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Alvor,a terra e a ria

Alvor,a terra e a ria

11
Jun23

As flores do passadiço

Joaquim Morais

 

 

foto limoniastrum.jpg

 

 

 

  Privados da flor que as ilustra, adormecem entre dezembro e fevereiro, não deixando, apesar disso, que a inércia comprometa a sua viçosa graça.

  Regressam em março para guarnecer de cor a margem esquerda da ria, e até novembro, vão animar a vista dos que por lá se passeiam, com os lilases variados das suas bonitas flores.

 

  Quando a vida nos permite o tempo que as inúmeras obrigações impediram em grande parte do seu decurso, é altura de olharmos em redor. Teremos por certo esta e outras surpresas, que nos farão despertar para uma realidade da qual fomos parte activa, e de que nos temos vindo a afastar tempo demais.

 

  As estações oferecer-nos-ão os frutos das suas árvores; reparar neles talvez espante a ausência que nos tolhe.

 

  A natureza também somos nós.

 

  É uma planta tipicamente mediterrânica, conhecida pelo nome científico de limoniastrum monopetalum, e pela designação comum de salado ou purslane seco.

 

  Tolera bem a salinidade dos terrenos onde está habitualmente implantada, mas pode embelezar os jardins das nossas casas, não necessitando de especiais cuidados. É resistente a pragas e a secas; não requer grande manutenção; não precisa de ser podada, sendo suficiente fertilizá-la apenas uma vez por ano. Multiplicam-se no verão atras de estacas.

 

  Tal como o salado, mas apenas na zona onde desponta o relevo dunar, portanto um pouco mais afastada dos terrenos salgados, há uma outra espécie, que, para além da utilização feita por alguns pescadores em Alvor há algumas décadas, e descrita por mim em post anterior, tem características idênticas e pode perfeitamente integrar-se em jardins. Tem o nome comum de Aroeira, sendo também conhecida por Lentisco: possui folhagem abundante, e tem de entre as suas valias paisagísticas, a possibilidade de gerar bonitas sebes.

 

  São plantas autóctones de raiz mediterrânica, sobretudo recomendadas para ter em conta num contexto de escassez de recursos hídricos.

15
Ago21

O ferro velho, a aldeia e o vinho

Joaquim Morais

 

 

   A chegada do ferro velho, espevitava e agrupava a moçada da aldeia. Conduzidos por juvenil entusiasmo, viam no discreto aflorar do seu sorriso, sobejos motivos de ingénuo contentamento. Juntavam-se à sua volta, e faziam a festa e o cortejo até que o regresso o obrigasse.

   Enquanto criança, habituei-me à sua presença e festejei-a como todas as outras.

   Vinha de fora, dizia-se. Da lonjura que a vista não cobria nas andanças do hábito.

   Por costumeiras, as vindas passaram a ditar ao lugar novas regras: excluir do lixo o conteúdo do pregão, e com isso ainda obter algum proveito.

   O correr do tempo entre visitas, iria lembrá-lo sempre que os eventuais quadros fossem ao encontro das molduras do seu fazer.

   Os ajustes eram feitos por adultos e por jovens, que, entre presenças, iam juntando tudo o que lhes permitisse realizar alguns tostões.

   Quando a sua vinda acontecia, toda a aldeia despertava e punha nele a atenção e o interesse.

 

   Trapos, metal, cobre e garrafas!!! Trapos, metal, cobre e garrafas!!!

   De voz rouca e sem alma, magricela, pálido e olhar distorcido por lentes garrafais, levava a cada rua o favor da recolha do que em cada casa se esgotara no préstimo, e no canto mais escuro aguardava o seu regresso.

   A armação negra e pesada dos óculos, assentava num nariz fino e encurvado, e discordava do rosto, magro e incapaz de mantê-la sem o recurso ao manual ajuste.

   De saco vazio sob o braço, entoava o fanhoso pregão rodeado da pequenada que se agitava num envergonhado rebuliço.

   Aos poucos ia chegando gente, segurando objectos que o tempo desgastara e a serventia enjeitara. Coisas inúteis, que o nosso homem inaugurava e conduzia a uma original cadeia de reconversão que ninguém conhecia.

