Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Alvor,a terra e a ria

Alvor,a terra e a ria

15
Mai23

As Andorinhas e a Ria

Joaquim Morais

 

 

 

 

 

  Não buscam caranguejos, nem moluscos, tão pouco vermes, ou outros em que a lama da ria é fértil.

  As andorinhas ocupam um baixio que a vazante deixou a descoberto, e debicam o lodo tal como as aves aquáticas ao seu lado, como se da procura de alimento se tratasse. O que as move e faz diligentes no afã que envolve o pequeno bando, não tem a ver com gastronómicos intentos.

 

  Chegaram como sempre com a primavera. Deixam África onde passam o inverno, quando o desconforto climático, eventualmente a escassez de alimentos, ou outras razões menos explícitas mas não menos importantes a isso obrigam, e têm o regresso agendado ao mesmo continente, a partir de setembro pelas mesmas razões. Movidas por questões de sobrevivência, seguem os ditames do instinto, que as conduzem por extensas rotas migratórias, e conseguem a proeza de chegar ao lugar pretendido sem auxílio de qualquer tecnologia.

 

  Orientam-se, é suposto, recorrendo à posição do sol e das estrelas; dizem entendidos, que talvez percebam o campo electromagnético da terra; e com razoável grau de certeza, valendo-se da memória para referenciar pontos visuais em percursos repetidos. Para os que inauguram a viagem, basta seguir os adultos que a realizaram antes e fazer dela o prefácio duma aventura que a sua frágil compleição não faria supor.

 

  Mas voltemos à ria e ao baixio que convocou a surpresa, ou nem por isso. Não sendo alimento a razão desse esgravatar, percebi desde muito jovem que afinal as andorinhas apenas acautelam o futuro, como progenitores cuidados e responsáveis. A lama com que preenchem os bicos, destina-se à construção dos ninhos, e andará à volta do milhar, as vezes a que esse vai vem obriga para a sua conclusão.

 

  Organizadas, pacientes e sem a pressão do calendário e do relógio humanos, cumprem-se ainda de acordo com naturais desígnios, e enquanto o permitir o precário equilíbrio do planeta.

 

 

 

 

 

As andorinhas plantam a ria no beiral.

Trazem-na no bico,

suspensa da terra e dos beijos

com que amanham a leira branca do futuro.

 

 

 

14
Ago22

O gato Zen e a matemática

Joaquim Morais

 

 

 

  Há nove anos que está connosco; chama-se Zen, e faz total justiça à palavra que o diz.

Veio dum gatil próximo, trazendo já com ele a graça, que, tudo parece indicar, foi desde sempre luva talhada à sua medida.

 

  Chegou muito novo à casa que passou a ser sua, e cresceu com a Rita, três anos à sua frente nas contas do tempo, que o fez aturado desejo, e foi, também por isso, razão determinante para a sua vinda.

  Brincou em cada tempo seus desafios, e exibiu a sua ágil e irrequieta natureza fazendo as delícias de todos.

 

  O quintal da casa tinha espaço avonde, e suficientes motivos para fazer o que é suposto e esperado aos da sua espécie: caçou pássaros que desafiavam a sua paciência sem nunca a esgotar, insectos vários que se cruzavam nos seus trajectos, e obrigou os clássicos roedores que se atreviam no espaço onde ele reinava, ao temor e ao respeito adequados.

  Teve sempre tempo e largueza suficientes para desenvolver e apurar os seus instintos, e, não sendo um gato de alcofa, nunca a dispensou para as suas, por vezes, demoradas sestas.

  Em todos os quintais vizinhos, e nalguns terrenos que o abandono descuidou, o hábito da sua presença também se fez notar, bem como percebida e estimada, a sua natureza pacífica e afectuosa.

 

  Apreciador do silêncio à sua volta, é também de absoluto sossego a sua postura. Em casa, nunca ninguém o viu assomado, e os tímidos miados que raramente emite, costumam acontecer quando a intempérie o surpreende em noturnas caçadas, e, no regresso a casa, tentar com eles sinalizar a sua presença para que o acolham.

 

  Adora sardinhas. Quando acontecem, sabe-o pela habitual logística a que obrigam, e, discrecto, silencioso, e ainda muito antes do seu cheiro intenso se espalhar a partir do fogareiro, já ele feito comensal, se senta à mesa em banco corrido e pose de louça, aguardando pacientemente e sem miados, que lhe sirvam a democrática iguaria.

 

  A escola chegou entretanto para a Rita. Os trabalhos de casa e o estudo de algumas matérias, obrigavam aos livros e aos cadernos sobre a mesa, o que levou ao imediato despertar da curiosidade do Zen para o novo cenário.

  Daí até ao pulo para a cadeira mais próxima deles, foi um instante.

  Posto pelas circunstâncias na rota dos livros, passamos a vê-lo de vez em quando, no insólito exercício da sua intrigante observação. Mas nem tudo suscitava o interesse do Zen. Alheado do colorido de desenhos e fotografias, tal como do arrumo preciso das letras nas palavras e das palavras no texto, outra improvável ciência havia de convocar de imediato o seu reparo: a matemática. A agradável impressão causada pela imagem dos símbolos que a traduzem, levaram-no sem hesitações, à adopção duma atitude quase contemplativa na sua presença; tendência que o passar dos anos e as diferenças nos níveis de aprendizagem da Rita, manteve sem abrandamentos.

  Após sentar-se num lugar feito seu pelo hábito, percorre atento as páginas que a Rita vai folheando, percebendo-se nitidamente o movimento da sua cabeça, na condução do olhar pelas ilustrações numéricas que a sua condição eminentemente felina tanto parece apreciar, e estranhamente elegeu.

 

  Sem o desconforto de ter que se debruçar sobre a eventual complexidade da matéria matemática, Zen parece ter descoberto nos infindáveis quadros da sua profusa simbologia, uma tranquilidade bem à medida do seu nome.

 

 

  O Zen continua connosco, e festejamos juntos e em silêncio, o prazer do reencontro a cada dia.

 

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2023
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2022
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2021
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2020
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub