Fortunato, o pescador
No lugar onde somos, o azul vai muito para além do que o céu nos mostra, a terra é pobre e acanhada, e o rumo era quase sempre feito desse outro azul, mais rasteiro, que o tempo escreve, os olhos preenchem e a vida obriga.
Quando Fortunato, muito novo ainda o decidiu, talvez ele já o quisesse, por perto.
Gerada em precoce cumplicidade, a relação que cedo estabeleceu com o mar, foi sempre feita de genuína afeição, e de desafios que os anos foram tornando cada vez mais aliciantes pela crescente exigência.
Do mar, o acolhimento dado aos que o relevo assinala, e que nele se afirmam com a devoção própria das liturgias da sobrevivência.
O que dele recebeu, também foi a medida do seu respeito e humildade, e o reconhecimento do seu nada, perante a desmedida vastidão, e a infindável energia da sua natureza.
Mestre do anzol na sua expressão mais simples: a leitura perfeita da mostra elementar; uma linha que a mão segurava e traduzia como ninguém as mensagens dos fundos; alguns anzóis que a experiência armava, e a isca das circunstâncias preenchia.
Tudo isto, associado a um particular jeito e modo de fazer, deram a Fortunato a reputação que todos reconheciam.
Na vida dum pescador o êxito ficava muitas vezes ligado à sorte, mas a argúcia deste homem banalizava o papel do acidental na arte que abraçou.
Apesar de todas as incertezas do ofício, raramente o seu bom desempenho, foi aleatório.
Pescava lulas à noite, com os faróis a petróleo na borda a arrancá-las do fundo e do redor, e com tóneiras forradas de brancura, que ele agitava com gestos calculados para fisgá-las.
Conservava-as dentro de água em cesto próprio, preso na chumaceira e encostado às obras vivas que o verdugo estremava.
Por vezes, as guelhas atraídas pela luz e pelo recheio do cesto, destruíam-no e devoravam as lulas.
Quando a pescaria decorria sem incidentes, o nascer do dia fá-lo-ia pescador de corvinas, de pargos e de dentões.
Usava para isso as lulas como isco, anzolando-as de maneira a mantê-las vivas, e atrair pelo movimento, as espécies que o desejo elegera.
Alguns relatos de vivências piscatórias na primeira pessoa, trouxeram-me à memória a última grande obra de ficção com que Hemingway nos presenteou: o velho e o mar.
Tal como o velho Santiago, Fortunato teve nas corvinas, (sem o desconforto dos tubarões), os seus espadartes gigantes, e os desafios que o levaram a envolver-se em duras disputas, que a natureza hostil e desajustada do meio, tornavam mais cansativas, por demoradamente sofridas.
Algumas vezes arrastado por peixes enormes durante muito tempo e por grandes distâncias, Fortunato viveu as suas capturas com o esforço que as situações exigiam, e a sabedoria que a experiência ia produzindo.
Nos últimos anos, a arte do anzol tornou-se insuficiente pela acentuada baixa das espécies, o que o levou a ensaiar nas redes, uma nova forma de assegurar a subsistência.
O seu tempo de mar, deu lugar como em muitos outros pescadores, ao tempo da ria em Alvor. À agitação do oceano seguiu-se a tranquilidade lagunar e a sua descontraída fruição.
Sempre com o mar por perto, teve em permanência e de viva voz, notícias suas.