   Formavam-se filas de interesse e de curiosidade. Desfile de velharias que os olhares esmiuçavam. Algumas suscitavam vagas memórias, que as reviam na função que o tempo esgotara.

   Muitos, de mãos vazias, acompanhavam o cortejo, hesitando palavras e gestos, rindo às escondidas e disfarçando a timidez que a presença de alguém sem laços de proximidade, sempre convocava.

   As lentes, que embaciavam o olhar, levavam-lhe a relativa nitidez das coisas e a decisão do seu valor.

  Da cozinha vinham quase todas as peças que comprava, e às suas mãos chegavam com a certeza da sua completa degradação: louça de alumínio que esgotara a mestria do latoeiro; metais diversos que se haviam corroído nas tarefas da sua utilização; cabeças de fogões a petróleo rompidas pelo aquecimento e uso constante; tecidos que a função desgastara e o saco dos trapos recolhera; garrafas que os temporais de inverno faziam chegar à costa, e a preia mar exibia por entre boias, redes e cordame, que a força do mar enovelara.

   As garrafas, que os novos tempos vulgarizaram, tinham nas vendas avulso de líquidos de consumo diário e corrente dessa altura, a importância que o nosso homem naturalmente percebia. Ao interior chegariam levadas pela bonança calculista do seu saber.

   Importará também dizer, que o nosso amigo ferro velho fazia coincidir as suas deslocações a Alvor, com a abertura do vinho novo nas adegas.

   Por tudo o que se sabe do passado vinícola desta terra, e da excelência dos néctares produzidos, ficará sempre a dúvida sobre as autênticas razões das suas visitas.

 

21
Jun21

A ironia do alfaiate Milton

Joaquim Morais

 

 

 

 

   Mestre alfaiate de comprovado mérito, improvável… não tanto assim, caçador e pescador, intrometeu também a terra em sementeiras de ocasião, espicaçado pela natureza rural do lugar onde durante muitos anos viveu.

   Milton, a quem o metafórico dito sempre sorriu, soube como ninguém cultivar a amizade, que as aleatórias tertúlias todos os dias nutriam e consolidavam.

   A sua oficina foi palco dos mais deliciosos episódios, e por lá passaram todos os que não dispensavam o humor nas suas vidas.

   A mestria do seu desempenho profissional, tornou-o bem conhecido de toda a comunidade regional, e levou a sua arte de vestir com requinte, para lá das fronteiras.

   Há muito deslumbrados pelos encantos do lugar, alguns turistas estrangeiros decidiram também, pela reputação do mestre alfaiate, fazer da sua loja local de passagem obrigatória: as férias, passaram a incluir aos que que a condição profissional o fato exigia, as visitas que medidas e provas estabeleciam.

   A palavra do generalizado agrado, serviu para muitos outros, que também passaram a frequentá-la.

   Nos dias em que o calendário escrevia o habitual descanso semanal, Milton alfaiate dava muitas vezes lugar, ao caçador e ao pescador.

  Fui com ele e muitos outros que a pesca amadora irmanou durante anos, solidário na entreajuda, umas vezes pela repartição do esforço aquando da ida dos barcos do areal para o mar, noutras pelo apoio em alturas de varação na praia, quando a suestada nos surpreendia.

   Esse tempo preencheu-nos de inesquecíveis pequenas coisas, que, não sendo de assinalável registo, têm na simplicidade a sua maior virtude.

   As origens, o conhecimento e a proximidade dos pescadores e da sua realidade, fizeram-nos ser como eles, e, muitas vezes, como eles dizer.

   Os diálogos de quem se envolve nesta lida, mesmo sem o peso da obrigação, são duma enorme riqueza metafórica, e têm no mar, nos pescadores e na diversidade de episódios que a faina produz, a sua inesgotável fonte.

   Todos nós éramos militantes dessa causa, sendo que, era do Milton que vinham quase sempre, os maiores tesouros que a linguagem produzia.

