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Alvor,a terra e a ria

Alvor,a terra e a ria

21
Set24

Fernando (farinha), a metáfora do mar

Joaquim Morais

 

  Ao mar se fez ainda verde, que outro, por raro, difícil seria, sendo como era em tons de azul a oferta que soía.

  O pão sabia a sal, na mesa de quase todos.

 

  Fernando, que a terra decidiu pelo canto, alcunhar de “farinha”, foi bem maior que o contido nesse redutor apelido. Por ele passava apenas a voz, que, mediana no desempenho, nunca foi o melhor caminho para chegarmos ao entendimento da sua real valia.

 

  O mar e a faina navegaram-no como a nenhum outro, deixando nele relevante marca, e dele fazendo especial discípulo.

 

 E foi nessa tarefa de convocá-los muito para lá das suas fronteiras, fazendo deles menção nas mais improváveis circunstâncias, que Fernando revelou invulgar e precioso talento.

 

  Pouco conhecida dos que escolheram terrenos ofícios, a terminologia náutica marca a diferença para tudo o resto que a palavra contempla. Dizer do mar, dos ventos, do navegar, dos barcos, das artes de pesca e de tudo o mais que envolve a relação, significa para os que nela decidem viver, a aprendizagem dum património linguístico fascinante, que é parte fundamental da nossa tradição marítima, e que resulta da necessidade de entendimento sem equívocos em plena faina.

 

  Pela ria chegou ao mar aberto; nele semeou desmedidas linhas de canseira, que consumiram o olhar e acenderam a noite e a esperança. Puxou redes em chachorros, secadas e traineiras, e em latitudes pouco ajustadas à sua carnadura, foi-lhe imposto em precário batel, um mar feito de novos imprevistos.

  Do mar e do que lhe estava associado veio toda a matéria para o poema da sua vida; só tinha que o recitar ao mundo.

 

  Da bacalhoeira vivência, e de sua lavra, cantou os versos que a diziam: singelo retrato da exigência da faina, dos benefícios de bem cumprir as tarefas, da vida a bordo, dos constrangimentos, do raro e passageiro ócio, dos proveitos que a arte de pescar trazia aos mais capazes. e tudo o mais que, não tendo sido dito, podermos supor acontecer a quem vivia durante meses a fio no reduzido espaço dum navio que a modernidade não consente, cercado de céu e mar férteis em diferentes e inesperadas ameaças

 

  De Portimão, compôs a imagem da pitoresca azáfama do seu cais nas décadas de cinquenta e sessenta, e levou-a pelo canto a toda a gente. Descrição fiel, que a linguagem coloquial realça, e a alusão a recorrentes e curiosos factos se revela particularmente interessante para os que a vida obrigou ao convívio com essa alvoroçada realidade.

 

  Por imperativo de saúde fez uma pequena cirurgia no hospital de Portimão, fazendo dela posterior relato, num desfiar de vocabulário próprio da faina, engendrando para alguns procedimentos cirúrgicos da intervenção e para o ambiente e logística do bloco operatório, invulgares imagens alegóricas que a sua imaginação ia ditando.

  Esta linguagem não era de fácil entendimento para os que viviam à margem do seu mundo, sendo no entanto notório, que a sua descodificação surpreendia sempre todos pela curiosa e divertida originalidade.

 

  São incontáveis, e muitos deles registados pela memória dos que viviam atentos ao seu delicioso discorrer, os exemplos que o dia a dia e as conversas de ocasião que o envolviam, nos ofereciam.

 

  Tinha um olhar algo ausente e apagado, mas sempre que na sua expressão o assomava demorado e maroto, fitando enviesado o seu interlocutor com brejeiro sorriso e pausada atitude, era quase certo que o mar o tomara e que a maré cheia do seu pulsar havia de inundar de versos o mundo à sua volta.

 

  Fernando foi metáfora do mar em toda a sua vida, e soube dizê-lo com a autenticidade que apenas os eleitos, (poucos), a ele vinculados por rara afeição e que dele se fizeram fiéis seguidores e intérpretes, ousaram conseguir.

 

 

15
Set24

OUTROS ENCONTROS

Joaquim Morais

 

 

  A rua foi sempre o sítio primeiro. Ponto de encontro nascido do desejo comum de dizer e de escutar, onde cada um urdia pela fala e a seu jeito, a singela malha de ocorrências que os dias teciam.

