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Alvor,a terra e a ria

Alvor,a terra e a ria

17
Ago23

Carlos Nicolau Jaques, o pescador e o homem

Joaquim Morais

 

 

 

 

  Chamava-se Carlos Nicolau Jaques, mas na terra onde sempre viveu, se alguém precisasse de citá-lo para dele dizer o que a ocasião exigisse, poucos o reconheceriam no nome com que o baptismo o designara para a vida.

 

  A alcunha de “pão e metade” relegou os apelidos primeiros para o papel das raríssimas formalidades, e juntou-se ao nome, para colocá-lo sem reservas nas bocas do mundo.

  É bem possível que Carlos ou familiar que o antecedeu, tenha, por dito, atitude, ou procedimento usado acerca desse popular alimento na medida referida, dado a alguém, pretexto para esse improvável epíteto. O rótulo acompanhou-o enquanto permaneceu entre nós, e esvaiu-se nas gerações que se seguiram, pouco ou nada motivadas para as coisas do passado.

 

  Pescador no tempo que o vigor lhe consentiu, Carlos foi também conhecido pela sua paixão pelo cinema e pelo particular entusiasmo que lhe suscitavam os filmes de aventuras.

  Facilmente contagiado pelo desenrolar da acção, comentava com gestos e falas as cenas que mais o inflamavam, desfiando por elas um agitado rosário de emoções.

 

  Baixo, dotado duma invulgar força, viu-o sempre a abrir as procissões nas festas religiosas, transportando o enorme pendão a que ninguém mais se atrevia: adereço cujo peso considerável aliado à grande superfície, tornava o seu transporte proeza para poucos. O enorme esforço percebia-se no rosto e no traje de Carlos, tomados sempre por abundante transpiração.

  Recordo na sua face a permanente escrita do sol, matizada pelo rosado que o esforço acendia, e coberta por esse extemporâneo e copioso orvalho.

 

  Chegaram-lhe bem cedo as propostas do mar: de sul acenava-lhe o mar inteiro; a oriente, para cumprir o arco que ilustrava o dia, erguia-se da flor das águas o sol, trazendo com ele a cor dos alvores levantinos; inundava de luz o oceano, até ao quadro da colorida decadência que os poentes celebravam e o abismo afundava.

 

  Com o olhar prenhe de fascinante azul e nas suas costas breve e ocupada terra, que outro senão o mar.

 

  Os galeões ocuparam parte das suas andanças pelo mar. As extensas e pesadas redes da faina iniciaram o molde e a têmpera da sua atlética figura; os elementos lapidaram-lhe o rosto; sopraram nele o engenho agreste da sua arte e deram-lhe o ar olímpico dos que merecem o sorriso da eternidade.

 

  Após o tempo da arte do cerco na pesca da sardinha a bordo dos galeões, Carlos decidiu-se pela pesca à linha, passando a desvendar pesqueiros e fundos , registando referências noturnas e diurnas que a vista lhe oferecia, e criando mapas dos lugares que a experimentação e a prática ia revelando frutuosos. Quando às coordenadas da memória se juntavam ventos, correntes e águas favoráveis, era quase certo o sucesso das pescarias.

 

  Tinha um pequeno barco a que chamou “pirata”; movia-o a força dos seus braços, e, quando bonançoso, o vento que, emprenhando a carangueja, fazia dele uma gaivota à flor da água.

 

  Solitário na pesca e parco de palavras, trazia no andar o desenho das vagas e no olhar a distância que a terra negava; nas mãos, escavadas pelo punho dos remos, encaixava na perfeição a vara do pendão, que os braços carregaram com firmeza anos a fio, perante a admiração de todos.

 

  Deixou-nos cedo; O coração, que as emoções foram consumindo ao longo da vida, privou-o delas aos sessenta e três anos

03
Jun23

As Fases da Ria

Joaquim Morais

 

 

 

 

  Esteve quase sempre longe dos olhares do mundo. Viam-na os que em seu redor se fixavam, e, sobretudo, os que nela decidiam modo de vida, ou dela faziam caminho para o largo.

Para esses, o olhar, essencialmente comprometido com o pão, raramente era animado por vislumbres contemplativos.

 

  De entre os que visitavam a terra que lhe deu o nome, eram poucos os que a afoiteza convocava para o desafio de percorrê-la. Ao tempo, o trajecto e o conforto raramente coincidentes, suscitava muitas vezes a hesitação, e abria quase sempre caminho para a recusa.

 

  Viam-na à distância, privada da inteireza que só os detalhes lhe conferem, e desfrutavam-na apenas à mesa saboreando as suas diversas iguarias, com particular destaque para as deliciosas ameijoas.

 

  Isentos de sérias obrigações, e fazendo da diversão razão maior, foram os mais pequenos, onde felizmente me incluo, que, atraídos pelo seu mágico chamamento, a ela se chegaram e com ela firmaram singelo compromisso.

 

  Sem o calvário das tormentas, que os ventos por vezes teciam na vastidão oceânica, a ria oferecia-se mansa e disponível.

 

  As crianças fizeram-na sua semeando nela as flores das suas primaveras; navegando os impulsos da verde condição; guinchando a vida e chapinhando a nudez em lamacentos regatos; mareando toscos barcos, que, guiados pelas pétalas da mão, ou soprados pelos ventos do desejo, faziam da noite o palco onírico de náuticas proezas.