   Com um sorriso permanente que a fina ironia do olhar sublinhava, ilustrava como ninguém, as incidências que o tempo de mar e de pesca iam desenhando.

   Os dichotes que intercalava, faziam assomar risadas, e a sua lembrança divertia-nos durante dias.

   Fui também durante muitos anos seu companheiro de caça. O bichinho tomou-nos e fez-nos reféns, como só entendem os que por ela se deixam envolver.

   Ao contrário da pesca, a expectativa duma caçada gerava sempre alguma inquietação, e a sua práctica era um estado de permanente tensão e alerta.

    A indispensável visão da presa e a decorrente rapidez da resposta, obrigavam a totalidade dos sentidos.

    O início de cada jornada, escrevia nalguns curiosos prefácios, que envolviam tiques e hábitos esquisitos.

   O Milton presenteava-nos quase sempre com persistente tosseira, a que apenas alguns vómitos sem conteúdo punham termo.

    O cansaço, acabava por devolver a todos a normalidade.

   As chalaças na caça ficavam para o seu depois, e mantinham o mesmo tom divertido, e adequado às peripécias do seu desenrolar.

   O distanciamento exigido por razões de segurança, não permitia, ao contrário da pesca, o parecer imediato.

   À volta da mesa, e na viagem de regresso desfiava-se o rosário dos comentários, que a realidade e a fantasia iam ditando.

   Custou-me vê-lo partir tão cedo.

   Numa parede da alfaiataria, tinha algumas fotografias de amigos de primeira linha que já lá estavam.

   Se o além permitir, deve ter sido de arromba o reencontro.

 

 

22
Mai21

Crónica do insólito

Joaquim Morais

   

 

 

  

   Angola, enclave de Cabinda, corria o ano de 1972. No pequeno destacamento de Sangamongo, um pelotão da companhia de caçadores 3408 era guarda avançada para operações de patrulhamento, na zona de fronteira.

   Também perto da fronteira, no lado congolês, um aquartelamento do MPLA com guerrilheiros que faziam constantes incursões no território angolano emboscando colunas militares, e semeando de minas os trajectos habitualmente utilizados pelas tropas portuguesas, era a preocupação mais significativa.

   A coordenação de toda a actividade militar na zona era da competência da companhia 3408, que estava sediada no Chimbete.

   O Maiombe dominava toda esta área geográfica, tornando muito difícil pela sua natureza extremamente fechada, qualquer actividade militar no espaço da sua implantação.

   São perto de trezentos mil hectares de floresta cerrada, com árvores gigantescas, de madeiras raras e valiosas, e uma fauna riquíssima e variada, onde se destacam gorilas, elefantes, chimpanzés e aves raras.

   É a segunda maior floresta do mundo a seguir à amazónia, e por isso, hoje também considerada uma das maiores reservas naturais do mundo.

   Sangamongo estava completamente enlaçado por essa pujança verde e cingido por uma barreira construída pelos militares que garantia relativa segurança.

   A proximidade do aquartelamento fazia deslocar muitas vezes os guerrilheiros do MPLA ao Sangamongo, para ataques surpresa, breves, de desgaste psicológico, a que juntavam de viva voz, obscenas advertências e indecorosos recados, para militares e respectivas famílias.

   As deslocações entre a sede da companhia no Chimbete e o destacamento, eram de risco elevado. O percurso, extremamente difícil em determinados troços, era apeado e o terreno picado para detecção de minas. Nas viaturas apenas os condutores, e em todos o atormentado desejo de um final feliz.

   Na época das chuvas eram quase heróicas estas travessias, pela dificuldade extrema que nos punham à progressão, a lama e a água.

   No interior do aquartelamento a vida desenrolava-se relativamente calma, e os afazeres decorriam rotineiros como em qualquer outro lugar.

   Nos intervalos da guerra, jogava-se futebol, bebia-se cerveja e jogava-se às cartas. Havia cozinha. Havia refeitório. Havia os serviços diários que a segurança e organização militar obrigavam, e o convívio possível no tempo que sobrava de tudo isso.

