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Alvor,a terra e a ria

Alvor,a terra e a ria

19
Out24

Breve apontamento sobre as traineiras e as conserveiras

Joaquim Morais

 

 

  Meados do século vinte; estava-se em plena temporada do cerco, e o sol, a inaugurar o fogo e a cor, pintava barcos e suas redes, que num enorme leque e vogadas pelo corcho, se estendiam por bombordo. O mar, adormecido, repousava dos desmandos da nortada, que reinava nas tardes, soprando desabridos humores até ao dissuasor abismo da colorida chama do poente.

  A bordo, o guincho virava a arte devagar, que o mar, fundo, não despertava a inquietação da pedra. Com as argolas à borda e a aberta cerrada, era tempo de alar, de trazer à superfície a prateada esperança, alimentar os sonhos, e devolver ao barco a graça que o vazio da rede impede.

  Os braços e a voz em sintonia, arrancam-na do fundo acompanhados pelo grasnar intenso das gaivotas que enxameiam a pesada arte.

  Era assim na pesca do cerco, que, ainda sem mecânicas ajudas, recorria à cantoria do leva leva, para aligeirar a rede e o cansaço.

  As traineiras, que nas décadas de cinquenta e sessenta eram em número considerável, foram o suporte fundamental da indústria conserveira em Portimão, transformando a cidade num importante centro industrial e piscatório. O rio Arade era um soberbo quadro de cor e movimento, e as traineiras o símbolo e referência maior da cidade.

  Utilizavam a arte do cerco, e as capturas predominantes eram de sardinha cavala e carapau, sendo que as duas primeiras, constituíam a quase totalidade do trabalho das conserveiras.

  Sempre que na faina a sorte (elemento que à época era tido por muitos essencial) sorria aos mestres, a abundância de peixe transformava a cidade num quadro de benigno e pitoresco alvoroço.

  O cais era um andar de gente numa constante roda viva, e no percurso do pescado, da rede até à mesa, havia um grande número de famílias a assegurar a subsistência.

  O comércio era a vida e o cais fervilhava.

  Na lota vendia-se a a fatia maior, e nela estavam envolvidos grandes compradores, com comércio assegurado na cidade, e noutros mercados em vários pontos do país. As fábricas tinham também presentes na lota os seus representantes, que asseguravam nos leilões, a compra do peixe indispensável ao seu funcionamento.

  Em pleno cais havia o pequeno comércio, mais em conta, levado a cabo pelos próprios pescadores, que por vezes decidiam vender a parte que lhes cabia nas divisões de bordo, e outros que enchiam a canastra no descuido alheio, fazendo nela pingar a paciência e a sardinha.

  Na procura de uns e de outros, circulavam os muitos que queriam comprar.

  A chegada do pescado às conserveiras, fazia soar de imediato estridentes sirenes, para aviso e convocatória das operárias.. Residentes na cidade, e nas áreas circundantes mais ou menos distantes, depressa se punham a caminho para iniciarem o trabalho.

  Tendo todas as fábricas, idêntico modo de avisar e reunir o pessoal tornou-se necessário que cada um aprendesse a diferenciá-las pelo ouvido; não foi difícil, e até mesmo os que não tinham compromisso laboral com nenhuma delas, o aprenderam, ajudando a divulgar o sonoro recado.

  Escutados na aldeia os estridentes apitos, agitavam-se as envolvidas em apressar domésticos afazeres e promover preparos de caminhada; o caminho era longo, o tempo urgia e o vazio da bolsa clamava. Por vezes não era fácil, sobretudo para as que tinham permanentes exigências familiares, e o tempo mal chegava para o seu cumprimento. A vida dura, e o norte invariavelmente tormentoso, davam-lhes a força para ir sempre mais além.

  Palavra passada no lugar, depressa se juntavam e se punham estrada fora até à cidade, num ritual de cansaço, que a vida exigia mas o paleio suavizava.

