Fernando (farinha), a metáfora do mar
Ao mar se fez ainda verde, que outro, por raro, difícil seria, sendo como era em tons de azul a oferta que soía.
O pão sabia a sal, na mesa de quase todos.
Fernando, que a terra decidiu pelo canto, alcunhar de “farinha”, foi bem maior que o contido nesse redutor apelido. Por ele passava apenas a voz, que, mediana no desempenho, nunca foi o melhor caminho para chegarmos ao entendimento da sua real valia.
O mar e a faina navegaram-no como a nenhum outro, deixando nele relevante marca, e dele fazendo especial discípulo.
E foi nessa tarefa de convocá-los muito para lá das suas fronteiras, fazendo deles menção nas mais improváveis circunstâncias, que Fernando revelou invulgar e precioso talento.
Pouco conhecida dos que escolheram terrenos ofícios, a terminologia náutica marca a diferença para tudo o resto que a palavra contempla. Dizer do mar, dos ventos, do navegar, dos barcos, das artes de pesca e de tudo o mais que envolve a relação, significa para os que nela decidem viver, a aprendizagem dum património linguístico fascinante, que é parte fundamental da nossa tradição marítima, e que resulta da necessidade de entendimento sem equívocos em plena faina.
Pela ria chegou ao mar aberto; nele semeou desmedidas linhas de canseira, que consumiram o olhar e acenderam a noite e a esperança. Puxou redes em chachorros, secadas e traineiras, e em latitudes pouco ajustadas à sua carnadura, foi-lhe imposto em precário batel, um mar feito de novos imprevistos.
Do mar e do que lhe estava associado veio toda a matéria para o poema da sua vida; só tinha que o recitar ao mundo.
Da bacalhoeira vivência, e de sua lavra, cantou os versos que a diziam: singelo retrato da exigência da faina, dos benefícios de bem cumprir as tarefas, da vida a bordo, dos constrangimentos, do raro e passageiro ócio, dos proveitos que a arte de pescar trazia aos mais capazes. e tudo o mais que, não tendo sido dito, podermos supor acontecer a quem vivia durante meses a fio no reduzido espaço dum navio que a modernidade não consente, cercado de céu e mar férteis em diferentes e inesperadas ameaças
De Portimão, compôs a imagem da pitoresca azáfama do seu cais nas décadas de cinquenta e sessenta, e levou-a pelo canto a toda a gente. Descrição fiel, que a linguagem coloquial realça, e a alusão a recorrentes e curiosos factos se revela particularmente interessante para os que a vida obrigou ao convívio com essa alvoroçada realidade.
Por imperativo de saúde fez uma pequena cirurgia no hospital de Portimão, fazendo dela posterior relato, num desfiar de vocabulário próprio da faina, engendrando para alguns procedimentos cirúrgicos da intervenção e para o ambiente e logística do bloco operatório, invulgares imagens alegóricas que a sua imaginação ia ditando.
Esta linguagem não era de fácil entendimento para os que viviam à margem do seu mundo, sendo no entanto notório, que a sua descodificação surpreendia sempre todos pela curiosa e divertida originalidade.
São incontáveis, e muitos deles registados pela memória dos que viviam atentos ao seu delicioso discorrer, os exemplos que o dia a dia e as conversas de ocasião que o envolviam, nos ofereciam.
Tinha um olhar algo ausente e apagado, mas sempre que na sua expressão o assomava demorado e maroto, fitando enviesado o seu interlocutor com brejeiro sorriso e pausada atitude, era quase certo que o mar o tomara e que a maré cheia do seu pulsar havia de inundar de versos o mundo à sua volta.
Fernando foi metáfora do mar em toda a sua vida, e soube dizê-lo com a autenticidade que apenas os eleitos, (poucos), a ele vinculados por rara afeição e que dele se fizeram fiéis seguidores e intérpretes, ousaram conseguir.