Belchior
Belchior há muito que é parte da ria: Uma pequena extensão móvel que se desloca pela baixa mar, sempre que a manhã, por vezes a tarde, coincidem com esse vazio de águas que o refluxo da maré desenha todos os dias ao longo do seu curso.
Franzino, curvado sobre a terra para olhá-la de perto, parece ter encontrado nessa arte rasteira da apanha de amêijoa, uma espécie de culto a que se obrigou por insondáveis razões.
Para os que o conhecem e costumam vê-lo nessa faina, o seu perfil, trazido pela proximidade ou pela lonjura, será porventura a pontuação que à leitura da ria dá sentido.
Para os outros, a figura, o semblante e a determinação, farão certamente aportar aos seus olhares no tempo devido, a estreiteza dos laços que o vinculam a esta janela de águas vivas.
Quando os rigores do tempo, pela idade e pela aparente fragilidade, recomendariam aconchegado recanto, Belchior faz assomar o espanto aos que o sinalizam, descalço, de oleado vestido e sueste na cabeça, no meio da intempérie.
A sua ausência, rara, e com origem na imponderável força que as circunstâncias por vezes tecem, tem sempre a grandeza que a justifica, daí decorrendo que, a falta, por infrequente, legitima assim com acentuada razão a regra da sua assiduidade.
Já passaram por ele mais de oito décadas. Foi sempre pescador: a arte do cerco nas traineiras, e a pesca artesanal do anzol, (vulgo aparelhos), foram as mais relevantes, e preencheram quase toda a sua vida de mar.
Como a muitos outros, a quem o mar deixou de sorrir, a ria recebeu-o de braços abertos, mas nenhum outro a conjugou com a disponível inteireza da sua constante presença.