  Das conserveiras, que durante décadas levaram no singular soar das suas sirenes uma mensagem de vitalidade a todo o concelho, nada resta.E eram muitas, talvez mais de duas dezenas, que ao longo das margens do Arade, deixaram na cidade a indelével marca duma actividade que a envolveu, porventura como nenhuma outra. Ficaram delas e nos lugares onde estavam implantadas, as características chaminés, quase todas com alados inquilinos, que por ironia são símbolos de anunciadas vidas, já não permitidas ao moribundo senhorio.

  Restou apenas o edifício da fábrica Feu Hermanos, transformado agora em museu municipal, que tem na representação detalhada de toda a laboração da indústria o foco principal.

  Actualmente, existe em funcionamento uma pequena unidade artesanal criada em 2015 no Parchal. Chama-se Conserveira do Arade, tem processos de fabrico próprios, e está certificada como produtora artesanal.

 

 

12
Out24

Tia Catarina

Joaquim Morais

 

 

  Sem prévio pensar e num repente, fez-se presente a lembrança de alguém que, não tendo sido parte activa da minha vida, participou nela a espaços, por gestos e atitudes de estima e agrado duma simplicidade comovente.

  Chegada assim clara e súbita, decidi então que a digam, e à sua recatada existência, algumas palavras.

  Era minha tia-avó; chamava-se Catarina, e representou em toda a sua vida de trabalho, o papel simples, por vezes amargo, de operária conserveira.

  Já a conheci desgastada pelo tempo, pelo trabalho, e pela canseira das incessantes caminhadas em modo apressado, desde Alvor onde residia, até ao local da fábrica em Portimão onde trabalhava.

  Baixa, enrugada e franzina, tinha, talvez por isso ou apesar disso, a inesgotável energia que a fazia calcorrear caminhos com a leveza duma corça.

  Catarina nasceu em Alvor, e viveu enquanto jovem numa casa humilde, com a mãe e dois irmãos.

  A sua certidão de nascimento, tal como a dos irmãos, atesta incógnita paternidade. Desse pai que a certidão omite não tenho clara notícia. Fala-se de alguém, em concreto nomeado, ser pai confesso, mas sem formal aceitação, nem assumida responsabilidade. A época favorecia a impunidade dos que, sem pingo de valores a norteá-los, conduziam a vida a bel-prazer.

   Após a morte da mãe, Catarina viveu sempre sozinha.

  Não me foi dado saber, que tenha tido quaisquer namoricos no tempo certo, tendo-me chegado, isso sim, a existência de algum distanciamento e uma clara reserva, em relação a eventuais candidatos a ligações mais chegadas.

   Talvez por timidez ou receio, ou por outras e insondáveis razões, a tia Catarina decidiu tomar a solo as rédeas da sua vida.

  Não será porventura de excluir traumática razão para a animosidade que a movia em relação aos homens, a atitude de renúncia do pai.

  Num tempo em que o peso da religião fazia da frequência da igreja público costume, Catarina viveu sempre à margem dela. No alto, tal como na rasteira dimensão, levava apenas até às fronteiras do entendimento, a sua crença.

  A situação de Catarina enquanto jovem, provocou nalgumas pessoas um despertar humanitário e uma atitude fraterna, que se manteve após a morte de sua mãe

  Apesar de sozinha, pôde continuar a contar com a amizade de alguém, e a proximidade solidária de toda a família.

  As amizades forjadas no trabalho e as brejeiras conversas que preenchiam as caminhadas, serenavam os tempos de solidão mais prolongada, ou de eventuais agruras que na vida sempre acontecem.

  Para além do trabalho e da doméstica ocupação, e pouco mais havendo do que as épocas festivas que o calendário anunciava, chegou-me no entanto a notícia, de habituais e concorridos bailaricos que aconteciam na aldeia, onde era presença assídua a tia Catarina. As amigas e colegas de fábrica elogiavam-na pelo jeito, sendo certo que, de acordo com público parecer, ela sobressaía pela energia, pela leveza e pela graciosidade.

   Tivemos portanto improvável dançarina, e o decorrente benefício que a sua prática lhe trouxe.