.

 

  A passagem do tempo, as mudanças que em nós iam ocorrendo, e o constatar mais ou menos explícito da sua generosidade, fizeram considerá-la para lá da lúdica feição: sugeriram novas abordagens, e tiveram como resultado a exploração dos seus recursos e decorrente descoberta dos seus tesouros.

  O início foi um suceder de emoções,e o entusiasmo resultante, muito próximo da juvenil euforia.

  Foi uma fase intensa, duradoura, e que havia de manter-se enquanto colorido o quadro da frescura física.

 

  A diversidade disponível, impossibilitava delimitar no tempo, a tarefa da sua pesquisa e entendimento. Era uma iniciativa para a vida, mas as fronteiras do saber pleno, ficavam sempre muito longe da maioria das pretensões.

  A ria inteira, era apenas dos poucos que ela fizera cúmplices.

 

  Entretanto, a ria abriu-se ao mundo e ficou à distância dum olhar.

 

  E aos meus olhos, livres de juvenis anseios e esperançosas pescarias, chegaram as imagens que, sendo iguais ao que sempre foram, ocupam agora toda a largueza do olhar, e serenam na perfeição as águas deste tempo.

 

  É talvez por isso, que a vejo todos os dias como se fosse a primeira vez.

 

 

com cânticos de algas e de ventos,

o oceano exalta o reencontro

e a terra celebra o orgulho da raiz.

É uma gota de universo;

será decerto um poema;

porventura branda inquietação;

é janela clara e alucinante

onde o olhar se afunda,

as gaivotas florescem,

e o mar respira o sopro das luas.

 

 

22
Out22

Amigos na doença

Joaquim Morais

 

 

  O meu pai, a quem o sorriso a palavra e o gesto amigo nascidos da presença do outro nunca faltaram, está doente. É a sua sombra, que numa cama de hospital o teima, tentando encontrar nesse lugar de circunstância, terreno onde lançar a semente da sua entranhada condição de ser marcadamente social.

  É comovente a inquietação do olhar em busca de outro que o acolha. Não está sozinho na sala de medicina interna que ocupa. Os quatro internados onde se inclui, são idosos, sendo que o mais próximo ainda fica longe do seu desgastado ouvido. Mesmo assim, e quando os olhares se ligam, atreve-se ao diálogo; As palavras desafiam a distância sem complementos de gesto nem sorrisos; apenas palavras: as que o digam e as que tragam o outro para dele saber. O afastamento e a doença condicionam o discurso e fazem-no telegráfico. Por entre as inúmeras hesitações do ouvido, o meu pai consegue dele a informação elementar: o nome, a idade, a terra onde nasceu, a ocupação profissional e a doença que o prende à cama.

  Juntá-lo-á à infindável lista de amigos que os noventa e cinco anos de vida lhe foram oferecendo, e que a memória conserva com orgulho.

24
Out21

Primeiro os idosos

Joaquim Morais

 

 

   Quando saíamos para revigorantes caminhadas nos passadiços da ria de Alvor, o caminho de regresso a casa levava-nos muitas vezes à mercearia da Sandra.

   A sua vista lembrava quase sempre uma necessidade de última hora, e a leitura das estantes ditar-nos-ia tudo o resto, que, por vezes, não era assim tão pouco.

   Para quem a memória das faltas se apagara, o volume de compras final era deveras surpreendente.

   Voltou a acontecer desta vez. Aliás, acontecia muitas vezes.

   O espaço era acanhado, o que obrigava por vezes a esperar lá fora.

   Na altura, a pressa não me afligia. Aguardei no exterior, e surgiu entretanto a oportunidade de conversa com inesperado interlocutor, pelo que, o tempo, feito de palavras, suavizou a demora, e fez da espera agradável prefácio.

   Após falas de poucos dedos, e quando me pareceu acertado, entrei, mas a estreiteza do espaço tornava difícil o giro entre prateleiras.

   Condicionado pelo abreviado recinto e rodeado de gente, virei a atenção para as coisas pretendidas, e para outras que as estantes iam acenando.

   Compras terminadas, e, tal como noutras vezes, a surpresa da quantidade que a ideia inicial não pensara.

   Provido do indispensável e do acessório, cheguei-me à fila da caixa e aguardei.

   À minha frente, de sacos na mão e deslocada da ordem, uma jovem conversava animada com alguém, descuidando o lugar. Já perto da caixa e não querendo adiantar-me, alertei-a dizendo que era a sua vez.

   Olhou-me, com ar feliz e sorridente, e disse-me:

 - Não, faz favor, primeiro os idosos!

  Agradeci, claro, e sorri também. Muitos mais riram à minha volta. Alguém, pela primeira vez me chamara idoso, o que, não sendo totalmente verdade, também não era inteiramente mentira. Ainda não carregava o peso da palavra, mas já percebera a mudança.

   Raios partam o tempo, o que nos faz.

   Lá fora, disse a um amigo de tempo igual e rimos, rimos da nova, “velha” condição.

   As marcas do tempo, as claras e subtis evidências do dia-a-dia e a transparência sombria do envelhecer, comprovadas pelo olhar risonho de alguém a quem os anos ainda não pesam.

 

 

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