   A vida era feita de todas estas coisas, e às vezes, quando os apertos espaçavam e o seu esquecimento ocorria, regressávamos a nós, por algum, pouco, tempo.

   Como em qualquer outro lado, sujeito ou não ás angústias da guerra, aconteciam coisas, mais ou menos improváveis.

   A um militar que adoecesse, eram-lhe administrados os medicamentos habituais, que os sintomas recomendassem.

  A enfermaria local conseguia resolver a grande maioria das pequenas enfermidades que iam surgindo entre o pessoal, salvo em situações extremas, e quando os meios terapêuticos disponíveis se revelavam insuficientes.

   A Ricardo, aconteceram-lhe febres altíssimas, resistentes aos antipiréticos comuns, que obrigaram ao pedido de evacuação urgente para unidade hospitalar.

   Naquele lugar e naquelas naquelas condições, apenas o helicóptero poderia levar a cabo tal intervenção, com a rapidez que a situação recomendava.

   Accionados os mecanismos necessários, descolou da sede do batalhão em Cabinda a aeoronave requisitada.

  O voo até ao local da evacuação, não sendo muito demorado, encontrava na extrema densidade do maiombe e na localização fronteiriça do destacamento, a maior dificuldade.

  Recordo que não muito longe de Sangamongo, separado pela fronteira que o maiombe não escreve, ficava o aquartelamento do MPLA.

   Quando na parte final da viagem, na mancha verde que a terra inunda, se desenha clareira de precária habitação e humana presença, aos pilotos parece-lhes o objectivo pretendido, e depressa preparam a aterragem.

   Iniciada a descida, veem-se de repente cercados de homens, e, ameaçados pelas armas, impedidos de levantar voo.

   A constatação tardia do insólito erro já não lhes permitiu a retirada.

   Caído literalmente do céu nas mãos dos guerrilheiros, o heli foi capturado e os seus dois ocupantes feitos prisioneiros.

   Os pilotos foram resgatados passados alguns meses, numa troca de prisioneiros entre o exército português e o MPLA na fronteira de Massabi, perto do morro de Sala Bendje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

16
Mai21

Realidade virtual

Joaquim Morais

   A surpresa deixou de ser. Banalizaram-se os acontecimentos, mesmo os mais inesperados.

   O espaço das notícias alargou-se e nele passamos a conviver com a imensidão de coisas que gera. Já não é apenas o que acontecia no nosso bairro, na nossa terra ou na cidade mais próxima. Todos os dias, a televisão, a rádio, os jornais e os meios digitais, trazem-nos tudo o que de bom e de mau o mundo vai produzindo.

   A profusão transformou-nos em receptores cada vez mais frios, mesmos nos casos em que, o que ouvimos, deveria suscitar alguma reacção mais emotiva. Pouco sentimos e raramente nos emocionamos, e, quando algum sentimento aflora pela brusca contundência, há um encolher de ombros, um abanar de cabeça e tudo depressa se desvanece.

   Nunca tivemos tantos motivos para reflectir, e, curiosamente, continuamos a deixar que outros o façam,(não fazendo), por nós, com as consequências que estão à vista.

  Deixamos de ser, e permitimos que as nossas vidas se conduzam por caminhos que outros traçaram.

  Vivemos em função de padrões que não estabelecemos, e sufocamos com as opções essencialmente materiais que diariamente fazemos.

  Dizem que estamos endividados. Cada um de nós é responsável por uma quantia significativa no montante global da dívida do país.

  É portanto virtual a nossa realidade.

  Na verdade não somos o que parecemos, mas ostentamos esse parecer com o orgulho que ele enganosamente sugere.

  Estamos ocupados com o mar de coisas que puseram à nossa disposição, e com as que, ainda não tendo, são a prioridade que se segue,e por isso, não temos tempo para sentimentos nem emoções.

  Sentimentos e emoções, apenas os que são suscitados por tudo o que a tecnologia de última geração tem ao nosso dispôr.

  Vivemos para consumir, e ao consumir nos consumimos.