  Não se tendo cumprido em materna função Catarina não deixou empedernir os afectos, contemplando sobrinhos com sorrisos, carinhosas conversas, e lembranças feitas da mais genuína e enternecedora matéria.

  Hoje, acresce um brando sentimento de gratidão e simpatia pela singeleza dos mimos, e por essa afeição que, sempre que fosse preciso, transbordava inundando o mundo à sua volta.

 

 

 

14
Ago22

O gato Zen e a matemática

Joaquim Morais

 

 

 

  Há nove anos que está connosco; chama-se Zen, e faz total justiça à palavra que o diz.

Veio dum gatil próximo, trazendo já com ele a graça, que, tudo parece indicar, foi desde sempre luva talhada à sua medida.

 

  Chegou muito novo à casa que passou a ser sua, e cresceu com a Rita, três anos à sua frente nas contas do tempo, que o fez aturado desejo, e foi, também por isso, razão determinante para a sua vinda.

  Brincou em cada tempo seus desafios, e exibiu a sua ágil e irrequieta natureza fazendo as delícias de todos.

 

  O quintal da casa tinha espaço avonde, e suficientes motivos para fazer o que é suposto e esperado aos da sua espécie: caçou pássaros que desafiavam a sua paciência sem nunca a esgotar, insectos vários que se cruzavam nos seus trajectos, e obrigou os clássicos roedores que se atreviam no espaço onde ele reinava, ao temor e ao respeito adequados.

  Teve sempre tempo e largueza suficientes para desenvolver e apurar os seus instintos, e, não sendo um gato de alcofa, nunca a dispensou para as suas, por vezes, demoradas sestas.

  Em todos os quintais vizinhos, e nalguns terrenos que o abandono descuidou, o hábito da sua presença também se fez notar, bem como percebida e estimada, a sua natureza pacífica e afectuosa.

 

  Apreciador do silêncio à sua volta, é também de absoluto sossego a sua postura. Em casa, nunca ninguém o viu assomado, e os tímidos miados que raramente emite, costumam acontecer quando a intempérie o surpreende em noturnas caçadas, e, no regresso a casa, tentar com eles sinalizar a sua presença para que o acolham.

 

  Adora sardinhas. Quando acontecem, sabe-o pela habitual logística a que obrigam, e, discrecto, silencioso, e ainda muito antes do seu cheiro intenso se espalhar a partir do fogareiro, já ele feito comensal, se senta à mesa em banco corrido e pose de louça, aguardando pacientemente e sem miados, que lhe sirvam a democrática iguaria.

 

  A escola chegou entretanto para a Rita. Os trabalhos de casa e o estudo de algumas matérias, obrigavam aos livros e aos cadernos sobre a mesa, o que levou ao imediato despertar da curiosidade do Zen para o novo cenário.

  Daí até ao pulo para a cadeira mais próxima deles, foi um instante.

  Posto pelas circunstâncias na rota dos livros, passamos a vê-lo de vez em quando, no insólito exercício da sua intrigante observação. Mas nem tudo suscitava o interesse do Zen. Alheado do colorido de desenhos e fotografias, tal como do arrumo preciso das letras nas palavras e das palavras no texto, outra improvável ciência havia de convocar de imediato o seu reparo: a matemática. A agradável impressão causada pela imagem dos símbolos que a traduzem, levaram-no sem hesitações, à adopção duma atitude quase contemplativa na sua presença; tendência que o passar dos anos e as diferenças nos níveis de aprendizagem da Rita, manteve sem abrandamentos.

  Após sentar-se num lugar feito seu pelo hábito, percorre atento as páginas que a Rita vai folheando, percebendo-se nitidamente o movimento da sua cabeça, na condução do olhar pelas ilustrações numéricas que a sua condição eminentemente felina tanto parece apreciar, e estranhamente elegeu.

 

  Sem o desconforto de ter que se debruçar sobre a eventual complexidade da matéria matemática, Zen parece ter descoberto nos infindáveis quadros da sua profusa simbologia, uma tranquilidade bem à medida do seu nome.