  Formavam-se grupos mais ou menos numerosos, em função do interesse das conversas, e da vocação dos envolvidos para prender a atenção e o ouvido. Predominavam nos lugares que o hábito elegia, e traziam à cena pela palavra o mundo da aldeia.

 

  Quando o tempo esfriava e a rua esmorecia, algumas vizinhas mais chegadas, juntavam-se após o jantar na casa de uma delas para conviverem. O hábito, socialmente exemplar, criou raízes, generalizou-se, e fez da terra um enorme centro de convívio, onde se suavizavam tensões, abrindo novos e divertidos caminhos, que achanavam o mar agitado do dia dia. Distinguiram-se mulheres, frescas no dizer, que chalaceavam os assuntos mais sérios e delicados, alargando as fronteiras da graça, e derrubando velhos e resistentes tabus.

  Para além da palavra, esses encontros eram férteis na produção de trabalhos, que cada uma decidia pelo particular saber, pela necessidade, ou apenas pelo prazer do desempenho.

  Tricotando, bordando, costurando ou fazendo empreita, e com um fundo de palavras que invariavelmente semeavam o riso e a boa disposição, foram serões inesquecíveis, que perduraram e fizeram-se exemplos bem sucedidos, da arte de conviver.

 

  Sempre que o verão trazia pela mão do levante a canícula africana, as noites expulsavam toda a gente de casa.

  Bancos rasteiros e cadeiras de atabua preenchiam o redor das portas e davam poiso às gentes, que com pachouchadas e dichotes convertiam a noite em prolongada e divertida tertúlia. Era assim por toda a aldeia quando o sueste se instalava.

 

            (Que vento é o sueste, que ainda de véspera fazia turvar a água dos poços?)

 

  É o mais desalmado de todos os ventos. Sopro rebelde, porventura nascido das angústias do tempo, faz do mar raivoso torvelinho, devorador de pacíficas areias. Entre o casario, remoinha a sujeira em nuvens que ferem o olhar, e que o cansaço há-de juntar, rasteiras, pelos recantos de ruas e terreiros.

  Repousa dos desmandos na frouxidão do sol, e, cúmplice da inquietante mormaceira converte a noite em palco caótico de sonhos e vigílias.

  Traz nas vagas as flores que o deserto secou, e faz assomar a lembrança dum trono anunciado por improvável bruma.

 

 

  Também na oficina do barbeiro se formavam animados grupos: por lá passavam os que, dedicados à notícia aí exercitavam, levando e trazendo, exultando quando percebiam relevante assunto, e, ufanos, rumavam a outros portos, sempre com a palavra pronta e o ouvido desperto.

  Alguns havia que lá iam pelos jornais. Uns, incapazes desde sempre de decifrar o mistério das letras, alimentavam a esperança que outros, nelas entendidos e dispostos a isso, lhes fizesse chegar o que ia acontecendo noutros lados. Falava-se de tudo no barbeiro, mas o futebol e o clubismo estavam sempre presentes. As tribos, envolviam-se em acesas disputas vozeirando argumentos e reclamando para as suas cores todas as razões do mundo.

 

  As tabernas e as mercearias também eram lugares de encontro.

  Nas mercearias predominavam as mulheres, que, por doméstico imperativo, abreviavam o tempo, aflorando assuntos para paleio futuro noutros palcos e fazendo prevalecer sempre o primado da casa e da família. Quando no entanto se conjugassem local e ocasião, e a razão aplaudisse, a veia oratória diria de si sem delongas nem papas na língua.

 

  Nas tabernas, onde apenas os homens tinham assento, (excepção feita à mulher do taberneiro,) o vinho era rei, prevalecendo pelo mérito dos seus excepcionais atributos.

 

                                                            (  A razão do vinho )

 

  Para lá da terra habitada, as cercanias de Alvor possuíam o tesouro das vinhas. As areias onde cresciam, estendiam-se, sobranceiras ao mar, até às arribas que as guarneciam e rematavam.

  O sol inteiro, a terra arenosa e as contidas águas, ofereciam às uvas características únicas que explicavam a valia da pinga.

As adegas abundavam apesar da pequenez da terra, e porque chegava longe a excelência do vinho, todas não eram muitas, para acolher os que vinham comungar da arte de beber o prazer do vinho.

