quem os entenda.

 

  Francisco viveu numa pequena casa sem janelas, escura e funda, com a luz que a porta consentia incapaz de refrear o sombrio quadro da sua abreviada dimensão.

  Tinha uma companheira, a “ti zorrinha” com quem partilhava o nada da sua vida, e de quem recebia coisa nenhuma, preenchendo-se mutuamente com o vazio decorrente das suas acanhadas existências.

 

 

21
Set24

Fernando (farinha), a metáfora do mar

Joaquim Morais

 

  Ao mar se fez ainda verde, que outro, por raro, difícil seria, sendo como era em tons de azul a oferta que soía.

  O pão sabia a sal, na mesa de quase todos.

 

  Fernando, que a terra decidiu pelo canto, alcunhar de “farinha”, foi bem maior que o contido nesse redutor apelido. Por ele passava apenas a voz, que, mediana no desempenho, nunca foi o melhor caminho para chegarmos ao entendimento da sua real valia.

 

  O mar e a faina navegaram-no como a nenhum outro, deixando nele relevante marca, e dele fazendo especial discípulo.

 

 E foi nessa tarefa de convocá-los muito para lá das suas fronteiras, fazendo deles menção nas mais improváveis circunstâncias, que Fernando revelou invulgar e precioso talento.

 

  Pouco conhecida dos que escolheram terrenos ofícios, a terminologia náutica marca a diferença para tudo o resto que a palavra contempla. Dizer do mar, dos ventos, do navegar, dos barcos, das artes de pesca e de tudo o mais que envolve a relação, significa para os que nela decidem viver, a aprendizagem dum património linguístico fascinante, que é parte fundamental da nossa tradição marítima, e que resulta da necessidade de entendimento sem equívocos em plena faina.

 

  Pela ria chegou ao mar aberto; nele semeou desmedidas linhas de canseira, que consumiram o olhar e acenderam a noite e a esperança. Puxou redes em chachorros, secadas e traineiras, e em latitudes pouco ajustadas à sua carnadura, foi-lhe imposto em precário batel, um mar feito de novos imprevistos.

  Do mar e do que lhe estava associado veio toda a matéria para o poema da sua vida; só tinha que o recitar ao mundo.

 

  Da bacalhoeira vivência, e de sua lavra, cantou os versos que a diziam: singelo retrato da exigência da faina, dos benefícios de bem cumprir as tarefas, da vida a bordo, dos constrangimentos, do raro e passageiro ócio, dos proveitos que a arte de pescar trazia aos mais capazes. e tudo o mais que, não tendo sido dito, podermos supor acontecer a quem vivia durante meses a fio no reduzido espaço dum navio que a modernidade não consente, cercado de céu e mar férteis em diferentes e inesperadas ameaças

 

  De Portimão, compôs a imagem da pitoresca azáfama do seu cais nas décadas de cinquenta e sessenta, e levou-a pelo canto a toda a gente. Descrição fiel, que a linguagem coloquial realça, e a alusão a recorrentes e curiosos factos se revela particularmente interessante para os que a vida obrigou ao convívio com essa alvoroçada realidade.

 

  Por imperativo de saúde fez uma pequena cirurgia no hospital de Portimão, fazendo dela posterior relato, num desfiar de vocabulário próprio da faina, engendrando para alguns procedimentos cirúrgicos da intervenção e para o ambiente e logística do bloco operatório, invulgares imagens alegóricas que a sua imaginação ia ditando.

  Esta linguagem não era de fácil entendimento para os que viviam à margem do seu mundo, sendo no entanto notório, que a sua descodificação surpreendia sempre todos pela curiosa e divertida originalidade.

 

  São incontáveis, e muitos deles registados pela memória dos que viviam atentos ao seu delicioso discorrer, os exemplos que o dia a dia e as conversas de ocasião que o envolviam, nos ofereciam.

 

  Tinha um olhar algo ausente e apagado, mas sempre que na sua expressão o assomava demorado e maroto, fitando enviesado o seu interlocutor com brejeiro sorriso e pausada atitude, era quase certo que o mar o tomara e que a maré cheia do seu pulsar havia de inundar de versos o mundo à sua volta.

