Tia Catarina
Sem prévio pensar e num repente, fez-se presente a lembrança de alguém que, não tendo sido parte activa da minha vida, participou nela a espaços, por gestos e atitudes de estima e agrado duma simplicidade comovente.
Chegada assim clara e súbita, decidi então que a digam, e à sua recatada existência, algumas palavras.
Era minha tia-avó; chamava-se Catarina, e representou em toda a sua vida de trabalho, o papel simples, por vezes amargo, de operária conserveira.
Já a conheci desgastada pelo tempo, pelo trabalho, e pela canseira das incessantes caminhadas em modo apressado, desde Alvor onde residia, até ao local da fábrica em Portimão onde trabalhava.
Baixa, enrugada e franzina, tinha, talvez por isso ou apesar disso, a inesgotável energia que a fazia calcorrear caminhos com a leveza duma corça.
Catarina nasceu em Alvor, e viveu enquanto jovem numa casa humilde, com a mãe e dois irmãos.
A sua certidão de nascimento, tal como a dos irmãos, atesta incógnita paternidade. Desse pai que a certidão omite não tenho clara notícia. Fala-se de alguém, em concreto nomeado, ser pai confesso, mas sem formal aceitação, nem assumida responsabilidade. A época favorecia a impunidade dos que, sem pingo de valores a norteá-los, conduziam a vida a bel-prazer.
Após a morte da mãe, Catarina viveu sempre sozinha.
Não me foi dado saber, que tenha tido quaisquer namoricos no tempo certo, tendo-me chegado, isso sim, a existência de algum distanciamento e uma clara reserva, em relação a eventuais candidatos a ligações mais chegadas.
Talvez por timidez ou receio, ou por outras e insondáveis razões, a tia Catarina decidiu tomar a solo as rédeas da sua vida.
Não será porventura de excluir traumática razão para a animosidade que a movia em relação aos homens, a atitude de renúncia do pai.
Num tempo em que o peso da religião fazia da frequência da igreja público costume, Catarina viveu sempre à margem dela. No alto, tal como na rasteira dimensão, levava apenas até às fronteiras do entendimento, a sua crença.
A situação de Catarina enquanto jovem, provocou nalgumas pessoas um despertar humanitário e uma atitude fraterna, que se manteve após a morte de sua mãe
Apesar de sozinha, pôde continuar a contar com a amizade de alguém, e a proximidade solidária de toda a família.
As amizades forjadas no trabalho e as brejeiras conversas que preenchiam as caminhadas, serenavam os tempos de solidão mais prolongada, ou de eventuais agruras que na vida sempre acontecem.
Para além do trabalho e da doméstica ocupação, e pouco mais havendo do que as épocas festivas que o calendário anunciava, chegou-me no entanto a notícia, de habituais e concorridos bailaricos que aconteciam na aldeia, onde era presença assídua a tia Catarina. As amigas e colegas de fábrica elogiavam-na pelo jeito, sendo certo que, de acordo com público parecer, ela sobressaía pela energia, pela leveza e pela graciosidade.
Tivemos portanto improvável dançarina, e o decorrente benefício que a sua prática lhe trouxe.
Não se tendo cumprido em materna função Catarina não deixou empedernir os afectos, contemplando sobrinhos com sorrisos, carinhosas conversas, e lembranças feitas da mais genuína e enternecedora matéria.
Hoje, acresce um brando sentimento de gratidão e simpatia pela singeleza dos mimos, e por essa afeição que, sempre que fosse preciso, transbordava inundando o mundo à sua volta.