Os pescadores e o mar
Havia um tio, pescador, que um dia da janela do seu barco me mostrou o mar. Mar que deslumbrou o menino, e que o jeito de olhar do homem, ao longo dos anos havia de o dizer em ingénuas alusões.
E havia os meus avôs, também pescadores, e todos os outros, que o mar cortejara e a exígua dimensão do lugar irmanara.
Com todos eles, e por todos eles, nasceu uma história nova, um segredo que era preciso desvendar.
Estive sempre muito perto de todos os que o mar tinha; aprendi-os, e ao mar; e ficou para sempre comigo um fascínio imenso por tudo o que significava ser pescador.
E havia tanto, na vida de quem aceitara o repto da imensidão: o meu avô paterno tinha o saber dos aparelhos, - linhas de pesca com centenas de anzóis, que no mar se estendiam a perder de vista; na popa das traineiras por onde andou na pesca da sardinha em grande parte da sua vida, cabia ao meu avô materno o arrumo do corcho - conjunto de bóias de cortiça que sustinham a rede da arte do cerco.
O meu tio, que me permitiu o mar e fez durante alguns anos as delícias das minhas férias grandes a bordo da traineira que governava, era mestre da arte do cerco, e foi de todos o que mais me marcou.
Cada saída para o mar era uma roda de emoções que nunca esqueço. Dele veio o que ainda conservo, do conhecimento sobre a pesca da sardinha, e de toda a inesquecível experiência de vida a bordo.
Cresci com o mar à vista, e a meu lado homens de quem recebi a medida possível do mérito das suas vivências.
Em todos eles, para além do conhecimento da faina, existia um modo de ser que os terrenos ofícios não concedem.
Pela dignidade e pela coragem, e por tudo o que a proximidade me ofereceu, tenho por todos os que no mar teceram as suas vidas, o apreço que a natureza da sua condição exige.
O tempo e a recusa do corpo, vencido pelo cansaço e pela corrosão dos elementos, dirão do fim da relação, mas ela persistirá para além do seu termo.
Ser pescador, é ter mar pela vida fora, mesmo quando já não o têm: alguns têm-no sobre a cómoda, na forma dum búzio que lhes trás recados e lágrimas; outros, recordam-no em inflamados relatos de apertos inúmeros, que fazem o apego brilhar ainda mais; todos o têm no rosto curtido pelo sal e pelo sol; no olhar distante que os largos horizontes obrigaram; nas mãos, onde se desenham intermináveis remadas e se escrevem cabos e linhas em pregas de tortura; alguns, ainda hesitam o andar e ajustam o passo como se a ondulação os tomasse; em todos, o mar navega nas palavras que a relação gerou.
Eternamente rendidos ao enlevo do mar, conservam a chama dessa estranha afeição, para sempre acesa no seu entendimento.