 

01
Mai21

Maia

Joaquim Morais

  

 

 

 

   A Rita tem dez anos e teve sempre o desejo de possuir um cão. O avô, que o texto diz, foi quase sempre a primeira via do constante pedido, mas nem por isso atendido.

   Nem célere nem pragmático. As minhas resoluções demoram quase sempre mais que o razoável e emperram por benigna indolência.

   Acabou por ser o acaso e não o avô, que fez aportar à Rita o animal que a criança há muito imaginava, sonhava e fantasiava.

   Uma conversa entre a mãe e uma amiga, desbravou o caminho que eu por inércia não chegara a encetar. Ajustaram e acordaram os procedimentos para trazer o animal nascido recentemente, e tudo ficou resolvido.

   Passaram os dias até ao combinado. À Rita pareceram-lhe anos. A impaciência e o desejo raramente concordam. A roda do tempo teimou na lentidão e para a criança foi quase sofrimento a espera.

   Mas o dia chegou. Juntamos a família e viajamos para Lagos onde nascera o novo elemento eleito, e onde permanecera o tempo adequado à separação da progenitora.

   Tive muitos cães durante muitos anos. Vivi o entusiasmo da caça em parte da minha vida, e isso obrigou-me ao convívio com animais dotados de qualidades para o acto. Animais com energia e apurado instinto, exímios na arte de perseguir e levantar as peças de caça numa aliança perfeita com o seu possuidor.

   Tinha agora diante de mim algo completamente diferente. Era a expressão mais reduzida dum canídeo que eu já vira. Uma fêmea Yorqshire minúscula, comovente pela delicadeza e pela dependência.

   A Rita iluminou-se desde o primeiro momento. Talvez tenha ocorrido nesse instante o primeiro indício da sua vocação maternal.

   O desvelo inundou-a, e ao olhar, concedeu a exclusividade da radiante visão.

   A viagem de regresso foi um alinhavar de intenções que pouco divergiam dos que requerem as humanas exigências.

   Chegados a casa, a cachorrinha fez do chinelo de quarto da Rita o seu primeiro refúgio que conservou até que o espaço o permitiu.

   Apelidei-a de migalha, com ternura, pela exiguidade. Precisava agora de um nome que a dissesse, acordado pelos que, doravante, iriam tê-la todos os dias nos horizontes do olhar.

   Nascera no primeiro dia de Maio e foi decidido, também por isso, que se chamasse Maia. Achei uma boa escolha. Era abreviado como convinha, mas claro e luminoso. Uma primeira sílaba tónica, aberta, a lembrar a vastidão que a sua pequenez não impedia; um grão de areia também pode insinuar o mar. Depois a outra, átona, mais discreta mas sempre presente no chamar.

   Para além da grafia e do dizer, o termo Maia trouxe-me a memória dum hábito antigo entre os algarvios por altura do inicio de Maio. Era chamada de Maia, uma boneca feita de palha de centeio, ligada aos ritos da fertilidade do inicio da primavera e do novo ano agrícola, em torno da qual se dançava durante toda a noite do primeiro dia do mês de Maio. A lembrança, também as trouxe expostas em janelas e varandas, pelas gentes a que a tradição acenou e teimou, colorindo ruas e casas com as ingénuas e simbólicas bonecas. Era uma espécie de arte Naíf, que o tempo esqueceu.

   Hoje festejamos o primeiro aniversário da Maia cadela. Um pouco mais crescida, mas ainda com abreviada compleição.

   O sentimento de pertença que desenvolveu no espaço que percorre, levou-a à sua vigilância permanente e ruidosa, eventualmente dissuasora de suspeitos propósitos.

   Não a meço aos palmos, porque a sua grandeza reside naquilo em que se tornou: Conquistou-nos a todos; rendemo-nos à sua inteligência, à sua dedicação, à sua sensibilidade, e à alegria com que nos festeja a cada dia que começa.

 

18
Abr21

A lua da Rita

Joaquim Morais

 

 

 

   Um dia a Rita soube da Lua. Inaugurou o disco inteiro de luz, ainda pequena, pouco mais que bebé, num passeio em noite de verão.