 

 

  Apesar da realeza do vinho, era na assembleia dos súbditos que residia a matéria que aqui me trouxe. Os da terra e os outros, que a partir do S. Martinho ansiavam por traduzir o saibo das novas colheitas e opinar sobre elas, vinham numerosos. Discorriam sobre os atributos do néctar que a competência dos homens fabricara, e tropeçavam quase sempre na intenção de eleger favoritos. A experiência e o saber dos envolvidos na arte, acabava sempre por determinar uma qualidade transversal a toda a produção, diferindo apenas em particularidades, próprias da abordagem de cada um.

  O mérito, abraçava por isso todos de igual modo.

 

  O rumo e o tom das conversas nesses lugares era diverso. Com uma clientela de homens onde predominavam os que faziam do mar o seu modo de vida, era da dura arte de nele se afirmar e sobreviver que falavam; e faziam-no com imagens sonoras recheadas de palavras e expressões muitas vezes difíceis de entender, sobretudo pelos que, distantes dessa curiosa maneira de dizer, acabavam muitas vezes enredados na teia verbal daí resultante.

  A alteração das falas decorrente das prazenteiras libações punha à vista efeitos diversos: se por vezes acontecia que alguns mais tímidos, se faziam ouvir com tom e euforia desusados, outros havia habitualmente alegres, que eram repassados por estranha e comovente tristeza. Era no entanto mais comum, que em todas as tabernas o tom de voz subisse, e que a animação se instalasse.

  Às vezes, o convívio também trazia a surpresa do canto, que, nas tabernas, tinha no fado a sua expressão mais desejada; assim quando entre a clientela, marcava presença alguém agraciado pelo dom, era quase certo, que, a dada altura, o fado com toda a sua aura de nostalgia e sentimento, brindaria todos os presentes pela voz, pelo silêncio e pelas emoções que em cada um iria despertar.

  Preenchida assim de todos os pressupostos que a faziam, dir-se-ia que a taberna se cumpria.

 

  De entre o que era costume e para lá do que já foi dito, será interessante referir que nesta terra também se contavam histórias. Naturalmente associadas a tranquilos serões e outros convívios, nada impediria de acontecer, se oportuna fosse, diferente ocasião.

  Não era uma terra de letrados; pouco favorecidos pela época e pelas circunstâncias, foram quase todos vítimas do analfabetismo que o regime semeava.

  A tradição oral colmatara a ausência de livros e leitores, e, na continuidade, proclamou o conto como elemento essencial na formatação da memória e da consciência colectiva. Alguns contadores eram particularmente dotados, fazendo com as suas narrativas as delícias de crianças e adultos.

 

  Em criança, ouvi do meu avô materno alguns relatos, que, ora me prendiam pelo insinuante enredo, ora me espantavam pela estranheza, suscitando-me também por vezes, incómodo receio; tenho da feição bizarra de algumas dessas historietas, vaga memória.

  Apesar do seu ar habitualmente severo e até mesmo pouco simpático, meu avô transfigurava-se como narrador, pondo todo o seu empenho nesse papel e representando razoavelmente as figuras das histórias.

 

  As aldeias como Alvor, tinham nos anos cinquenta e sessenta do século passado hábitos sociais interessantes que em termos gerais tentei trazer aqui.

  Não pretendendo ser cansativo na abordagem, decidi fazê-lo pela rama, esperando mesmo assim ter avivado memórias e provocado alguns sorrisos.

 

  A rede social era concreta e genuína e acontecia pela espontânea necessidade de afirmar pelo encontro, a nossa humanidade; sem o outro não existimos; e todos também somos o outro.

06
Set20

carta a uma professora

Joaquim Morais

   A escola primária era uma imposição, e raros os que colhiam algum prazer na sua frequência. A rua e os espaços abertos foram sempre os lugares primeiros para a brincadeira, e estavam sempre presentes do nascer ao pôr do sol, com todos os ingredientes reclamados pela gente moça. Era nesses lugares, naquela época plenos de liberdade festiva, que as exigências da idade verde encontravam eco, e, ao contrário da inércia dos bancos escolares, celebravam a vida a cada instante.