 

 

  O Zen continua connosco, e festejamos juntos e em silêncio, o prazer do reencontro a cada dia.

 

01
Jan22

A moda na igreja do padre David

Joaquim Morais

 

 

 

 

 

  David Marreiros Neto, nasceu em Monchique em 1902. Homem de saberes variados, tinha na terra as suas raízes mais profundas.

  Iniciou-se no ministério como padre auxiliar em Loulé, ocupando nos anos trinta, por nomeação da diocese, a paróquia de Santa Bárbara de Nexe.

  Aí, e segundo alguns paroquianos, cedo começou a revelar o seu carácter interventivo, principalmente junto dos jovens, ficando na memória de muitos paroquianos, variados exemplos do seu controverso temperamento.

  Depois de uma década ao serviço da igreja nessa localidade do barrocal algarvio, o polémico pároco foi colocado em Alvor, onde viria a desenvolver o seu longo e por vezes agitado ministério, até ao ano de 1975, data em que faleceu por doença negligenciada.

 

  Os anos que passou em Alvor permitiram-lhe conhecer e ser conhecido. Se por um lado, esse mútuo entendimento preparou os seus paroquianos para os cuidados a ter na abordagem de assuntos, que envolvessem mudanças na ordem estabelecida, serviu, por outro, para tê-los prevenidos em relação à sua frontal e nem sempre simpática maneira de os interpelar.

  Inovar não era seguramente a sua vocação, nem para isso o convocava réstia de entusiasmo.

 Sendo homem assumidamente avesso a modernices, não hesitava nas críticas e consequentes advertências, a quem pusesse em causa os preceitos vigentes, que a igreja e ele próprio, entendiam como os mais adequados. Cristalizado na tradição litúrgica mais conservadora, pouca ou nenhuma abertura mostrava para refrescá-la, ao contrário do que se ia fazendo noutras paróquias.

  No entanto, e em desacordo com o que a doutrina sugere em relação ao decoro no uso da palavra, permitia muitas vezes que a grosseria tomasse o seu lugar.

 

  A década de sessenta trouxe coisas novas para o lado feminino. A moda mexia com o mundo, e as mulheres iam mostrando no rosto e no vestir os sinais da mudança. Se algumas ainda hesitavam a plenitude da moda, outras havia que exibiam sem vacilações a sua exuberante inteireza.

  Particularmente atento a tudo isso, agraciava-as com mordazes alfinetadas, sempre que a ausência de sobriedade no semblante, ou no traje, as transformasse em peças carnavalescas, como costumava dizer.

 

  A novidade era fértil, e a esses novos desafios que as tendências da moda iam colocando, ia o padre David respondendo, umas vezes com divertida frontalidade, e noutras com intransigente rispidez.

  Era ágil na palavra, muitas vezes metafórica, carregada de ironia, que, para além da acidez, cumpria o seu propósito com a graça própria do seu dizer.

  Deixou-nos um conjunto de divertidas intervenções que se tornaram populares pela contundente chacota.

 

 

 

 

                                                                                          *************************

 

 

 

 

   Chamaram-na de missa do galo. Claro se torna, ter havido influência de macho galináceo na razões da designação.

  São muitas as versões que o relatam, e, por extensas, e mais ou menos fantasiosas, importará pouco nesta altura o pormenor dos seus conteúdos.

  Porventura mais relevante, será a constatação que apenas nos países onde se fala português ou espanhol se celebra com o nome de missa do galo, aquela que no resto do mundo católico é chamada de missa da meia noite.

 

  E foi pouco antes da meia noite, que teve início a celebração da missa do galo num ano da década de sessenta, que não posso precisar.

  A terra ainda tinha nas alturas muitos dos seus olhos, e a igreja fazia-a mais próxima dos que a crença iluminava; e eram muitos, os que, nessa noite, celebravam o menino, e a esperança.

