As melhores amêijoas do mundo
Dizem muitos dos que nos visitam e que já tiveram o privilégio de as provar, estarem num nível de sabor, que as pode colocar entre as melhores do planeta. Eu, cá por mim, que não tenho elementos de prova tão abrangentes, atrevo-me mesmo assim, a subscrever essas opiniões. Apenas me conduzem os argumentos do tempo, e o dever de afirmar, que apesar de já algumas décadas a saboreá-las, a hipótese de té-las na mesa põe sempre em alvoroço as minhas papilas gustativas.
Mariscar a amêijoa
A luz da alvorada revela formas espectrais, movimentando-se nos baixios que a vazante deixou a descoberto. Pé ante pé, deslocam-se cabisbaixos, perscrutando atentamente o terreno à sua volta na busca de um sinal que permita localizar o tão apetecido bivalve. São os mariscadores da amêijoa, que, aos primeiros raios de luz, iniciam esta ancestral actividade de que são excelentes intérpretes.
Ainda noite cerrada, costumam juntar-se para “matar o bicho” na taberna do José Morgadinho. É aí, com golpes de medronho e traçadinho, que em tempos idos acompanhavam com batata doce que uma caldeira bojuda ia parindo, que o ritual da matança se cumpre e se prefacia o dia de trabalho desta gente, cujos horizontes se medem na distância entre as vistas e o terreno que pisam no exercício da actividade que abraçaram. Com a alma aquecida pelo calor do álcool, conversam acerca da safra do dia anterior num linguajar característico, feito de entoações que podem sugerir discussão acesa, mas que não passam dum modo muito peculiar de se expressarem e comunicarem.
Assim que se esboça a claridade nascente, aí vão eles de cesto no antebraço: uns passando de barco para o rio da outra banda, outros bordejando a pé a ria pela baixa mar, junto aos morraçais lamacentos, em direcção às cabeças ao longo da Quinta da Rocha, ou a poente dos torrões.
A ria rumoreja a vazante nos inúmeros e pequenos regatos que a preia mar generosamente preenchera. A baixa mar matutina é indicadora do crescimento das marés, cuja amplitude se altera ao ritmo da evolução lunar. Bandos de maçaricos correm nervosos, debicando a lama dos baixios onde ainda persistem pequenas poças de água salgada. O crepúsculo matutino, traz consigo bandos de gaivotas que os rochedos do litoral abrigaram durante a noite e que a montra da manhã exibe num ritual de som e movimento fantástico. O homem, alheado da magnificência que o rodeia, interpreta a rotina da vida que as circunstâncias conceberam.
Munidos de uma sachola trapezoidal que manobram com habilidade e ligeireza, vão escavando a superfície, deixando atrás de si inúmeras pequenas covas, que correspondem a outras tantas amêijoas, denunciadas apenas por ténues sinais, que, apesar disso, não escapam às vistas experimentadas destes mariscadores. Conduzidos por uma intuição natural inata, aliada a uma astúcia que a experiência modelou em função das necessidades, estes homens torneiam com mestria as dificuldades naturais, que, frequentemente,estorvam a localização do saboroso bivalve. Os sinais indicadores da presença da amêijoa nem sempre são iguais. Se por vezes é relativamente fácil a sua localização, dada a definição exacta das marcas que a denunciam, noutras, localizá-la é o resultado do exercício conjunto da experiência e dessa intuição especial, que é apenas privilégio de uma minoria.
As formas diferentes como se apresenta o terreno que tem este bivalve como inquilino, dependem essencialmente das condições atmosféricas. É nos dias calmos e quentes de Verão em que a baixa mar ocorre durante o princípio da manhã, que mais perceptível se torna, o chamado “olho da amêijoa”. Nestas condições, a amêijoa apresenta-se de “olho” bem aberto, e o seu aspecto é de dois orifícios oblíquos, convergentes num ponto que se situa aproximadamente entre cinco e quinze centímetros de profundidade, e cujo afastamento à superfície oscila entre um e dez centímetros. O ponto de convergência destes dois orifícios é naturalmente a própria amêijoa. Fora destas condições atmosféricas consideradas ideais, a amêijoa está “amuada”, manifestando-se o “amuo” de várias maneiras: desde a existência visível de apenas um dos dois orifícios, até à quase total inexistência de sinais identificadores, passando por subtis indícios que mais não são do que ténues alterações no terreno, que passam despercebidas à grande maioria das pessoas. Durante o Inverno, com o tempo frio e chuvoso, a ausência de sinais obriga, por vezes, a que os mariscadores recorram ao método da raspada, ou da cavada que consiste em procurar, raspando ou cavando a eito num determinado terreno, conduzidos apenas por uma motivação meio aleatória meio intuitiva.
A apanha da amêijoa, pode também processar-se utilizando a técnica do arrasto; espécie de ganchorra constituída por uma armação em ferro, a que se encontra ligado um saco de rede e em cuja parte inferior existe uma fieira de dentes. Um cabo de madeira, permite ao homem cravar este engenho na lama e, apoiado na clavícula, arrastá-lo numa área previamente definida. Esta operação, é feita naturalmente dentro de água, sendo directamente efectuada pelo homem se a profundidade o permitir, ou de barco no caso contrário. Para além do arrasto, é frequente também em regatos pouco profundos, um outro método, que consiste em esgravatar com as mãos directamente na lama, ou na areia dos inúmeros pequenos cursos de água em que a ria se subdivide, na busca desse saboroso bivalve.
Para além de todos os processos aqui apontados, torna-se necessário e imprescindível que haja uma predisposição e uma tendência natural para o exercício desta actividade; condições que, a não existirem, condena ao fracasso qualquer tentativa de iniciação e continuidade nesta arte. Esta prática é desenvolvida em ligação estreita com um ambiente natural único, cuja influência em termos afectivos acabará sempre por contagiar todos aqueles que com ele estabeleçam contactos regulares, fazendo ao mesmo tempo despertar sentimentos de alegria íntima, só possíveis numa relação aberta com o meio original, de que nos temos vindo progressivamente a afastar.