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Alvor,a terra e a ria

Alvor,a terra e a ria

18
Nov20

AS VOZES DA ÁGUA

Joaquim Morais

 

 

 

   Em toda a aldeia passou a haver uma torneira, e um reservatório novo, cilíndrico, enorme, que a fazia ser.

Era um lugar com poucas casas, e as gentes, do mar as do lugar, e as outras que a periferia acolhia, eram o que a terra, e o mar, e a ria, decidissem.

   No novo depósito, a água correria agora sempre que aquela torneira dispusesse de mão que a cuidasse, e a terra havia de festejá-la em cada casa.

   Pequena, a aldeia mesmo assim distava o cansaço do cilíndrico depósito, instalado no arrabalde. O custo crescia ainda mais, para os que o desterro dos extremos em azar saíra.

   A princípio, a festa da água anulava canseiras, mas a precisão aturada, depressa fez quebrar a alma, ausente que ficou o alegre suporte.

   O engenho ainda ditou para alguns, hábeis soluções de resposta à fadiga e à distância. Todavia, a veia criadora estava em quase todos mais virada para tudo o que a faina reclamava e o mar exigia.

   João de nome e “pão“ de alcunha, foi um dos que se propôs trazer a cada casa, cada cântaro, sem o encargo da canseira que a distância urdia. O João “pão”, passou a garantir a água sempre que à sua passagem o pregão “áááágua”, se fizesse ouvir, pelos que o vazio dos cântaros, trazia despertos.

   O João “pão”, usava um carro que a arte dos práticos concebera. Tirado pela burra “boneca”, cumpria com pragmático apuro o encargo da distribuição. Duas filas de seis cântaros corriam de cada lado, alojados em aberturas forradas da suavidade necessária à integridade das vasilhas.

   E João”pão”percorria as rua do lugar, de ombros forrados do tormento dos cântaros, bebendo as sedes, e aligeirando a sujeira que o tempo relevava.

   Depressa porém, a tarefa se mostrou grande para a pequenez do João”pão”. A água fácil, convidava ao gasto e ao sumiço.

   José Raul, também depressa percebeu que a ocasião podia fazer dele um novo aguadeiro, e todos poderiam ficar a ganhar com isso: mais água, menos sede, e higiene avonde.

   José Raul tinha sido combatente da primeira guerra. A língua francesa ainda lhe soava ao ouvido, e dela ficaram palavras e expressões que o regresso calara. Sem interlocutores que o permitissem, mesmo assim ainda ambicionava fazer-se ouvir na língua de Descartes, aguardando apenas pela aberta, que o tempo havia de apontar.

   Para uma plateia pouco dada a outras falas que não as do lugar, José Raul decidiu a solo, a opereta monocórdica que o havia de lembrar.

   Com o burro “Sincero” pela arreata que a mão carreava e os ombros colhiam nas voltas do chicote, começou a percorrer as ruas de Alvor, com a carroça prenhe de cântaros, e entoando o estranho pregão: “de l’eau”, “de l’eau”, “de l’eau”.

   A estranheza do verbo só a princípio confundiu as gentes, pois o transvase dos cântaros era sempre acompanhado da tradução do pregão.

   Habituados que foram às vozes da água, e com os fornecimentos dilatados, tudo pareceu e correu conforme, ao desejo de todos.

 

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