 

  Após o jantar de natal, a mesa mantinha-nos juntos, e por lá ficávamos até à altura da missa do galo. As cantorias e a conversa, intercaladas pelo permanente apelo da doçaria e das bebidas que a mesa mostrava, consumiam depressa o tempo, até à hora de voltar a cumprir a tradição.

  Era um hábito consolidado, e raras as pessoas que não participavam na festa do nascimento que a igreja propunha.

 

  A liturgia da noite de natal era de especial significado para a igreja, e para os que nela se reviam. O nascimento de Jesus foi um marco relevante para o mundo cristão, e o padre David punha sempre na homilia sobre as leituras e sobre o evangelho, toda a sua alma de apóstolo da igreja.

  Aliás, era reconhecida em toda a diocese, a sua fama de grande orador.

  Na parte final da missa, era costume o beija pé ao menino. As pessoas enfileiravam-se ordenadamente, e aproximavam-se uma a uma da capela mor, onde o padre David, segurando a imagem do menino com a mão esquerda, ia dando a beijar o seu pezinho. Após cada beijo, limpava o pé do menino com um pano que a mão direita segurava. Era a higiene possível, e, em tempo de miraculosas ocorrências, a fé havia de valer-nos a todos.

  A fila era enorme, porque raros os que prescindiam de exercer o privilégio.

  Uma a uma, as pessoas aproximavam-se para o beijo, sob o olhar atento do pároco.

  Até que, surgiu a mulher, que abriu no rosto a rosa vermelho vivo dos seus lábios, e depressa incendiou os olhos do padre David. O choque foi imediato e a resposta pronta:

- Vá embora mulher! Desapareça! Desapareça! Não me suje o boneco! Não me suje o boneco! E num repente, retirou do alcance da garrida boca o pé de Jesus.

  Se esteve ou não eminente, afronta séria ao carácter sagrado do ritual, apenas o padre David poderia esclarecer.

  Claro deve ter ficado, se dúvidas houvesse, que, daí em diante, exuberantes adereços não tinham cabimento na igreja do padre David.

  O termo “boneco”, usado pelo pároco aquando do incidente, não era de grande estranheza.

  Recordo que, quando os que tinham a responsabilidade da organização de procissões, decidiam as imagens eleitas para nelas desfilarem, e o seu número parecia exagerado, o padre David atalhava dizendo: “ já chega de madeira na rua”.

 

  O divino, não parecia para ele, estar associado à diversidade imagética, mesmo que, pontualmente comovente, da arte sacra. Eram apenas figuras, (bonecos) feitas de materiais comuns, (madeira) que artistas, no exercício do seu ofício produziam. Homens ou mulheres, que até podiam viver à margem da igreja.

  Arte terrena, rasteira, que ele recusava sacralizar.

 

11
Dez21

O velho pescador

Joaquim Morais

 

 

 

 

  A casa situava-se ao rés da água. Tão ao rés que em alturas de marés vivas os poiais, propositadamente altos, quase submergiam ao assédio das águas. Era uma casa térrea, branca, aninhada na falésia que contemplava a ria. A cal inundava-a de luz e os poentes revelavam-lhe os segredos da cor.

   Por ela passavam as inumeráveis águas das incessantes marés no seu eterno vai vem.

   Na encosta da arriba que a escrevia, cresciam arbustos e flores silvestres que ajudavam a consolidar alguma frouxidão. No cimo reinavam as amendoeiras que as flores nevavam, e onde, nas esquinas do dia, os melros disputavam o futuro em cristalinos concertos.

   Nela vivia um velho pescador: habitava a solidão dos anos, e trazia na mão esquerda um velho crucifixo; chegava-o ao peito enquanto dormia, acreditando que tomava o lugar do coração; sentia-o pulsar entre os dedos, e repousava esquecido no sono, como se ainda perfumasse os jardins do tempo.

   Homem com olhos de mar e de céu, que transbordavam horizontes, e, entre os muros da terra, habitavam a ausência.

