A festa do pão
Familiares e amigos diziam-me do pão; e as palavras eram mágicas, porque apesar de novas ao ouvido, traziam com elas vivências ancestrais. Seria preciso recuar aos tempos que antecederam a história, para situar uma arte que os séculos consagraram.
Desde o pão primordial até ao pão dos nossos dias, a complexa simplicidade da combinação de dois elementos (farinha e água), foi para o homem um permanente desafio. Umas vezes por acaso, noutras pela experiência acumulada, e noutras pela partilha do conhecimento, chegou até nós com todas as cortinas descerradas.
Símbolo do alimento essencial, o pão acompanhou a história da humanidade como nenhum outro, e continua a ser presença elementar nas mesas do mundo.
Hoje, a beneficiar da sabedoria disponível e consolidada, decidi a sempre saborosa tarefa de dar cumprimento a mais um dia em que o livro do pão dirá do seu jeito e do seu acontecer.
Já vai longe o tempo inicial, mas nem por isso se apoucou o entusiasmo que o acto suscita.
A ocasião e a vontade nem sempre acordaram, mas um tempo novo e a sua pandémica circunstância deram as mãos, e desde essa altura que a festa está de volta.
O fabrico do pão na sua versão mais pura e mais tradicional, envolve um conjunto diferente e mais demorado de procedimentos, quase sempre ausentes na produção industrial: A correria dos dias de hoje, não comporta o demorado passo do pão de outro costume.
Mas vamos à festa, e ao conjunto das pequenas coisas que a compõem:
- Elemento essencial, o forno de lenha obriga-me a tê-la sempre disponível, e aqui, a vantagem de morar numa zona de feição acentuadamente rural, dá-me grande ajuda, e a sua recolha um prazer imenso, apesar do esforçado encargo.
- Na noite que antecede o dia do pão, tem lugar a preparação do “isco”, que nalguns lugares também chamam de massa mãe: esta massa, da maior importância, feita com água, farinha, e fermento (uma pequena porção de massa já levedada que conservo no frio, volto a amassar com um pouco de farinha na manhã da véspera do pão, e vai levedar até à noite do “isco), irá promover a fermentação do nosso pão, e dar-lhe a qualidade que o distingue.
- No dia, ao nascer da manhã, avalio o crescimento do “isco”, coloco-o sobre a farinha já depositada no alguidar de barro, ajusto o sal que costumo diluir na água levemente aquecida, arregaço as mangas, e com o vigor possível, ponho durante algum tempo na massa, as mãos e a atenção; amassadura pronta e abafada, é só deixar que as leveduras se cumpram e a fermentação aconteça; a temperatura exterior dirá do tempo necessário, mas a prática aponta que três horas, um pouco mais no inverno, um pouco menos no verão, são suficientes para que a massa cresça quanto baste para o que se pretende.
- Com a fermentação consumada e a massa no ponto ideal, chegou o momento de dar forma aos pães: retiramos do alguidar a quantidade de massa para o pão que pretendemos, e voltamos a amassar um pouco cada um, antes de moldar. Depois de moldados e colocados num tabuleiro, ficam a “fintar” para nova fermentação, à volta de uma hora; tempo em que preparamos o forno para recebê-los.
- Com o forno na temperatura que o traquejo recomenda, colocamos um a um os pães para a cozedura que se espera bem sucedida, e que demorará cerca de uma hora.
No tempo certo, do forno virão os aromas do pão quente que nos deixam felizes, e à mesa chegará o prazer dum pão genuíno, feito com a devoção que nos merece a sua simbólica riqueza.