OUTROS ENCONTROS
A rua foi sempre o sítio primeiro. Ponto de encontro nascido do desejo comum de dizer e de escutar, onde cada um urdia pela fala e a seu jeito, a singela malha de ocorrências que os dias teciam.
Formavam-se grupos mais ou menos numerosos, em função do interesse das conversas, e da vocação dos envolvidos para prender a atenção e o ouvido. Predominavam nos lugares que o hábito elegia, e traziam à cena pela palavra o mundo da aldeia.
Quando o tempo esfriava e a rua esmorecia, algumas vizinhas mais chegadas, juntavam-se após o jantar na casa de uma delas para conviverem. O hábito, socialmente exemplar, criou raízes, generalizou-se, e fez da terra um enorme centro de convívio, onde se suavizavam tensões, abrindo novos e divertidos caminhos, que achanavam o mar agitado do dia dia. Distinguiram-se mulheres, frescas no dizer, que chalaceavam os assuntos mais sérios e delicados, alargando as fronteiras da graça, e derrubando velhos e resistentes tabus.
Para além da palavra, esses encontros eram férteis na produção de trabalhos, que cada uma decidia pelo particular saber, pela necessidade, ou apenas pelo prazer do desempenho.
Tricotando, bordando, costurando ou fazendo empreita, e com um fundo de palavras que invariavelmente semeavam o riso e a boa disposição, foram serões inesquecíveis, que perduraram e fizeram-se exemplos bem sucedidos, da arte de conviver.
Sempre que o verão trazia pela mão do levante a canícula africana, as noites expulsavam toda a gente de casa.
Bancos rasteiros e cadeiras de atabua preenchiam o redor das portas e davam poiso às gentes, que com pachouchadas e dichotes convertiam a noite em prolongada e divertida tertúlia. Era assim por toda a aldeia quando o sueste se instalava.
(Que vento é o sueste, que ainda de véspera fazia turvar a água dos poços?)
É o mais desalmado de todos os ventos. Sopro rebelde, porventura nascido das angústias do tempo, faz do mar raivoso torvelinho, devorador de pacíficas areias. Entre o casario, remoinha a sujeira em nuvens que ferem o olhar, e que o cansaço há-de juntar, rasteiras, pelos recantos de ruas e terreiros.
Repousa dos desmandos na frouxidão do sol, e, cúmplice da inquietante mormaceira converte a noite em palco caótico de sonhos e vigílias.
Traz nas vagas as flores que o deserto secou, e faz assomar a lembrança dum trono anunciado por improvável bruma.
Também na oficina do barbeiro se formavam animados grupos: por lá passavam os que, dedicados à notícia aí exercitavam, levando e trazendo, exultando quando percebiam relevante assunto, e, ufanos, rumavam a outros portos, sempre com a palavra pronta e o ouvido desperto.
Alguns havia que lá iam pelos jornais. Uns, incapazes desde sempre de decifrar o mistério das letras, alimentavam a esperança que outros, nelas entendidos e dispostos a isso, lhes fizesse chegar o que ia acontecendo noutros lados. Falava-se de tudo no barbeiro, mas o futebol e o clubismo estavam sempre presentes. As tribos, envolviam-se em acesas disputas vozeirando argumentos e reclamando para as suas cores todas as razões do mundo.
As tabernas e as mercearias também eram lugares de encontro.
Nas mercearias predominavam as mulheres, que, por doméstico imperativo, abreviavam o tempo, aflorando assuntos para paleio futuro noutros palcos e fazendo prevalecer sempre o primado da casa e da família. Quando no entanto se conjugassem local e ocasião, e a razão aplaudisse, a veia oratória diria de si sem delongas nem papas na língua.
Nas tabernas, onde apenas os homens tinham assento, (excepção feita à mulher do taberneiro,) o vinho era rei, prevalecendo pelo mérito dos seus excepcionais atributos.