 

  Fernando foi metáfora do mar em toda a sua vida, e soube dizê-lo com a autenticidade que apenas os eleitos, (poucos), a ele vinculados por rara afeição e que dele se fizeram fiéis seguidores e intérpretes, ousaram conseguir.

 

 

15
Set24

OUTROS ENCONTROS

Joaquim Morais

 

 

  A rua foi sempre o sítio primeiro. Ponto de encontro nascido do desejo comum de dizer e de escutar, onde cada um urdia pela fala e a seu jeito, a singela malha de ocorrências que os dias teciam.

  Formavam-se grupos mais ou menos numerosos, em função do interesse das conversas, e da vocação dos envolvidos para prender a atenção e o ouvido. Predominavam nos lugares que o hábito elegia, e traziam à cena pela palavra o mundo da aldeia.

 

  Quando o tempo esfriava e a rua esmorecia, algumas vizinhas mais chegadas, juntavam-se após o jantar na casa de uma delas para conviverem. O hábito, socialmente exemplar, criou raízes, generalizou-se, e fez da terra um enorme centro de convívio, onde se suavizavam tensões, abrindo novos e divertidos caminhos, que achanavam o mar agitado do dia dia. Distinguiram-se mulheres, frescas no dizer, que chalaceavam os assuntos mais sérios e delicados, alargando as fronteiras da graça, e derrubando velhos e resistentes tabus.

  Para além da palavra, esses encontros eram férteis na produção de trabalhos, que cada uma decidia pelo particular saber, pela necessidade, ou apenas pelo prazer do desempenho.

  Tricotando, bordando, costurando ou fazendo empreita, e com um fundo de palavras que invariavelmente semeavam o riso e a boa disposição, foram serões inesquecíveis, que perduraram e fizeram-se exemplos bem sucedidos, da arte de conviver.

 

  Sempre que o verão trazia pela mão do levante a canícula africana, as noites expulsavam toda a gente de casa.

  Bancos rasteiros e cadeiras de atabua preenchiam o redor das portas e davam poiso às gentes, que com pachouchadas e dichotes convertiam a noite em prolongada e divertida tertúlia. Era assim por toda a aldeia quando o sueste se instalava.

 

            (Que vento é o sueste, que ainda de véspera fazia turvar a água dos poços?)

 

  É o mais desalmado de todos os ventos. Sopro rebelde, porventura nascido das angústias do tempo, faz do mar raivoso torvelinho, devorador de pacíficas areias. Entre o casario, remoinha a sujeira em nuvens que ferem o olhar, e que o cansaço há-de juntar, rasteiras, pelos recantos de ruas e terreiros.

  Repousa dos desmandos na frouxidão do sol, e, cúmplice da inquietante mormaceira converte a noite em palco caótico de sonhos e vigílias.

  Traz nas vagas as flores que o deserto secou, e faz assomar a lembrança dum trono anunciado por improvável bruma.

 

 

  Também na oficina do barbeiro se formavam animados grupos: por lá passavam os que, dedicados à notícia aí exercitavam, levando e trazendo, exultando quando percebiam relevante assunto, e, ufanos, rumavam a outros portos, sempre com a palavra pronta e o ouvido desperto.

  Alguns havia que lá iam pelos jornais. Uns, incapazes desde sempre de decifrar o mistério das letras, alimentavam a esperança que outros, nelas entendidos e dispostos a isso, lhes fizesse chegar o que ia acontecendo noutros lados. Falava-se de tudo no barbeiro, mas o futebol e o clubismo estavam sempre presentes. As tribos, envolviam-se em acesas disputas vozeirando argumentos e reclamando para as suas cores todas as razões do mundo.

 

  As tabernas e as mercearias também eram lugares de encontro.

  Nas mercearias predominavam as mulheres, que, por doméstico imperativo, abreviavam o tempo, aflorando assuntos para paleio futuro noutros palcos e fazendo prevalecer sempre o primado da casa e da família. Quando no entanto se conjugassem local e ocasião, e a razão aplaudisse, a veia oratória diria de si sem delongas nem papas na língua.

 

  Nas tabernas, onde apenas os homens tinham assento, (excepção feita à mulher do taberneiro,) o vinho era rei, prevalecendo pelo mérito dos seus excepcionais atributos.