   A cadeira em que passeava recostava-a, as guardas laterais obrigavam-na ao alto. e o céu noturno depressa tomou conta do olhar.

   Já dizia, mas faltavam-lhe ainda as palavras que traduzissem o céu.

   Leu-o primeiro na mudez do luminoso espanto; fez da etérea grandeza um embrião à sua medida; acomodou-o no ainda sóbrio espaço das revelações e talvez tenha esboçado o caminho para onírica viagem.

   A Rita continuou os passeios que a noite convidava. Perguntava o desconhecimento, queria saber das evidências que o olhar elegia, e fez do céu noturno um mistério que a ingénua condição queria revelado.

   De entre a luzente amostra, a lua voltou ao olhar, repleta, agora sem surpresa. O balão, enorme, parecia-lhe ainda maior.

   Como todas as crianças, a Rita adorava balões; fascinava-a a sua leveza; a diversidade das suas cores; gostava de jogar com eles ao balão fugidio, e com eles fazer do aniversário uma festa ainda mais bonita.

   Diante de si tinha um balão que parecia mirá-la. Quase que jurava que eram olhos o que ela via no lugar onde eles deviam estar se o fossem.

   Ás vezes pareciam amistosos, como se a quisessem convidar a entrar num qualquer jogo. Noutras já não era tanto assim, e a sua expressão amedrontava-a.

   Não sabia o que dizer, não sabia o que fazer, mas isso não impedia o enlevo da luz que, vendo bem, dominava e reinava sobre todas as outras.

   A visão mais atenta, concedeu-lhe todavia um pormenor que se esquivara. Havia mais qualquer coisa para além da luz:

  -As zonas de sombra mais ou menos evidentes, e que fizeram supor o olhar que a miraria, existiam um pouco por toda a superfície lunar.

   Afinal, os olhos que à quase jura pareciam, eram mesmo, e amistosos convidaram-na sem reservas, ao jogo das descobertas.

   Começou aí o desafio das figuras sem fim que o olhar desvendou no círculo luminoso.

   Desde os animais que a razoável colecção de peluches explicava, aos brinquedos e objectos do seu uso, ali residiam quase todos os vultos do seu pequenino universo.

   Improvável, o jogo prosseguiu até ao tempo da criança, traída pelo peso dos olhos que a lua tentava manter acesos.

   Antes do cair do pano, a Rita fez um último pedido: posso agarrar a lua? Foi-lhe respondido que sim, claro que podia! Em jeito de despedida elevou os braços na direcção da luz e disse: já está!

   Com a lua entre as mãos, finalmente adormeceu.

 

 

19
Fev21

O vazio dos excessos

Joaquim Morais

 

 

 

 

 

 

   Com olhos de terra e de mar a lhe dizerem do mundo, fez da liberdade a aprendizagem dos lugares que o sol inundava, e a chuva e o vento cantavam. Lugares onde os elementos forjam a harmonia, a vida pulsa pujante e autêntica, e ao homem assomam antigas emoções que a ausência privara e o tempo esquecera.

   Plantou árvores e fez sementeiras de entusiasmo e de esperança; aprendeu os pássaros, o seu canto e os seus ciclos: os que nos habitam e os que do longe trazem a esperança da vida por longínquas e precisas rotas, que a dúvida assalta pela grandeza e pelo rigor; soube de outros animais e do seus hábitos; assistiu ao desfile das estações e ao desempenho dos seus intérpretes; o deslumbre da água e o fascínio da imensidão, convidaram-lhe ao mar e ao silêncio.

   Esquecidos do que somos, vivemos alheados de singelos argumentos, que delicadamente nos sopram a atenção e o desejo.

  Cientes do mérito de presumidas convicções, caminhámos por opostos caminhos, que acrescentam distância, mas que não nos impedem o regresso.

   A terra e o mar olham-nos com esperança renovada de todos os lugares do mundo.

   Ficamos mais longe mas não ficamos mais felizes.

   Sabemos que é possível, e que os ganhos não se podem traduzir apenas por riquezas acumuladas, sendo que, a maior delas, é a que se traduz pelo bem estar genuíno, que reabilite a adulterada condição que nos enferma.

