AS SALGADEIRAS
A aldeia, como quase todas as do seu tempo, convidava ao mosquedo. Era o resultado de comportamentos descuidados, e da ausência de regras de higiene pública: a uma lixeira colectiva, a céu aberto, sem qualquer tratamento e não muito distante do casario, juntavam-se em muitos quintais pequenas compostagens, também ao ar livre, sem critérios de higiene na selecção e na preparação dos resíduos, que continham frequentemente restos de fácil putrefacção. Num cenário de evidente ausência de cuidados sanitários, era inevitável que as moscas reinassem, tornando-se difícil acabar com o seu consistente protagonismo.
Pestilentas e atrevidas, eram um desafio permanente para os que recusavam ser alvo das suas intermináveis investidas, e porto para as escalas do seu voejar.
Nalgumas casas, as portas que davam acesso aos quintais, alguns deles a funcionar como excelentes locais de incubação, estavam protegidas com fitas coloridas, que drapejavam ao gesto e ao vento, mas evitavam em certa medida, o acesso destes e doutros insectos voadores. O mesmo processo era utilizado nalguns estabelecimentos comerciais. Nas casas de habitação, era costume as pessoas enxotá-las várias vezes ao dia, agitando panos ou toalhas, que as encaminhavam de divisão em divisão, até à rua.
Não existindo diligência publica estruturada para atalhar a sua disseminação, ficava ao critério daqueles a quem importava o desconforto, a improvisação de medidas que o minorasse.
Vinham de todos os lados, atraídas pelo odor açucarado das uvas. Esvoaçavam o desejo de sugar, seguindo o rasto meloso deixado no caminho das adegas, e pairavam nos lagares, teimando nos homens, os braços e os rostos peganhentos do labor da pisada. Sem bracejar que as demovesse instalavam-se no pasto de doçura em que o lugar se convertera, e por lá haviam de ficar até à consumação do néctar que as enormes pipas hospedavam.
As adegas eram, pelo seu adocicado e aromático ambiente, locais de excelência para a permanência destes insectos, e capazes de atraí-los de grandes distâncias. Por tudo isto, e pela aparente inevitabilidade da sua presença, houve quem nelas engendrasse maneira de a manter em níveis aceitáveis.
A natureza da actividade por um lado, e a qualidade dos vinhos produzidos por outro, convidavam não só as moscas, mas também os inúmeros discípulos de Baco, que, no tempo devido, estavam sempre presentes para festivas e preciosas libações. Não sendo inconciliável a presença dos insectos com o desfrutar dos néctares, o exagero do seu assédio acabava por importunar.
Os edifícios onde as tabernas estavam instaladas, eram de média dimensão, e alguns tinham na divisão do atendimento aos clientes, estupendos tectos com estruturas baseadas em robustas armações de asnaria, que a tradição acolhia e recomendava.
Enquanto criança, quase todos os dias e a pedido do meu pai, deslocava-me às adegas que abundavam em Alvor nessa altura, algumas bem perto do lugar onde morava. Os mandados destinavam-se a trazer à mesa das refeições, o vinho que ele tanto apreciava. Nessas andanças de mandado e quando o atendimento demorava, o olhar vagueava no redor fixando as evidências que nem sempre iam ao encontro do entender dos anos. Bem à vista, suspensos do vigamento inferior das asnas, alguns conjuntos de ramos de um arbusto desconhecido para mim, pendiam criteriosamente amarrados e distanciados uns dos outros. Não entendi o propósito, nem a curiosidade se moveu para deslindá-lo.
O esclarecimento chegou já em adulto, quando, em amena conversa se lembravam tempos de adegas buliçosas, animadas pelo prazer do vinho que o S. Martinho renovava em primaveras de circunstância, feitas da sua vibrante, aromática e cristalina condição.
Eram salgadeiras o que as traves continham suspensas da sua imobilidade. Um arbusto comum nos sapais que circundavam a ria, e que alguém decidiu usar em desfavor do mosquedo.
A noite interrompia nas adegas a azáfama das moscas. Era tempo de se recolherem e abrigarem, até que o dia rompesse e retomada fosse a sua maçadora existência. Eleitas dormitório, as salgadeiras eram cobertas por revoadas de moscas mal caía a noite, transformando a sua natureza vegetal em alado e disforme pendente.
Encerrada a loja, seguia-se o tratamento ao mosqueiro que repousava do labor do dia: munido duma saca de serapilheira de boca larga, o taberneiro subia cuidadosamente e em silêncio por uma escada até junto à salgadeira inundada de moscas, e, com um movimento rápido e preciso, introduzia a salgadeira na saca, segurando e fechando o ramo pela base; acto contínuo, desatava o nó que prendia o ramo à trave e descia com ele bem preso e a saca bem cingida à sua volta. Feita a captura, restava eliminá-las. Nada mais simples, apesar da sua feição um tanto ou quanto bizarra: com a saca a envolver o ramo e a prendê-lo com firmeza, fustigava com ele o chão do quintal ou da rua, até que não houvesse rumor ou sinal de mosca viva.
A seguir era devolver a nudez ao ramo, varrer o mosquedo, e voltar a pendurar nas vigas das bonitas asnas, essa traiçoeira alcova.
E assim se cumpria com êxito, uma estratégia de controlo sanitário pouco ortodoxa, mas de razoável eficácia.