 

                                                            (  A razão do vinho )

 

  Para lá da terra habitada, as cercanias de Alvor possuíam o tesouro das vinhas. As areias onde cresciam, estendiam-se, sobranceiras ao mar, até às arribas que as guarneciam e rematavam.

  O sol inteiro, a terra arenosa e as contidas águas, ofereciam às uvas características únicas que explicavam a valia da pinga.

As adegas abundavam apesar da pequenez da terra, e porque chegava longe a excelência do vinho, todas não eram muitas, para acolher os que vinham comungar da arte de beber o prazer do vinho.

 

 

  Apesar da realeza do vinho, era na assembleia dos súbditos que residia a matéria que aqui me trouxe. Os da terra e os outros, que a partir do S. Martinho ansiavam por traduzir o saibo das novas colheitas e opinar sobre elas, vinham numerosos. Discorriam sobre os atributos do néctar que a competência dos homens fabricara, e tropeçavam quase sempre na intenção de eleger favoritos. A experiência e o saber dos envolvidos na arte, acabava sempre por determinar uma qualidade transversal a toda a produção, diferindo apenas em particularidades, próprias da abordagem de cada um.

  O mérito, abraçava por isso todos de igual modo.

 

  O rumo e o tom das conversas nesses lugares era diverso. Com uma clientela de homens onde predominavam os que faziam do mar o seu modo de vida, era da dura arte de nele se afirmar e sobreviver que falavam; e faziam-no com imagens sonoras recheadas de palavras e expressões muitas vezes difíceis de entender, sobretudo pelos que, distantes dessa curiosa maneira de dizer, acabavam muitas vezes enredados na teia verbal daí resultante.

  A alteração das falas decorrente das prazenteiras libações punha à vista efeitos diversos: se por vezes acontecia que alguns mais tímidos, se faziam ouvir com tom e euforia desusados, outros havia habitualmente alegres, que eram repassados por estranha e comovente tristeza. Era no entanto mais comum, que em todas as tabernas o tom de voz subisse, e que a animação se instalasse.

  Às vezes, o convívio também trazia a surpresa do canto, que, nas tabernas, tinha no fado a sua expressão mais desejada; assim quando entre a clientela, marcava presença alguém agraciado pelo dom, era quase certo, que, a dada altura, o fado com toda a sua aura de nostalgia e sentimento, brindaria todos os presentes pela voz, pelo silêncio e pelas emoções que em cada um iria despertar.

  Preenchida assim de todos os pressupostos que a faziam, dir-se-ia que a taberna se cumpria.

 

  De entre o que era costume e para lá do que já foi dito, será interessante referir que nesta terra também se contavam histórias. Naturalmente associadas a tranquilos serões e outros convívios, nada impediria de acontecer, se oportuna fosse, diferente ocasião.

  Não era uma terra de letrados; pouco favorecidos pela época e pelas circunstâncias, foram quase todos vítimas do analfabetismo que o regime semeava.

  A tradição oral colmatara a ausência de livros e leitores, e, na continuidade, proclamou o conto como elemento essencial na formatação da memória e da consciência colectiva. Alguns contadores eram particularmente dotados, fazendo com as suas narrativas as delícias de crianças e adultos.

 

  Em criança, ouvi do meu avô materno alguns relatos, que, ora me prendiam pelo insinuante enredo, ora me espantavam pela estranheza, suscitando-me também por vezes, incómodo receio; tenho da feição bizarra de algumas dessas historietas, vaga memória.

  Apesar do seu ar habitualmente severo e até mesmo pouco simpático, meu avô transfigurava-se como narrador, pondo todo o seu empenho nesse papel e representando razoavelmente as figuras das histórias.

 

  As aldeias como Alvor, tinham nos anos cinquenta e sessenta do século passado hábitos sociais interessantes que em termos gerais tentei trazer aqui.

  Não pretendendo ser cansativo na abordagem, decidi fazê-lo pela rama, esperando mesmo assim ter avivado memórias e provocado alguns sorrisos.

 

  A rede social era concreta e genuína e acontecia pela espontânea necessidade de afirmar pelo encontro, a nossa humanidade; sem o outro não existimos; e todos também somos o outro.

06
Set24

A ESTIBA

Joaquim Morais

 

O pescador Carlos Nicolau Jaques, referido no texto anterior e também conhecido por Carlos “pão e metade” viveu com a família durante muito tempo num antigo edifício, que teria sido alojamento de trabalhadores duma eventual fábrica de transformação e conservação de pescado, ao tempo já inexistente, e situada em local adjacente.

