Francisco da Adelina
Quando acontecia surgirem duvidas na identificação dos que, tendo igual graça, e quando ausentes vinham à conversa, era costume associar ao nome, e como apelido, o nome das mães, ajudando com isso ao seu mais fácil reconhecimento. Adoptado ficaria a partir daí o informal aditamento e o seu uso, sem necessidade de administrativa formalização.
Por idêntica razão foi o nome de Francisco acrescido do maternal apêndice, passando a ser aos olhos de todos e para o resto da vida, o fulano de sua mãe
Francisco da Adelina foi sineiro, jornaleiro e pregoeiro; conheci-o durante a infância e a adolescência, e a sua exígua e indefesa figura suscitou-me sempre uma estranha ternura. Era uma espécie de criança muito velha, mas sem família, nem os costumados laços afectuosos que entre parentes se costumam desenvolver e nos confortam por sabê-lo.
Andava descalço, com camisolas gastas que raramente inaugurou, e quase sempre em discordância com a estação; calças já roçadas noutros corpos, remendadas, enormes, presas na cintura com uma corda que passava pelas presilhas dum inexistente cinto, e com as dobras do que sobrava subindo nas breves pernas, deixando à vista uns pés minúsculos onde se acumulava sujidade sem limites.
Conhecido pelos pregões que anos a fio vozeou pela aldeia fazendo chegar aos ouvidos de toda a gente as novidades que a ocasião tinha disponível, ou o anuncio de qualquer coisa que sumira, e que alguém, com a promessa de alvíssaras esperançava recuperar, Francisco tornou-se também popular e estimado pelos jornais que vendia, preenchidos das frescas notícias que se ofereciam aos poucos que eram capazes de os decifrar.
A vida na terra também passava nessa altura pelo soar do sino, e Francisco, que o compromisso elegera para levar a toda a gente os seus sonantes recados, fazia-o sempre que religiosos imperativos assim o exigissem. Ao fim e ao cabo era o sineiro, e respondia perante a igreja a que o sino estava particularmente associado.
Através dele convocava os fiéis para a oração, dizia do tempo, repicava festas, baptizados e casamentos, dobrava a morte em confrangedora dolência, e quando pairavam ameaças que a todos diziam respeito, tocava a rebate para que fosse decidida solidária e adequada resposta.
Já não se ouvem os sinos; já não há quem os toque nem quem os entenda.
Francisco viveu numa pequena casa sem janelas, escura e funda, com a luz que a porta consentia incapaz de refrear o sombrio quadro da sua abreviada dimensão.
Tinha uma companheira, a “ti zorrinha” com quem partilhava o nada da sua vida, e de quem recebia coisa nenhuma, preenchendo-se mutuamente com o vazio decorrente das suas acanhadas existências.