( A razão do vinho )
Para lá da terra habitada, as cercanias de Alvor possuíam o tesouro das vinhas. As areias onde cresciam, estendiam-se, sobranceiras ao mar, até às arribas que as guarneciam e rematavam.
O sol inteiro, a terra arenosa e as contidas águas, ofereciam às uvas características únicas que explicavam a valia da pinga.
As adegas abundavam apesar da pequenez da terra, e porque chegava longe a excelência do vinho, todas não eram muitas, para acolher os que vinham comungar da arte de beber o prazer do vinho.
Apesar da realeza do vinho, era na assembleia dos súbditos que residia a matéria que aqui me trouxe. Os da terra e os outros, que a partir do S. Martinho ansiavam por traduzir o saibo das novas colheitas e opinar sobre elas, vinham numerosos. Discorriam sobre os atributos do néctar que a competência dos homens fabricara, e tropeçavam quase sempre na intenção de eleger favoritos. A experiência e o saber dos envolvidos na arte, acabava sempre por determinar uma qualidade transversal a toda a produção, diferindo apenas em particularidades, próprias da abordagem de cada um.
O mérito, abraçava por isso todos de igual modo.
O rumo e o tom das conversas nesses lugares era diverso. Com uma clientela de homens onde predominavam os que faziam do mar o seu modo de vida, era da dura arte de nele se afirmar e sobreviver que falavam; e faziam-no com imagens sonoras recheadas de palavras e expressões muitas vezes difíceis de entender, sobretudo pelos que, distantes dessa curiosa maneira de dizer, acabavam muitas vezes enredados na teia verbal daí resultante.
A alteração das falas decorrente das prazenteiras libações punha à vista efeitos diversos: se por vezes acontecia que alguns mais tímidos, se faziam ouvir com tom e euforia desusados, outros havia habitualmente alegres, que eram repassados por estranha e comovente tristeza. Era no entanto mais comum, que em todas as tabernas o tom de voz subisse, e que a animação se instalasse.
Às vezes, o convívio também trazia a surpresa do canto, que, nas tabernas, tinha no fado a sua expressão mais desejada; assim quando entre a clientela, marcava presença alguém agraciado pelo dom, era quase certo, que, a dada altura, o fado com toda a sua aura de nostalgia e sentimento, brindaria todos os presentes pela voz, pelo silêncio e pelas emoções que em cada um iria despertar.
Preenchida assim de todos os pressupostos que a faziam, dir-se-ia que a taberna se cumpria.
De entre o que era costume e para lá do que já foi dito, será interessante referir que nesta terra também se contavam histórias. Naturalmente associadas a tranquilos serões e outros convívios, nada impediria de acontecer, se oportuna fosse, diferente ocasião.
Não era uma terra de letrados; pouco favorecidos pela época e pelas circunstâncias, foram quase todos vítimas do analfabetismo que o regime semeava.
A tradição oral colmatara a ausência de livros e leitores, e, na continuidade, proclamou o conto como elemento essencial na formatação da memória e da consciência colectiva. Alguns contadores eram particularmente dotados, fazendo com as suas narrativas as delícias de crianças e adultos.
Em criança, ouvi do meu avô materno alguns relatos, que, ora me prendiam pelo insinuante enredo, ora me espantavam pela estranheza, suscitando-me também por vezes, incómodo receio; tenho da feição bizarra de algumas dessas historietas, vaga memória.
Apesar do seu ar habitualmente severo e até mesmo pouco simpático, meu avô transfigurava-se como narrador, pondo todo o seu empenho nesse papel e representando razoavelmente as figuras das histórias.
As aldeias como Alvor, tinham nos anos cinquenta e sessenta do século passado hábitos sociais interessantes que em termos gerais tentei trazer aqui.
Não pretendendo ser cansativo na abordagem, decidi fazê-lo pela rama, esperando mesmo assim ter avivado memórias e provocado alguns sorrisos.
A rede social era concreta e genuína e acontecia pela espontânea necessidade de afirmar pelo encontro, a nossa humanidade; sem o outro não existimos; e todos também somos o outro.