O outro lado das palavras
Enquanto me convocar o espanto
viverei na iminência dum verso
Apenas o linho das palavras
permitirá a cal do poema.
Propósitos
Que as palavras traduzam
a veemência do desejo.
Que tenham a subtileza do ar
e a leveza do voo.
As flores da sua lavra
As palavras habitam
o mistério do poema.
Convictas da sua condição,
dirão com a clareza
da sua obscuridade,
e em cada jardim
despontarão as flores
da sua lavra.
Sintaxe de abelhas
Fachos de orvalho que incendeiam as sílabas,
e descerram cortinas de aurora
na bruma do verbo.
Palavras solares, que esmagam doutrinas
e florescem em jardins de água,
solidárias e inquietas,
cheirando a espanto e a jasmim,
cúmplices de frases que governam o vento,
e em cada parágrafo sopram o riso das manhãs.
Discurso de pedra lavrado pelo cinzel das águas,
onde uma sintaxe de abelhas insinua a primavera.
A poesia do sal
Quero o céu e o mar
e o sol a escrever a poesia do sal.
Quero a alma do ar a açoitar-me,
e as éguas de espuma,
e a volúpia da chuva,
e a terra a inundar-me.
Quero colher do verde
a luz que o acende.
Quero as palavras e o verso
e o mar que as navegue
A música e o silêncio
Uma palavra que brilhe para além
das suas prosaicas fronteiras;
que ateie a fogueira dos espíritos
e aquiete o sopro que a obriga.
Que a sua música desperte
a graça de quem ouve,
e o seu silêncio a musa de quem lê.
Uma palavra nua e pobre;
liberta do jugo da retórica;
que seja semente e flor e fruto,
e apenas se cumpra.
Maternos sobressaltos
Sempre que no redor se acende
o olhar e o desejo,
a terra agita-se em maternos sobressaltos,
até que a insónia lhe dite as palavras
que ousem subverter o mundo.
O dizer do vento
Quando as palavras são pássaros,
e voam nos versos que as resgatam
para o dizer do vento,
talvez o canto as liberte
da prisão dos espelhos.
O novo canteiro
Agora que o tempo
nos impede a flor nos lábios,
faremos da voz e do olhar
um novo canteiro.
Livros
Os livros nascem nos olhos
de quem lê.
Às vezes, descem
por veias comoventes,
até ao lugar onde pulsam
a estranheza vibrante
do seu hálito,
e aí fermentam
o desejo de mar.