   Era uma figura esplêndida apesar da baixa estatura. No rosto de feições bem definidas e carinhosamente austero, a rudeza da vida esculpira sólidas marcas, curtidas e consolidadas pelo sol, pelo vento, e por esse mar de versáteis encantos a quem dedicara a sua vida.

   Da cabeça coberta por um velho boné a resguardar uma precoce calvície, pendiam a circundá-la alvas e finas madeixas que emolduravam a tez rosada, onde a fogueira do sol ardia continuamente. As suas mãos eram fortes e ásperas e nelas se desenhava claramente o traço de incalculáveis remadas. Os braços eram poderosos, e o tronco, robusto, quase sempre cingido por uma grossa camisola. O andar simiesco, que o mar obrigara, denunciava uma vida passada sobre as águas, e traduzia o hábito de compensar os contínuos desníveis que a ondulação produzia.

   O olhar era sereno e profundo, a perscrutar talvez os horizontes da memória, os das vivências ardentes, que não cabem na dimensão previsível, circular e enfadonha do espaço terreno.

   Tivera com o mar uma longa e frutuosa relação; hoje, ausente do seu lavrar, a solidão era maior; o mar continuava igual; não envelhecera como ele; permanecia talvez como no dia em que nascera: uma vida que era o próprio tempo na sua expressão mais profunda, salpicada de incontáveis efémeras gerações de humanidade. Os homens passavam e o mar ficava, indiferente ao desfile dos dias, exibindo a sucessão de recursos que o tornava venerado e temido, e usando o fascínio irresistível da sua serena ou desabrida majestade.

   Começara a soletrá-lo ainda muito novo: a decifrar os seus sinais mais elementares; a interpretar a sua linguagem de sal e de vento; a entender a sua mansidão e a sua revolta.

   O mar, esse lago imenso abrigado na concha da terra; essa várzea ondulante que desafiava horizontes que o olhar em vão teimava; essa escola de virtudes, geradora de nobres e sólidos princípios, e que fizera dele discípulo para a eternidade.

 

28
Nov21

Alfredo e o mar

Joaquim Morais

 

 

 

 

  A revolução iria trazer coisas novas, dizia-se. No lugar, pouco dado a novos motivos de conversa, depressa as falas se ocuparam da notícia, e sobre ela  teceram as mais variadas considerações.

  Os jornais, a rádio e a televisão, desdobravam-se no esforço de informar, e a profusão, também feita de palavras nem sempre coincidentes com as de quem escutava, levava com frequência a alguma confusão.

  Os militares percorriam o país, tentando esclarecer toda a gente acerca da nova realidade política, e dos benefícios que ela poderia trazer à vida das pessoas.

  A informação passava de boca em boca, e, retocada pelo entendimento de cada um, depressa se transformava num conjunto arrevesado de palavras de impreciso sentido.

  A impaciência especulava, e o desejo era ser informado e esclarecido de viva voz, pelos que, em representação do movimento das forças armadas, para isso estavam mandatados.

 

  Entre os pescadores, onde a precariedade na protecção social após a vida activa era quase generalizada, vivia-se a esperança de mudança; também por isso, a expectativa da mensagem clara, olhos nos olhos, era evidente, e ansiosamente aguardada.

 

  Não obstante as limitações que o avanço dos anos naturalmente traziam a quem ao mar dedicara as suas vidas, alguns havia, que, mesmo com idade de puderem vir a colher os benefícios de eventuais pensões, desejavam em simultâneo, prolongar a vida activa.

  Para outros, o divórcio era pacífico e desejado, encerrando sem constrangimentos, um importante capítulo das suas vidas.

 O tempo e a duradoura ligação ao mar, foram deixando ao longo dos anos marcas de amores e desamores, que haviam de importar, na decisão final de cada um.

 

  Alfredo era um dos atormentados pela inquietação, e a quem uma eventual separação compulsiva desagradava.

  Ao mar a vida, e a entrega, feita de estranha afeição, sem idade, conduzida pelo olhar e pelo gesto, talhados para apenas nele serem por inteiro.