   Os avanços tecnológicos, e tudo o que o conhecimento tem posto à nossa disposição ao longo do tempo, trazem-nos bem estar, e ao mesmo tempo a inquietação dos limites que amedrontam a razão.

   A inteligência artificial, ameaça-nos com a possibilidade de banalização e de manipulação do seu criador, ausentes que estão dos seus desígnios, valores que fundamentam a nossa versão humanitária.

   Forte candidato a refém das suas criações, ao homem que o livre arbítrio contemplou, restará exercê-lo com a sensatez que, apesar de tudo, continua a assistir-lhe.

   Sê-lo-emos quando nos tomarem a quietude e o espanto, e nos caminhos da rosa se ouvir a música do mundo.

   Em cada um de nós há um desejo que não morre; uma semente que aguarda a hora da terra que as origens conservam.

   Com coisas simples, preencheremos o vazio dos excessos.

 

 

12
Fev21

Os trovadores da desventura

Joaquim Morais

 

 

 

   A aldeia era igual todos os dias. Nada acontecia para lá das rotinas que a sua circunstância determinara, e a vida acontecia redonda e previsível.

   Duma tranquilidade comovente, apenas as falas entrecortavam o silêncio que a ausência tecia.

Nas ruas de terra, reinavam as crianças que a brinca juntava, até aos brados das mães a lembrar o regresso.

   As mulheres mourejavam portas dentro, e garantiam asseio e sustento aos que com elas partilhavam a estreiteza de vida.

   Os homens tinham o mar, os seus horizontes, e os seus acasos.

   A monotonia era quebrada com inesperadas visitas, que traziam a diferença e despertavam o reparo.

   Era um encontro com outro que não o mesmo.

 

 



   Cantores viajantes, gente desconhecida cujos locais de origem nunca soube, e que, de tempos a tempos, traziam a informação cantada e musicada de ocorrências estranhas e comoventes, que a pacatez do cantinho onde vivia tornava ainda mais espantosas e inquietantes.

   Arautos da desgraça que lapidavam à sua maneira, dando-lhe um brilho literário que a requintava no trágico, e uma interpretação onde o propósito maior era exacerbar o cunho comovente da composição, de maneira a conseguir uma imagem que garantisse o sucesso jornalístico e económico da notícia.

   Chegados à aldeia, postavam-se numa encruzilhada fazendo chamariz com as harmonias dum acordeão que me atraía sobretudo pelas cintilações que produzia, e os acordes duma velha viola dedilhada por um homem cujo aspecto pressupunha a tragédia a divulgar.

   Reunido o povo, começava a cantoria pela voz esganiçada duma mulher de meia-idade, anafada, de cabelos ruivos presos por um carrapicho que lhe acentuava ainda mais a volumosa figura.

   Acompanhada pelos lamentos do acordeão decadente e pelo som magoado da viola, a mulher esforçava-se por cativar a assistência pondo algum empenho na interpretação, que não disfarçava a ausência de talento

   Mais preocupados com o conteúdo do que com a forma, as pessoas procuravam não perder o fio da história que ali estava a ser tecida, e ansiavam pelo desfecho que se adivinhava, e que de antemão se supunha dramático. Fora aliás quase sempre o infortúnio e a tragédia, a substância das mensagens que nos traziam estes estranhos viajantes. Porventura seria esse o género, que, aliado ao insólito, melhor prendia a atenção e o interesse da gente simples a quem a informação se dirigia.

   Não era raro ver-se a comoção tomar conta de algumas pessoas mais sensíveis. Por vezes, era até o pranto que rematava a ansiedade com que alguns dos ouvintes seguiam o desenrolar da narrativa.

   Ao fim e ao cabo, estava ali o testemunho de que o mundo era capaz de gerar a malvadez que pelos contornos anunciados, nunca a teríamos imaginado existir.

   Depois de feita a cobertura duma parte da aldeia, abalavam sempre rodeados de pequenada. Instalar-se-iam de seguida noutro local adequado, e reiniciariam todo o ritual.