 

Era uma casa com um enorme pé direito e acentuada degradação, circundada pelas águas da ria, e a que as marés vivas se chegavam marulhando nela os versos da nortada.

 

Como parte dum conjunto de outros edifícios então totalmente arruinados, o local era conhecido por estiba, e a designação pode ter relação com a actividade desenvolvida. O trabalho efectuado teve certamente a ver com a conservação de pescado para consumo posterior, e, pelo nome por que se tornou conhecido e foi passado ao longo de gerações, pode ter envolvido o ancestral método de perservar pela salga que a civilização romana deixou bem evidente ao longo da costa, nos inúmeros tanques utilizados para o efeito, e que, não muito longe deste local ainda existem.

 

Esse método ainda perdura nos nossos dias, é relativamente fácil de executar, e como desafio para os que gostam de experiências novas, passo a descrever:

 

A estiba de biqueirões é um processo de tratamento desses peixes azulados para posterior consumo, ainda usado por algumas pessoas e que envolve a sua acomodação num recipiente, (lata), em camadas e abundante salga, rematada com a colocação dum peso sobre eles. Cozinham nessa substancial moira, até que experiente avaliação o ache concluído. É um processo demorado, que decorre por alguns meses, e dá origem a um pitéu muito apreciado que se obtém após a sua cuidada preparação. Conservam-se em azeite depois desse procedimento, e são consumidos acompanhados por alho fatiado.

 

Por tudo o que foi dito, é bem possível, que nesse conjunto de edifícios de razoável dimensão a que chamaram estiba, se tenha desenvolvido um processo de salga industrial para conservação de pescado, semelhante a este.

 

 

 

 

 

 

 

 Nas fotografias que junto, a primeira identifica ao fundo a suposta casa para alojamento de pessoal, ainda de pé, e o espaço da provável fábrica já totalmente arruinado; a outra, ao que parece, retrata a fachada do que seria o edifício das ruínas em altura de laboração e o cais onde supostamente se efectuava a descarga do pescado, totalmente preenchido pelos barcos da época.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

estiba 2.jpg

cais antigo Alvor.jpg

17
Ago23

Carlos Nicolau Jaques, o pescador e o homem

Joaquim Morais

 

 

 

 

  Chamava-se Carlos Nicolau Jaques, mas na terra onde sempre viveu, se alguém precisasse de citá-lo para dele dizer o que a ocasião exigisse, poucos o reconheceriam no nome com que o baptismo o designara para a vida.

 

  A alcunha de “pão e metade” relegou os apelidos primeiros para o papel das raríssimas formalidades, e juntou-se ao nome, para colocá-lo sem reservas nas bocas do mundo.

  É bem possível que Carlos ou familiar que o antecedeu, tenha, por dito, atitude, ou procedimento usado acerca desse popular alimento na medida referida, dado a alguém, pretexto para esse improvável epíteto. O rótulo acompanhou-o enquanto permaneceu entre nós, e esvaiu-se nas gerações que se seguiram, pouco ou nada motivadas para as coisas do passado.

 

  Pescador no tempo que o vigor lhe consentiu, Carlos foi também conhecido pela sua paixão pelo cinema e pelo particular entusiasmo que lhe suscitavam os filmes de aventuras.

  Facilmente contagiado pelo desenrolar da acção, comentava com gestos e falas as cenas que mais o inflamavam, desfiando por elas um agitado rosário de emoções.

 

  Baixo, dotado duma invulgar força, viu-o sempre a abrir as procissões nas festas religiosas, transportando o enorme pendão a que ninguém mais se atrevia: adereço cujo peso considerável aliado à grande superfície, tornava o seu transporte proeza para poucos. O enorme esforço percebia-se no rosto e no traje de Carlos, tomados sempre por abundante transpiração.

  Recordo na sua face a permanente escrita do sol, matizada pelo rosado que o esforço acendia, e coberta por esse extemporâneo e copioso orvalho.

 

  Chegaram-lhe bem cedo as propostas do mar: de sul acenava-lhe o mar inteiro; a oriente, para cumprir o arco que ilustrava o dia, erguia-se da flor das águas o sol, trazendo com ele a cor dos alvores levantinos; inundava de luz o oceano, até ao quadro da colorida decadência que os poentes celebravam e o abismo afundava.