 

  Chegou por fim a aguardada comitiva, que trazia palavras novas, e se desejavam esclarecedoras; ouvia-se a música dos novos tempos; e os rostos sorriam a esperança de dias melhores.

 

  E nem os anos esmoreceram Alfredo, que, na plateia apinhada de gente, fez chegar o seu desassossego, aos que vieram para ouvir e dizer.

  Um jovem oficial do exército, escutou Alfredo com tranquila atenção; ouviu das suas incertezas, das suas expectativas, do seu desejo de prolongar o mar para lá do tempo, e respondeu-lhe:

 

  - Sr. Alfredo, pelo que me acabou de dizer, atrevo-me a concluir que a sua ligação ao mar é profunda, tal como o desejo de continuar essa dedicada relação. A sua pretensão não fere a legalidade, e não faria sentido impor-lhe esse amargo divórcio; Recomendo-lhe até, que enquanto a primavera lhe sorrir, faça-se ao mar e escreva nele as páginas que essa duradoura afeição lhe for ditando.

  Apesar do perigo e do abismo, talvez a Alfredo sorrisse o céu que o mar espelhava.

 

11
Jul21

A praça

Joaquim Morais

 

 

 

   A praça era o centro da aldeia. À praça chegavam as carreiras que traduziam o relógio e a novidade. Da praça partiam os que iam em busca dela, e do que a aldeia não era capaz.

   Era na praça que os homens diziam e ouviam. E aos homens, por subversivas razões, nunca era permitido numerosa parcela, nem duvidosa palavra.

   Havia olhos que o olhar nem sempre percebia, e ouvidos que às vezes convocavam o espanto quando desvendados: eram os inesperados tentáculos do regime a vasculhar no falatório, agitadora intenção.

   Só que, naquele lugar de encontro, nem os homens nem as suas falas, eram feitos dessa revolucionária matéria, que em causa pusesse tão altos desígnios.

   Juntavam-se os homens quando circulavam imprecisos rumores, para que deles se ouvisse apropriado esclarecimento, e sobre eles se fizesse satisfatória luz.

   Juntavam-se para falar da pesca; das pescarias do dia; das traineiras que em portimão laboravam com companhas e mestres da aldeia, dos melhores na arte do cerco onde a sardinha era rainha.

   Juntavam-se outros porque adoravam a galhofa, e faziam da praça lugar de risada e diversão.

   Havia mestres na arte da chacota, que a quase tudo emprestavam trocista abordagem, que nela foram com inexcedível graça.

   Nas noites de verão, principalmente aos fins de semana, a praça vivia madrugada dentro.

   Depois do fecho das tabernas do lugar, os resistentes desaguavam na praça, carregando eloquentes pielas, que fariam corar as suas habituais caladas abstinências.

   Alguns havia, feitos do saber do mar, e com um sem fim de histórias que o estímulo da embriaguez desenrolava.

  As narrativas, feitas num linguajar onde sobressaía a terminologia do seu dia a dia no mar, configuraram criações metafóricas bem conhecidas da comunidade, e muito interessantes do ponto de vista da linguagem.

   Era na praça que ficava o café mais central, e que quase todas as intenções escolhiam.

   Do seu interior percebia-se todo o espaço do largo, e as movimentações que nele ocorriam. Lá dentro bebia-se cerveja, café e medronho de monchique; e conversava-se, conversava-se muito.

   Havia barbeiro e merceeiro. Havia padaria. Havia loja de roupa e um lojista que também era regedor da freguesia.

Havia gente que a fazia ser, porque nela era.

   Mesmo ao virar da esquina, ficava a escola primária, a funcionar em edifício antigo, de interessante traçado, com águas furtadas que amedrontavam as crianças, por dela dizerem coisas assustadoras.

   Alguns professores eram vezeiros em usá-la para coagir alunos.

   Pela praça, passavam também solenes procissões, preenchidas de austeras figuras com rostos tristonhos, de merecimento disputado pelos ombros dos homens. As mulheres, que ladeavam o cortejo de cabeças cobertas por delicados véus, cantavam arrastadas melodias segurando velas que o vento soprava.

