O ferro velho, a aldeia e o vinho
A chegada do ferro velho, espevitava e agrupava a moçada da aldeia. Conduzidos por juvenil entusiasmo, viam no discreto aflorar do seu sorriso, sobejos motivos de ingénuo contentamento. Juntavam-se à sua volta, e faziam a festa e o cortejo até que o regresso o obrigasse.
Enquanto criança, habituei-me à sua presença e festejei-a como todas as outras.
Vinha de fora, dizia-se. Da lonjura que a vista não cobria nas andanças do hábito.
Por costumeiras, as vindas passaram a ditar ao lugar novas regras: excluir do lixo o conteúdo do pregão, e com isso ainda obter algum proveito.
O correr do tempo entre visitas, iria lembrá-lo sempre que os eventuais quadros fossem ao encontro das molduras do seu fazer.
Os ajustes eram feitos por adultos e por jovens, que, entre presenças, iam juntando tudo o que lhes permitisse realizar alguns tostões.
Quando a sua vinda acontecia, toda a aldeia despertava e punha nele a atenção e o interesse.
Trapos, metal, cobre e garrafas!!! Trapos, metal, cobre e garrafas!!!
De voz rouca e sem alma, magricela, pálido e olhar distorcido por lentes garrafais, levava a cada rua o favor da recolha do que em cada casa se esgotara no préstimo, e no canto mais escuro aguardava o seu regresso.
A armação negra e pesada dos óculos, assentava num nariz fino e encurvado, e discordava do rosto, magro e incapaz de mantê-la sem o recurso ao manual ajuste.
De saco vazio sob o braço, entoava o fanhoso pregão rodeado da pequenada que se agitava num envergonhado rebuliço.
Aos poucos ia chegando gente, segurando objectos que o tempo desgastara e a serventia enjeitara. Coisas inúteis, que o nosso homem inaugurava e conduzia a uma original cadeia de reconversão que ninguém conhecia.
Formavam-se filas de interesse e de curiosidade. Desfile de velharias que os olhares esmiuçavam. Algumas suscitavam vagas memórias, que as reviam na função que o tempo esgotara.
Muitos, de mãos vazias, acompanhavam o cortejo, hesitando palavras e gestos, rindo às escondidas e disfarçando a timidez que a presença de alguém sem laços de proximidade, sempre convocava.
As lentes, que embaciavam o olhar, levavam-lhe a relativa nitidez das coisas e a decisão do seu valor.
Da cozinha vinham quase todas as peças que comprava, e às suas mãos chegavam com a certeza da sua completa degradação: louça de alumínio que esgotara a mestria do latoeiro; metais diversos que se haviam corroído nas tarefas da sua utilização; cabeças de fogões a petróleo rompidas pelo aquecimento e uso constante; tecidos que a função desgastara e o saco dos trapos recolhera; garrafas que os temporais de inverno faziam chegar à costa, e a preia mar exibia por entre boias, redes e cordame, que a força do mar enovelara.
As garrafas, que os novos tempos vulgarizaram, tinham nas vendas avulso de líquidos de consumo diário e corrente dessa altura, a importância que o nosso homem naturalmente percebia. Ao interior chegariam levadas pela bonança calculista do seu saber.
Importará também dizer, que o nosso amigo ferro velho fazia coincidir as suas deslocações a Alvor, com a abertura do vinho novo nas adegas.
Por tudo o que se sabe do passado vinícola desta terra, e da excelência dos néctares produzidos, ficará sempre a dúvida sobre as autênticas razões das suas visitas.