A praça
A praça era o centro da aldeia. À praça chegavam as carreiras que traduziam o relógio e a novidade. Da praça partiam os que iam em busca dela, e do que a aldeia não era capaz.
Era na praça que os homens diziam e ouviam. E aos homens, por subversivas razões, nunca era permitido numerosa parcela, nem duvidosa palavra.
Havia olhos que o olhar nem sempre percebia, e ouvidos que às vezes convocavam o espanto quando desvendados: eram os inesperados tentáculos do regime a vasculhar no falatório, agitadora intenção.
Só que, naquele lugar de encontro, nem os homens nem as suas falas, eram feitos dessa revolucionária matéria, que em causa pusesse tão altos desígnios.
Juntavam-se os homens quando circulavam imprecisos rumores, para que deles se ouvisse apropriado esclarecimento, e sobre eles se fizesse satisfatória luz.
Juntavam-se para falar da pesca; das pescarias do dia; das traineiras que em portimão laboravam com companhas e mestres da aldeia, dos melhores na arte do cerco onde a sardinha era rainha.
Juntavam-se outros porque adoravam a galhofa, e faziam da praça lugar de risada e diversão.
Havia mestres na arte da chacota, que a quase tudo emprestavam trocista abordagem, que nela foram com inexcedível graça.
Nas noites de verão, principalmente aos fins de semana, a praça vivia madrugada dentro.
Depois do fecho das tabernas do lugar, os resistentes desaguavam na praça, carregando eloquentes pielas, que fariam corar as suas habituais caladas abstinências.
Alguns havia, feitos do saber do mar, e com um sem fim de histórias que o estímulo da embriaguez desenrolava.
As narrativas, feitas num linguajar onde sobressaía a terminologia do seu dia a dia no mar, configuraram criações metafóricas bem conhecidas da comunidade, e muito interessantes do ponto de vista da linguagem.
Era na praça que ficava o café mais central, e que quase todas as intenções escolhiam.
Do seu interior percebia-se todo o espaço do largo, e as movimentações que nele ocorriam. Lá dentro bebia-se cerveja, café e medronho de monchique; e conversava-se, conversava-se muito.
Havia barbeiro e merceeiro. Havia padaria. Havia loja de roupa e um lojista que também era regedor da freguesia.
Havia gente que a fazia ser, porque nela era.
Mesmo ao virar da esquina, ficava a escola primária, a funcionar em edifício antigo, de interessante traçado, com águas furtadas que amedrontavam as crianças, por dela dizerem coisas assustadoras.
Alguns professores eram vezeiros em usá-la para coagir alunos.
Pela praça, passavam também solenes procissões, preenchidas de austeras figuras com rostos tristonhos, de merecimento disputado pelos ombros dos homens. As mulheres, que ladeavam o cortejo de cabeças cobertas por delicados véus, cantavam arrastadas melodias segurando velas que o vento soprava.
Das janelas pendiam vistosas colchas.
Na praça, as crianças brincavam a despreocupação dos pais, até que o nomear do brado as contemplasse.