O outro tempo da pesca da sardinha
De cristal o mar e cintilantes as formas que o animam. Despontam na flor da água, ondulando a timidez. Navegam os beijos do vento, até que o tempo diga se o porvir mantém gentil o sopro, ou se é feito de gene capaz de embravecer.
Sem pétalas de sal à vista, parecem mais talhadas por delicado cinzel, de presumível pertença a amistosa viração.
Muito ao largo, cercada do azul que o sol acende, e sem que à vista conceda a terra mostra alguma, há uma traineira que ao mar lançou a sua rede.
O mar é fundo e não apoquentam as incertezas da pedra; por isso, a retenida corre vagarosa nos tambores do guincho; há-de trazer à borda por bombordo, as argolas que fecham a rede, barrando a fuga pela aberta, e encerrando do lance a parte primeira.
Desponta o sol e descobrem-se as cabeças em respeitosa saudação.
Faz-se tempo de alar a rede; já a prendem as mãos e se ensaia a melopeia que a adoça.
Imensa, negra de azeviche, repassada de breu e voejada de estridentes gaivotas,estende-se como um leque ao lado da embarcação.
O canto e os braços em esforçada sintonia, e a rede, medrando a bordo, pesada e vagarosa, preenchendo a ausência semeada no mar da esperança.
Na popa desenham-se as voltas do corcho, que cresce com a rede em criteriosa arrumação.
A cantilena confronta a canseira; desafia-a na monocórdica harmonia que alguém entoa; depois, a uma só voz, a solidária resposta da companha às pretensões do desalento.
Prossegue a faina melodiosa e dura.
Exige-a o mar, tomado nas entranhas. Por ora, apenas esforçado labor, que reina a bonança e o tempo sorri.
Vão os olhos percorrendo a rede que se apouca. Buscam nos sinais vislumbres de pão.
No convés que corre por bombordo da popa às argolas, cresceu o corcho e a rede, e no barco a graça da inteireza.
Na chata julga-se o lance; mede-se o sucesso ou o fracasso; as razões se de revés se trata, que a sorte explicações dispensa.
Afloram cardumes que percorrem a rede que o canto aligeirou e os braços porfiaram.
Do cerco já muito abreviado, irrompe um turbilhão de prata vibrante, que ilumina o olhar.