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Alvor,a terra e a ria

Alvor,a terra e a ria

27
Jul20

As vinhas que assomavam ao mar

Joaquim Morais

     Nunca tive a procupação de saber exactamente o seu número, mas eram muitas as adegas que Alvor tinha. Talvez mais de uma dezena. Ainda conheci muitas delas, e tive o privilégio de saborear o vinho nelas produzido. Estamos a falar de há sessenta anos atrás, portanto duma época onde a sua dimensão e abertura ao mundo em nada tinha a ver com os tempos actuais. Era uma aldeia de pescadores, com pequenas hortas em seu redor, e sem expressão habitacional. A ultima adega de que tenho memória é de, talvez há trinta anos atrás. As uvas eram castas da região produzidas em terrenos de areia, soalheiros, junto ao mar e que originavam néctares duma qualidade excepcional.

   As romarias às adegas em tempos de vinho novo, eram com as festas religiosas, a razão de afluência de muita gente dos arredores e quebra da permanente monotonia da aldeia. 

   A prodigiosa memória do meu pai, à beira dos noventa e três anos, permitiu-me acrescentar a este apontamento o nome dos homens que nas décadas de quarenta, cinquenta e sessenta, tiveram adegas em Alvor com fabrico próprio. A relação é aleatória, sem a particularidade da ordem cronológica. De referir também que já nenhum está entre nós.

  Francisco Fernandes, Joaquim Paulo, Francisco Faustino, José Mendes(o marreco), Eduardo, Francisco Mendes(alvanilho), Manuel Franco, Joaquim Martins,Francisco Domingos, José Cartaxo, Soares, Joaquim Catarino, Francisco Paulo Pereira, António Santana, António Pedro.

   Neste registo fica também a devida homenagem a todos eles                       

 

                                                                  


                                            TEMPO DE VINDIMAS



   Rompia o dia. O sol dardejava os primeiros raios de luz num céu sem nuvens, onde o brilho da estrela d´Alva ainda persistia. Levante radioso e fresco, que exaltava os odores discretos dos figos, dos maracotões e das uvas, que bandos de pássaros nervosamente depenicavam. Nas encostas rochosas que nos levavam à praia, rompiam fugidios, coelhos bravos que rapidamente se escondiam nas tocas escavadas na terra. Também aqui, os aromas do funcho, das aroeiras, do rosmaninho e do tomilho, misturavam-se perfumando o ar fresco da manhã silenciosa, onde apenas se faziam ouvir o marulhar das águas, o canto dos pássaros e o grasnar de gaivotas que enxameavam rochedos meio submersos. Bandos de pombos bravos saíam de fojos que as salgadeiras escondiam e disfarçavam, voando mais para o interior em busca de alimento. Por entre as videiras de troncos entrecruzados formando figuras grotescas e vestidas de folhagem dourada onde assomavam negros cachos de suculentas uvas, bandos de perdigotos ensaiavam correrias na peugada da mãe que vigiava todos os movimentos. Raramente, uma raposa astuta, mais descuidada, passava ligeira a caminho da toca, depois duma noite de rapina num galinheiro das redondezas.

   Mês de Setembro, tempo de vindimas. Nos areais sobranceiros ao mar que a falésia contemplava, ranchos de homens e mulheres separavam das cepas cachos reluzentes de uvas que o calor tórrido dum Verão que persistia se encarregara de amadurecer. De cabeças cobertas por grandes chapéus de palha, as mulheres movimentavam-se com desenvoltura, enchendo pequenas cestas de vime, para, de seguida, deitarem em enormes canastras, que homens cobertos de serapilheiras a que deram previamente a forma de capuz, carregavam para grandes dornas montadas em carros de besta.

   À medida que o sol subia no horizonte, o calor tornava-se insuportável, obrigando a uma pausa à sombra de uma frondosa figueira, onde havia sempre uma enfusa de água fresca para dessedentar toda a gente.

   Grilos e cigarras enchiam o ar com o seu canto arrastado e monocórdico. As vespas atraídas pelo néctar açucarado que escorria das cestas pejadas de uvas, esvoaçavam em volta das mulheres zumbindo ameaçadoras. Por vezes, ouvia-se o grito de alguém mais assustadiço que, na progressão, fizera levantar uma lebre que quase fora pisada na cama. A passarada refugiara-se do calor em cerradas e ramudas figueiras e nas aroeiras que enchiam combros e valados. Era uma canícula que só o descambar do sol poderia atenuar.

   À medida que a tarde avançava, a temperatura ia-se tornando mais suportável, a luminosidade esbatia-se, e havia um retomar da actividade em todos os seres até que o sol voltasse a esconder-se no horizonte poente.

   O dia chegava ao fim. Nas adegas, já tudo havia sido preparado para iniciar um ritual de séculos que daria sequência ao trabalho da vindima. Daí a alguns dias fermentaria o mosto nos lagares e a natureza voltaria a cumprir-se.

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