Alvor, o nascer da ria
Eram quatro as ribeiras que a natureza adiava nos destinos de mar: na serra de Espinhaço de Cão pelo lado poente, Arão e Odeáxere; na encosta sul da serra de Monchique, Farelo e Torre.
Delicadas e breves, nunca puderam ousar o oceano que o longe afirmava, e o tempo vestia das cores da sua impermanência. Viam-no das alturas serranas, onde as sujeitavam a frouxidão dos bucólicos cursos.
Sem a robustez de fartas águas, o jusante oceânico foi um sonho adiado, até que:
-Por bem acharam elementares forças repôr conformidades, concluir inacabada obra, e ao oceano fazer chegar os filhos que a frágil compleição não consentia.
Nunca o mar vira tempestade tamanha, nunca a terra acolhera igual dilúvio. Ondas invulgares acometeram a praia e o frágil cordão dunar; da terra irromperam serra abaixo inconformadas ribeiras, que acenderam na chuva intensa o sonho das origens.
A bonança tomou as rédeas do tempo, o dia nasceu luminoso e quente, e a cria, recém nascida, aconchegou-se na nova moradia festejada em apoteose pela natureza envolvente, agora enriquecida por acréscimo de peso.
Um imenso estuário surgiu no local da primordial união, e a terra, rasgada pela torrente, acolheu este rossio de água, onde se diluíram particularidades e se encerrou um capítulo da infindável obra planetária.
Ria nascida de singela voluntariedade, esculpida pela rude talhadeira da intempérie na terra agreste e ressequida, que o mar cortejara com cânticos de algas e de ventos.
Dádiva rara e pura, vestida por calmarias e ventos, que se oferece ao buril das correntes, ao engenho das marés, e generosa acolhe a vida no seu seio.
Do alto da colina sobranceira ao novíssimo rebento, alguém a quem a tosca lapa abrigara na áspera procela, olha mudo de espanto, o caminho de água que trouxe a seus pés o oceano, e se perde de vista terra adentro.
Uma agitação receosa domina-o completamente, enquanto o olhar que a estranheza preenche, procura perceber o quadro de terra transfigurada que se estende à sua frente.
Uma nova luz envolve esta gota de universo, transformada em jardim de silêncio, onde florescem inéditos rumores e se sublimam insólitos perfumes. A festa da unidade reencontrada, é duma sobriedade fascinante, e a vida apresta-se a assumir as formas da nova condição.
O homem permanece mudo e quedo, suspenso da caprichosa geografia que os dias repetem: fluxos e refluxos de água, do mar e para o mar, cobrindo e descobrindo a terra, talhando pegos e regatos, tecendo remansos e baixios, rendilhados urdidos pela arte das marés, que a baixa mar exibe na intimidade da sua nudez.
Na passadeira do tempo continuam a desfilar as nóveis ocorrências, que o homem, confuso, procura entender; de andar simiesco e gesto hesitante, amiúde observa demoradamente à sua volta: mão em concha sobre as poderosas arcadas supra ciliares perscruta os horizontes, deles bebendo a idéia da nova realidade, que aos poucos vai acomodando no pequenino reservatório de evidências da sua espartana existência.
A mansidão do lago que se estende à sua frente deixa-o maravilhado, e a idéia do seu saber depressa se apodera da vontade que o instinto comanda.
O calor da curiosidade vai aos poucos desvanecendo receios, e dá lugar à aventura da descoberta, e à constatação de toda a generosidade que a ria revela.
A seus pés há um fecundo útero oceânico que rapidamente se torna conhecido das pequenas comunidades dispersas que à sua voltam se agrupam e decidem novos projectos de vida, colhendo o fruto da árvore dos desmandos da sempre excelente natureza.