A Ria
Aos pés da terra, que cortejou desde sempre com o encanto irresistível dos seus argumentos, estende-se a ria que tem o seu nome. Resultante da confluência de quatro braços de água principais, que são as ribeiras de Odeáxere, Arão, Farelo e Torre, espraia-se numa vasta área separada do oceano por um cordão de praia e dunas, apenas interrompido num estreito canal, a barra, porta aberta para o mar, afinal origem e destino das gentes desta terra. Foi esta ria, feita do misticismo que as hesitações da história foram urdindo, que teria provavelmente constituído a razão primeira do desejo humano de instalar-se, e estabelecer o embrião comunitário, fonte de toda a evolução por que passou, até aos nossos dias. Duma generosidade quase sem limites ainda hoje, adivinha-se as suas potencialidades em épocas onde se reclamava pouco mais do que a sobrevivência, num ambiente que o carácter primário da acção humana não alterava substancialmente.
A geografia dinâmica do seu curso, operada pelo engenho de correntes e marés, oferece-lhe uma mais valia estética rara e preciosa. Inúmeros pequenos regatos, sulcam os baixios, teimando a ria, nas vazantes que alimentam a sofreguidão oceânica. Na baixa mar, despida pelo refluxo da maré que a virilidade sideral ciclicamente impõe, a ria mostra-se na intimidade da sua nudez quase completa e presenteia o homem com uma diversidade biológica ímpar. Os bancos de areia e lama, são percorridos por bandos de aves migratórias, que aqui encontram as condições elementares de sobrevivência para a residência temporária a que as obriga as rotas do instinto. Os sapais, as arribas, as dunas e a terra que gerou, envolvem-na num abraço estreito, comungando em silêncio da originalidade dos rituais que são a sua essência. A maré viva, reflecte a pujança oceânica e a aliança cósmica que preside à prodigalidade do acto. É uma espécie de excesso deslumbrante e mágico, um respirar profundo do mar que entra terra adentro, marulhando segredos e carícias pelas casas e pelas gentes que traz presas nas malhas dos seus encantos.
Local de silêncio e de contemplação, a ria desperta-nos a dimensão espiritual, e convida-nos a uma reflexão que facilmente ultrapassa as fronteiras da superficialidade, e permite-nos a constatação duma realidade mais próxima da nossa condição autêntica.
É neste lugar fantástico, outrora povoado por gerações de homens e mulheres que a bruma dos anos mais longínquos foi transformando em figuras cuja obscuridade reclama os favores da imaginação, que se encontra ainda instalada uma já diminuta comunidade de pescadores, vivendo em estreita ligação com o mar e com a ria e pautando a sua vida pelos recursos que ambos, apesar das agressões, continuam generosamente a oferecer.