A ironia do alfaiate Milton
Mestre alfaiate de comprovado mérito, improvável… não tanto assim, caçador e pescador, intrometeu também a terra em sementeiras de ocasião, espicaçado pela natureza rural do lugar onde durante muitos anos viveu.
Milton, a quem o metafórico dito sempre sorriu, soube como ninguém cultivar a amizade, que as aleatórias tertúlias todos os dias nutriam e consolidavam.
A sua oficina foi palco dos mais deliciosos episódios, e por lá passaram todos os que não dispensavam o humor nas suas vidas.
A mestria do seu desempenho profissional, tornou-o bem conhecido de toda a comunidade regional, e levou a sua arte de vestir com requinte, para lá das fronteiras.
Há muito deslumbrados pelos encantos do lugar, alguns turistas estrangeiros decidiram também, pela reputação do mestre alfaiate, fazer da sua loja local de passagem obrigatória: as férias, passaram a incluir aos que que a condição profissional o fato exigia, as visitas que medidas e provas estabeleciam.
A palavra do generalizado agrado, serviu para muitos outros, que também passaram a frequentá-la.
Nos dias em que o calendário escrevia o habitual descanso semanal, Milton alfaiate dava muitas vezes lugar, ao caçador e ao pescador.
Fui com ele e muitos outros que a pesca amadora irmanou durante anos, solidário na entreajuda, umas vezes pela repartição do esforço aquando da ida dos barcos do areal para o mar, noutras pelo apoio em alturas de varação na praia, quando a suestada nos surpreendia.
Esse tempo preencheu-nos de inesquecíveis pequenas coisas, que, não sendo de assinalável registo, têm na simplicidade a sua maior virtude.
As origens, o conhecimento e a proximidade dos pescadores e da sua realidade, fizeram-nos ser como eles, e, muitas vezes, como eles dizer.
Os diálogos de quem se envolve nesta lida, mesmo sem o peso da obrigação, são duma enorme riqueza metafórica, e têm no mar, nos pescadores e na diversidade de episódios que a faina produz, a sua inesgotável fonte.
Todos nós éramos militantes dessa causa, sendo que, era do Milton que vinham quase sempre, os maiores tesouros que a linguagem produzia.
Com um sorriso permanente que a fina ironia do olhar sublinhava, ilustrava como ninguém, as incidências que o tempo de mar e de pesca iam desenhando.
Os dichotes que intercalava, faziam assomar risadas, e a sua lembrança divertia-nos durante dias.
Fui também durante muitos anos seu companheiro de caça. O bichinho tomou-nos e fez-nos reféns, como só entendem os que por ela se deixam envolver.
Ao contrário da pesca, a expectativa duma caçada gerava sempre alguma inquietação, e a sua práctica era um estado de permanente tensão e alerta.
A indispensável visão da presa e a decorrente rapidez da resposta, obrigavam a totalidade dos sentidos.
O início de cada jornada, escrevia nalguns curiosos prefácios, que envolviam tiques e hábitos esquisitos.
O Milton presenteava-nos quase sempre com persistente tosseira, a que apenas alguns vómitos sem conteúdo punham termo.
O cansaço, acabava por devolver a todos a normalidade.
As chalaças na caça ficavam para o seu depois, e mantinham o mesmo tom divertido, e adequado às peripécias do seu desenrolar.
O distanciamento exigido por razões de segurança, não permitia, ao contrário da pesca, o parecer imediato.
À volta da mesa, e na viagem de regresso desfiava-se o rosário dos comentários, que a realidade e a fantasia iam ditando.
Custou-me vê-lo partir tão cedo.
Numa parede da alfaiataria, tinha algumas fotografias de amigos de primeira linha que já lá estavam.
Se o além permitir, deve ter sido de arromba o reencontro.