 

  Com o olhar prenhe de fascinante azul e nas suas costas breve e ocupada terra, que outro senão o mar.

 

  Os galeões ocuparam parte das suas andanças pelo mar. As extensas e pesadas redes da faina iniciaram o molde e a têmpera da sua atlética figura; os elementos lapidaram-lhe o rosto; sopraram nele o engenho agreste da sua arte e deram-lhe o ar olímpico dos que merecem o sorriso da eternidade.

 

  Após o tempo da arte do cerco na pesca da sardinha a bordo dos galeões, Carlos decidiu-se pela pesca à linha, passando a desvendar pesqueiros e fundos , registando referências noturnas e diurnas que a vista lhe oferecia, e criando mapas dos lugares que a experimentação e a prática ia revelando frutuosos. Quando às coordenadas da memória se juntavam ventos, correntes e águas favoráveis, era quase certo o sucesso das pescarias.

 

  Tinha um pequeno barco a que chamou “pirata”; movia-o a força dos seus braços, e, quando bonançoso, o vento que, emprenhando a carangueja, fazia dele uma gaivota à flor da água.

 

  Solitário na pesca e parco de palavras, trazia no andar o desenho das vagas e no olhar a distância que a terra negava; nas mãos, escavadas pelo punho dos remos, encaixava na perfeição a vara do pendão, que os braços carregaram com firmeza anos a fio, perante a admiração de todos.

 

  Deixou-nos cedo; O coração, que as emoções foram consumindo ao longo da vida, privou-o delas aos sessenta e três anos

29
Jul23

De braço dado com o mar

Joaquim Morais

 

Era calmo e tépido o mar inicial.

Ajustadas as velas ao sopro da vida,

navegaram no tempo preciso

as maternas rosas

e o hábito das águas;

habitaram submersos o fértil remanso,

e vieram ao mundo

marcados pelo indelével traço

da sua vital relevância.

O nascimento deixou-os

de braço dado com o mar.

Porque assomava a todas as janelas;

porque a todos

fazia chegar a sua voz,

e, por previsível e breve,

a terra se ter esgotado no olhar,

aceitaram o desafio da imensidão,

reinventaram as origens

num útero de tábuas e de sal

e fizeram-se ao mar.

22
Jul23

Quadros do acaso

Joaquim Morais

 

 

 

 

 

  Aumentaram consideravelmente na segunda quinzena de Julho as gentes que o verão costuma, e na estrada, que mais parece uma rua, a calma já vai dando lugar à crescente agitação, com apogeu marcado para Agosto.

  Os limites à velocidade acenam-nos em todo o percurso, mas semáforos, só existem os instalados numa zona comercial, que às vezes nos impedem, e nos mais apressados despertam por vezes um assanhado desempenho verbal.

 

  À aproximação do semáforo, reparei em alguém que me pareceu ter a clara intenção de atravessar a estrada em direcção ao centro comercial; abrandei e acabei por parar quando já digitava o mecanismo que lhe dava a cor da passagem segura. Era um homem de meia idade que transportava uma mochila, e acho que era estrangeiro. Porquê estrangeiro? Talvez por essa razão; às vezes olhamos e pensamos: deve ser estrangeiro; foi só por isso; penso que era; talvez fosse.

  Levava no olhar a relativa segurança do verdejante tom.

 

  Hora e meia depois voltei à estrada,(rua), para o regresso. O mesmo trajecto, em sentido inverso e feito de igual conteúdo.

 

  Abrandei no mesmo semáforo; aproximava-se alguém com a nítida vontade de atravessar a estrada; era um homem de meia idade que transportava uma mochila e vinha do centro comercial; parei no vermelho que o mecanismo entretanto digitado pelo homem me mostrou; acho que era estrangeiro; talvez fosse.

15
Jul23

Ainda as Palavras

Joaquim Morais

 

 

 

 

 

ECLOSÃO

 

 

Lembro-me de ouvi-las a nascer;

delicados botões,

animados pelo riso e pelo gesto,

ensaiando as flores

que haviam de explicar o mundo.

 

 

 

 

PALAVRAS

 

 

Há palavras que

recusam agitar o texto.