   Das janelas pendiam vistosas colchas.

   Na praça, as crianças brincavam a despreocupação dos pais, até que o nomear do brado as contemplasse.

 

 

 

 

05
Jul21

O silêncio de Deolinda

Joaquim Morais

 

 

 

   Quando assomou ao mundo, a privação do aconchego uterino desencadeou ruidosa choradeira.

Foi o primeiro teste ao comportamento dos sentidos no contacto com o mundo, e a sonora expressão do impacto experimentado.

   A ausência de mobilidade, fazia centrar neles o desempenho da atenção inaugural.

Rodeada de gente e de desafios, correspondia aos incentivos com os recursos da sua básica condição.

   Ao entendimento familiar iam chegando os sinais da sua evolução: Deolinda acendia o olhar a cada sorriso; expressava o prazer e a rejeição quando comia; tocava o gesto com a seda das mãos; dizia dos odores em cada trejeito, mas não sabia dos sons que a rodeavam.

   Deolinda, nascera cercada de velado silêncio.

  Cresceu com ele e com a aceitação da sua inevitabilidade. A surdez impedira-lhe a fala, mas não impedira toda a normalidade restante.

  Já mulher, soube da possibilidade de deixar de ser refém do silêncio. Alguns exames e consultas da especialidade revelaram que a surdez poderia ser revertida.

   Hesitou a decisão e conviveu com a dúvida durante algum tempo. Após reflexão e conselhos resolveu aceitar.

Instalaram-lhe os instrumentos adequados e receitaram-lhe os medicamentos que lhe ajudariam a suportar a mudança.

  Todo o seu corpo, funcionara em função duma quietude absoluta, perfeitamente arrumada na sua natureza. Tudo passaria a ser diferente.

  A percepção dos ruídos, foi por isso feita de sofrimento. A voz dos que habitualmente a rodeavam às vezes provocava-lhe ténues sorrisos, mas foi sempre dolorosa a novidade.

   O desconforto era permanente, e a tentativa de correcção mostrava-se cada vez mais difícil de suportar.

   Desistiu.

   Decidiu dar outra vez o braço ao silêncio, e com ele assumir eterno compromisso.

 

04
Abr21

Os amigos do meu pai

Joaquim Morais

 

 

 

   Noventa e três anos preenchidos de entusiasmo pela presença do outro, e por um sorriso que em todos acende o valor da afeição e do apreço.

   Desde sempre, fez da proximidade com os demais um modo de ser.

O encontro é a festa da sua vida. Sempre que o outro acontece, o olhar ilumina-se; a palavra demora o prazer do diálogo; diz de si e da sua circunstância; traduz o regozijo; e do amigo traz a atenção e a notícia.

   A ocasião, irá tornar também possível o desejo de contacto que o gesto aguarda.

   Estou a falar do meu pai. Homem de palavras, com uma bonita idade, e que tem no outro a parte que o faz inteiro.

   Existo, logo vivo. Será assim. Será que a certeza da existência nos assegura a autenticidade da vida.

   Quando se ouve de alguém, isto não é vida, que dúvidas lhe assistem para pôr em causa os caminhos traçados para ela.

   A dúvida, pode despertar-nos para pensá-la, tentar perceber os modos diferentes de conduzi-la, e, eventualmente, ajustar o rumo para portos mais seguros.

   A vida é uma dádiva que devemos celebrar em cada instante.

   Tomar consciência de que não estamos sozinhos, e que a tranquilidade e o bem estar derivam da partilha, é a garantia de que com os outros, ficaremos mais próximos de nós mesmos.

   O companheirismo e a solidariedade ajudar-nos-ão a suavizar as dificuldades do caminho, e farão  despertar sentimentos que hão-de seguramente fazer de nós, pessoas melhores.

   Existir com o outro é fundar a palavra amigo, tê-la na memória dos dias, percebê-la para lá da presença, e com ela e sobre ela construir tal como o meu pai, um edifício da vida que nos garanta uma existência humanizada.

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