   Importa dizer, que após cada uma das várias cantorias com que presenteavam a aldeia, eram postos à venda os folhetos, onde podiam ser    lidos os versos da história acabada de ca(o)ntar.

 

01
Jan21

Alvor, o nascer da ria

Joaquim Morais

  

 

 

 

 

 

   Eram quatro as ribeiras que a natureza adiava nos destinos de mar: na serra de Espinhaço de Cão pelo lado poente, Arão e Odeáxere; na encosta sul da serra de Monchique, Farelo e Torre.

   Delicadas e breves, nunca puderam ousar o oceano que o longe afirmava, e o tempo vestia das cores da sua impermanência. Viam-no das alturas serranas, onde as sujeitavam a frouxidão dos bucólicos cursos.

   Sem a robustez de fartas águas, o jusante oceânico foi um sonho adiado, até que:

 

  -Por bem acharam elementares forças repôr conformidades, concluir inacabada obra, e ao oceano fazer chegar os filhos que a frágil compleição não consentia.

  Nunca o mar vira tempestade tamanha, nunca a terra acolhera igual dilúvio. Ondas invulgares acometeram a praia e o frágil cordão dunar; da terra irromperam serra abaixo inconformadas ribeiras, que acenderam na chuva intensa o sonho das origens.

 

 

   A bonança tomou as rédeas do tempo, o dia nasceu luminoso e quente, e a cria, recém nascida, aconchegou-se na nova moradia festejada em apoteose pela natureza envolvente, agora enriquecida por acréscimo de peso.

   Um imenso estuário surgiu no local da primordial união, e a terra, rasgada pela torrente, acolheu este rossio de água, onde se diluíram particularidades e se encerrou um capítulo da infindável obra planetária.

Ria nascida de singela voluntariedade, esculpida pela rude talhadeira da intempérie na terra agreste e ressequida, que o mar cortejara com cânticos de algas e de ventos.

   Dádiva rara e pura, vestida por calmarias e ventos, que se oferece ao buril das correntes, ao engenho das marés, e generosa acolhe a vida no seu seio.

 

 

 

   Do alto da colina sobranceira ao novíssimo rebento, alguém a quem a tosca lapa abrigara na áspera procela, olha mudo de espanto, o caminho de água que trouxe a seus pés o oceano, e se perde de vista terra adentro.

   Uma agitação receosa domina-o completamente, enquanto o olhar que a estranheza preenche, procura perceber o quadro de terra transfigurada que se estende à sua frente.

   Uma nova luz envolve esta gota de universo, transformada em jardim de silêncio, onde florescem inéditos rumores e se sublimam insólitos perfumes. A festa da unidade reencontrada, é duma sobriedade fascinante, e a vida apresta-se a assumir as formas da nova condição.

   O homem permanece mudo e quedo, suspenso da caprichosa geografia que os dias repetem: fluxos e refluxos de água, do mar e para o mar, cobrindo e descobrindo a terra, talhando pegos e regatos, tecendo remansos e baixios, rendilhados urdidos pela arte das marés, que a baixa mar exibe na intimidade da sua nudez.

   Na passadeira do tempo continuam a desfilar as nóveis ocorrências, que o homem, confuso, procura entender; de andar simiesco e gesto hesitante, amiúde observa demoradamente à sua volta: mão em concha sobre as poderosas arcadas supra ciliares perscruta os horizontes, deles bebendo a idéia da nova realidade, que aos poucos vai acomodando no pequenino reservatório de evidências da sua espartana existência.

   A mansidão do lago que se estende à sua frente deixa-o maravilhado, e a idéia do seu saber depressa se apodera da vontade que o instinto comanda.

   O calor da curiosidade vai aos poucos desvanecendo receios, e dá lugar à aventura da descoberta, e à constatação de toda a generosidade que a ria revela.

   A seus pés há um fecundo útero oceânico que rapidamente se torna conhecido das pequenas comunidades dispersas que à sua voltam se agrupam e decidem novos projectos de vida, colhendo o fruto da árvore dos desmandos da sempre excelente natureza.

 

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