Acendem nas frases

a luz onde naufragam

adiando as derivas

da sua fértil obscuridade.

 

 

 

 

TALVEZ O VENTO

 

 

Quando a impertinência das palavras

convoca a insónia,

e a safra da vigília

nos concede insurrecta semente,

talvez o vento a leve

aos canteiros da indiferença.

 

01
Jul23

Belchior

Joaquim Morais

 

 

  Belchior há muito que é parte da ria: Uma pequena extensão móvel que se desloca pela baixa mar, sempre que a manhã, por vezes a tarde, coincidem com esse vazio de águas que o refluxo da maré desenha todos os dias ao longo do seu curso.

  Franzino, curvado sobre a terra para olhá-la de perto, parece ter encontrado nessa arte rasteira da apanha de amêijoa, uma espécie de culto a que se obrigou por insondáveis razões.

 

  Para os que o conhecem e costumam vê-lo nessa faina, o seu perfil, trazido pela proximidade ou pela lonjura, será porventura a pontuação que à leitura da ria sentido.

  Para os outros, a figura, o semblante e a determinação, farão certamente aportar aos seus olhares no tempo devido, a estreiteza dos laços que o vinculam a esta janela de águas vivas.

 

  Quando os rigores do tempo, pela idade e pela aparente fragilidade, recomendariam aconchegado recanto, Belchior faz assomar o espanto aos que o sinalizam, descalço, de oleado vestido e sueste na cabeça, no meio da intempérie.

 

  A sua ausência, rara, e com origem na imponderável força que as circunstâncias por vezes tecem, tem sempre a grandeza que a justifica, daí decorrendo que, a falta, por infrequente, legitima assim com acentuada razão a regra da sua assiduidade.

 

  Já passaram por ele mais de oito décadas. Foi sempre pescador: a arte do cerco nas traineiras, e a pesca artesanal do anzol, (vulgo aparelhos), foram as mais relevantes, e preencheram quase toda a sua vida de mar.

 

  Como a muitos outros, a quem o mar deixou de sorrir, a ria recebeu-o de braços abertos, mas nenhum outro a conjugou com a disponível inteireza da sua constante presença.

 

 

11
Jun23

As flores do passadiço

Joaquim Morais

 

 

foto limoniastrum.jpg

 

 

 

  Privados da flor que as ilustra, adormecem entre dezembro e fevereiro, não deixando, apesar disso, que a inércia comprometa a sua viçosa graça.

  Regressam em março para guarnecer de cor a margem esquerda da ria, e até novembro, vão animar a vista dos que por lá se passeiam, com os lilases variados das suas bonitas flores.

 

  Quando a vida nos permite o tempo que as inúmeras obrigações impediram em grande parte do seu decurso, é altura de olharmos em redor. Teremos por certo esta e outras surpresas, que nos farão despertar para uma realidade da qual fomos parte activa, e de que nos temos vindo a afastar tempo demais.

 

  As estações oferecer-nos-ão os frutos das suas árvores; reparar neles talvez espante a ausência que nos tolhe.

 

  A natureza também somos nós.

 

  É uma planta tipicamente mediterrânica, conhecida pelo nome científico de limoniastrum monopetalum, e pela designação comum de salado ou purslane seco.

 

  Tolera bem a salinidade dos terrenos onde está habitualmente implantada, mas pode embelezar os jardins das nossas casas, não necessitando de especiais cuidados. É resistente a pragas e a secas; não requer grande manutenção; não precisa de ser podada, sendo suficiente fertilizá-la apenas uma vez por ano. Multiplicam-se no verão atras de estacas.

 

  Tal como o salado, mas apenas na zona onde desponta o relevo dunar, portanto um pouco mais afastada dos terrenos salgados, há uma outra espécie, que, para além da utilização feita por alguns pescadores em Alvor há algumas décadas, e descrita por mim em post anterior, tem características idênticas e pode perfeitamente integrar-se em jardins. Tem o nome comum de Aroeira, sendo também conhecida por Lentisco: possui folhagem abundante, e tem de entre as suas valias paisagísticas, a possibilidade de gerar bonitas sebes.

 

  São plantas autóctones de raiz mediterrânica, sobretudo recomendadas para ter em conta num contexto de escassez de recursos hídricos.

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