O gato Zen e a matemática
Há nove anos que está connosco; chama-se Zen, e faz total justiça à palavra que o diz.
Veio dum gatil próximo, trazendo já com ele a graça, que, tudo parece indicar, foi desde sempre luva talhada à sua medida.
Chegou muito novo à casa que passou a ser sua, e cresceu com a Rita, três anos à sua frente nas contas do tempo, que o fez aturado desejo, e foi, também por isso, razão determinante para a sua vinda.
Brincou no devido tempo os seus ditames, e exibiu a sua ágil e irrequieta natureza fazendo as delícias de todos.
O quintal da casa tinha espaço avonde, e suficientes motivos para fazer o que é suposto e esperado aos da sua espécie: caçou pássaros que desafiavam a sua paciência sem nunca a esgotar, insectos vários que se cruzavam nos seus trajectos, e obrigou os clássicos roedores que se atreviam no espaço onde ele reinava, ao temor e ao respeito adequados.
Teve sempre tempo e largueza suficientes para desenvolver e apurar os seus instintos, e, não sendo um gato de alcofa, nunca a dispensou para as suas, por vezes, demoradas sestas.
Em todos os quintais vizinhos, e nalguns terrenos que o abandono descuidou, o hábito da sua presença também se fez notar, bem como percebida e apreciada, a sua natureza pacífica e afectuosa.
Prezava o silêncio à sua volta, e era também de absoluto sossego a sua postura. Em casa, nunca ninguém o viu assomado, e os tímidos miados que emitia, aconteciam quando a intempérie o surpreendia em noturnas caçadas, e regressava a casa sinalizando com eles a sua presença.
Adorava sardinhas. Quando aconteciam, sabia-o pela habitual logística a que obrigavam, e, discrecto, silencioso, e ainda muito antes do seu cheiro intenso se espalhar a partir do fogareiro, já ele feito comensal, se sentava à mesa em banco corrido e pose de louça, aguardando pacientemente e sem miados, que lhe servissem a democrática iguaria.
A escola chegou entretanto para a Rita. Os trabalhos de casa e o estudo de algumas matérias, obrigavam aos livros e aos cadernos sobre a mesa, o que levou ao imediato despertar da curiosidade do Zen para o novo cenário.
Daí até ao pulo para a cadeira mais próxima deles, foi um instante.
Posto pelas circunstâncias na rota dos livros, passamos a vê-lo de vez em quando, no insólito exercício da sua intrigante observação. Mas nem tudo suscitava o interesse do Zen. Alheado do colorido de desenhos e fotografias, tal como do arrumo preciso das letras nas palavras e das palavras no texto, outra improvável ciência havia de convocar de imediato o seu reparo: a matemática. A agradável impressão causada pela imagem dos símbolos que a traduziam, levaram-no sem hesitações, a aderir à razão dos números, pelos números; tendência que o passar dos anos e as diferenças nos níveis de aprendizagem da Rita, manteve sem abrandamentos.
Zen sentava-se num lugar feito seu pelo hábito, e percorria atento as páginas que a Rita ia folheando, percebendo-se nitidamente o movimento da sua cabeça, na condução do olhar pelas ilustrações numéricas que a sua condição eminentemente felina, parecia apreciar, e estranhamente adoptou.
Sem o desconforto de ter que se debruçar sobre a eventual complexidade da matéria matemática, Zen parece ter descoberto nos infindáveis quadros da sua profusa simbologia, uma tranquilidade bem à medida do seu nome.
O Zen continua connosco, e festejamos juntos e em silêncio, o prazer do reencontro a cada dia.