O vento a raiva e o silêncio
O vento soprava desabrido e frio, semeando transtornos que a noite agravara.
Surdira a sul, no despertar do dia, jovem, por isso bonançoso, a hesitar o sopro, que a manhã diria no correr, do seu crescer e do seu rumo: na ladeira do sol até ao cume havia de enfunar velas ansiosas e soprar as virtudes do seu génio, alternando a rota, até que, declinada a chama, seguisse a rosa nos caminhos do norte.
A tarde costumava fixá-lo fresco, colateral e derradeiro, e a noite, demovê-lo do vigor do sopro.
Mas a noite chegou, sem argumentos para a veemência do ar.
A decisão do mar e a sujeição à sua versátil natureza, fizeram de Luís, homem de poucas falas e basta fúria. Vezes sem conta, a sua raiva mal contida se derramou nas contrariedades da relação.
A dureza do homem, a energia e o mau génio, valeram-lhe alcunhas, respeito, e algum temor, da parte dos que com ele partilhavam o mar e a vida.
Sociável em parca medida, e apenas na sempre breve pausa entre a faina e a família.
Tinha um companheiro jovem, que fazia a aprendizagem da lida com acanhado e apreensivo respeito; na instrução, o silêncio de bordo, nada devia ao que a muda envolvência revelava: José Inácio era o seu nome, e ensaiou quase sem palavras, a peça que levaria à cena em grande parte da sua vida.
Preparadas que estavam as artes para um dia de pesca, para estas almas, nem ventos nem marés, nem humores de mar, haviam de impedir o pão.
Com os aparelhos à cabeça, e as curvas dos braços argoladas por asas de cestos pejadas de apetrechos que a faina exigia, caminhavam rua abaixo em direcção à ria.
O trabalho acrescia, com o vento rijo a contestar o equilíbrio da carga.
Palamenta a bordo e prontos para o mar, Luís recusou a vela, armou remos e vigor, e aprestou-se sem ajudas, a enfrentar ventos e correntes pelas rotas do céu, até ao destino que as acesas referências apontaram.
Chegados ao mar do desejo, restava que o permitisse a cortesia do vento.
A barlavento reinava o noroeste, que Luís enfrentava sem palavras, empunhando remos que os toletes gemiam.
De proa no vento e pesqueiro na borda, remava sem seguimento, suspirando calmarias que a lida exigia e o tempo negava.
A noite piscava luzeiros, e no silêncio de bordo a ansiedade crescia pela dúvida. Com vento tamanho, improvável seria a reclamada faina.
O relógio ainda não obrigava, e a esperança vivia dos seus limites; depressa porém, sumiram esperança e tempo, que eram outros os desígnios de Eolo.
Salpicos de água que o vento soprava, temperavam a fornalha humana, e à luz débil da lanterna de petróleo, eram visíveis a revolta e o desagrado nos traços do rosto de Luís.
José Inácio, assistia no silêncio da sua timidez.
O balão das emoções enchia perigosamente, e naufragavam na tensão que o vento acumulava, os cada vez mais fracos vestígios de bom senso.
Remavam a raiva e a angústia, sucediam-se emoções e desacerto, e tudo fugia ao racional entendimento da peça em cena; até que, os limites ditaram o furor de Luís:
–Largando bruscamente os remos que empunhava, Luís ergueu-se enraivecido, lembrou arbitrários e constantes apertos e transtornos, contestou a absurda impunidade, praguejou, gritou, e desafiou o vento a humanizar-se e a enfrentá-lo, para, como semelhantes, resolverem a contenda à maneira dos homens ofendidos.
Não abrandou o vento, nem em Luís a vontade de desforra.
Impedido da faina e do pão e entre pragas e maldições, Luís não se conteve, e, de cabeça perdida, movimenta-se bruscamente para a proa da embarcação, procurando sob uma pequena coberta o cesto que continha o farnel.
Com o semblante desfigurado pela raiva e o gesto possuído pelo desnorte, despeja-o impetuosamente, dele retirando um saco que depressa esvazia.
Prestes, volta-se na direcção do vento, colocando-o com a boca de maneira que o ar em movimento depressa o encha.
Acto contínuo, e exibindo o saco já prenhe da tirana ventania, ergue-se possante, puxa da navalha, e com a furiosa serenidade dos vencedores, esfaqueia-o vezes sem conta, ao mesmo tempo que grita frases de vitória e de vingança.