   O meu tempo de criança passado nos finais da década de cinquenta, tem lugar neste cenário de natural privilégio, e a escola acontece da primeira à terceira classe, num ambiente repressivo e sombrio, incapaz de concorrer com o que lá fora estava à minha disposição.

   Até que, chegado ao último ano da então chamada instrução primária, a novidade vem pela mão duma professora nova.

   Acabado o curso do magistério primário que lhe conferia o direito de exercer pela primeira vez o ensino, coube à Senhora Solange Maria da Palma Fernandes trabalhar com os alunos da quarta classe da escola primária de Alvor onde eu estava incluído.

   A propósito desse tempo de escola único, passado consigo, escrevi-lhe uma carta. Já há algum tempo. Guardei-a porque não sabia do seu paradeiro. Leio-a muitas vezes. Para si. Leio-a como quem dita e recorda-me o que no banco da escola escrevia ditado por si.

   Tenho-a entre as coisas que mais prezo.

   Sem saber do seu lugar de agora, decidi enviá-la para parte incerta, na ilusão do feliz acaso.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

   Cara D. Solange Maria da Palma Fernandes

 

 

 

 

   Os tesouros da infância, são sempre o resultado da vivência de sublimes trechos existenciais, numa altura em que os sentimentos emergem da forja das emoções, passando por isso a constituir referências para a vida, permanentemente cintilantes e presentes.

   Escrever-lhe, é, de alguma maneira, reencontrar-me com o pequeno tesouro que constituiu algum do meu tempo de escola, protagonizado pela figura graciosa duma professora que o pensamento amiúde aflora, e faz despontar um sorriso, uma lembrança precisa, um episódio alegre, uma vivência que a infância registou indelevelmente preciosa.

   Passaram seis décadas. Não obstante, a memória, esse écran da vida onde desfilam as imagens das pequenas felicidades que a compõem, teima em iluminar-se e revelar esse tempo de excepção, onde os dias se cumpriam sucessivamente fascinantes, ao compasso do pulsar pleno, que nove anos de vida naturalmente impunham.

   Frequentava então a quarta classe. Os três primeiros anos não tinham sido muito estimulantes, já que, as recordações que deles trazia, reflectiam, de algum modo, a repressão e os laivos de brutalidade, com que eram agraciados, os que por força das circunstâncias, tinham naturais dificuldades. Aliás uma práctica, na época acho que generalizada. Por todas as razões próprias duma criança cujo entendimento da vida se está a fazer, a metodologia expressa teria mais efeitos dissuasores, do que um despertar para a via do saber.

   É neste contexto, em finais dos anos cinquenta, princípios da década de sessenta, que a senhora, nessa altura penso que a iniciar-se na profissão, chega a esta terra, para ministrar aos alunos que comigo partilhavam a sua aula, os ensinamentos que encerravam a chamada instrução primária, ratificada depois pelo exame final.

   Desde logo, a sua figura afável e simpática espantou os nossos receios, e depressa se gerou um clima de empatia, que transformou a aula num local desejado, onde o interesse pela aprendizagem competia de igual modo com a ânsia de brincar. Foi uma sensação nova, um prazer inusitado, uma lição, que, por essencial nunca esqueci.

   Esse ano passou, iniciei os estudos liceais, e fui surpreendido pelo convite para participar na festa do seu casamento. Naturalmente sensibilizado, na medida em que me permitiam os dez ou onze anos, lá fui com um outro colega e amigo da escola, também convidado.

   Entretanto os anos passaram. Cresci; fiz-me homem; casei; tenho duas filhas , um neto e uma neta que me preenchem a vida já há alguns anos liberta do peso das obrigações profissionais, e vivo com a relativa tranquilidade que me permite ser.

   Perdi o seu contacto, mas não perdi a lembrança desse tempo. Algumas vezes, quando encontrava alguém da sua terra, perguntava se a conheciam, se sabiam do seu paradeiro, como é que estava, enfim, procurava o fio duma meada que o tempo e as circunstâncias da vida haviam enredado, mas que a vontade teimava em libertar.

   A poeira dos anos e os meandros da vida nublaram o caminho até si, mas a luz da sua presença manteve-se acesa, e continua a iluminar o menino que o homem conserva.

   Por isso aqui estou.

   Ser adulto, é também ser a criança que as recordações exigem.

 

 

 

 

Joaquim António da Costa Morais

 

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