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Alvor,a terra e a ria

Alvor,a terra e a ria

01
Jul23

Belchior

Joaquim Morais

 

 

  Belchior há muito que é parte da ria: Uma pequena extensão móvel que se desloca pela baixa mar, sempre que a manhã, por vezes a tarde, coincidem com esse vazio de águas que o refluxo da maré desenha todos os dias ao longo do seu curso.

  Franzino, curvado sobre a terra para olhá-la de perto, parece ter encontrado nessa arte rasteira da apanha de amêijoa, uma espécie de culto a que se obrigou por insondáveis razões.

 

  Para os que o conhecem e costumam vê-lo nessa faina, o seu perfil, trazido pela proximidade ou pela lonjura, será porventura a pontuação que à leitura da ria sentido.

  Para os outros, a figura, o semblante e a determinação, farão certamente aportar aos seus olhares no tempo devido, a estreiteza dos laços que o vinculam a esta janela de águas vivas.

 

  Quando os rigores do tempo, pela idade e pela aparente fragilidade, recomendariam aconchegado recanto, Belchior faz assomar o espanto aos que o sinalizam, descalço, de oleado vestido e sueste na cabeça, no meio da intempérie.

 

  A sua ausência, rara, e com origem na imponderável força que as circunstâncias por vezes tecem, tem sempre a grandeza que a justifica, daí decorrendo que, a falta, por infrequente, legitima assim com acentuada razão a regra da sua assiduidade.

 

  Já passaram por ele mais de oito décadas. Foi sempre pescador: a arte do cerco nas traineiras, e a pesca artesanal do anzol, (vulgo aparelhos), foram as mais relevantes, e preencheram quase toda a sua vida de mar.

 

  Como a muitos outros, a quem o mar deixou de sorrir, a ria recebeu-o de braços abertos, mas nenhum outro a conjugou com a disponível inteireza da sua constante presença.

 

 

11
Jun23

As flores do passadiço

Joaquim Morais

 

 

foto limoniastrum.jpg

 

 

 

  Privados da flor que as ilustra, adormecem entre dezembro e fevereiro, não deixando, apesar disso, que a inércia comprometa a sua viçosa graça.

  Regressam em março para guarnecer de cor a margem esquerda da ria, e até novembro, vão animar a vista dos que por lá se passeiam, com os lilases variados das suas bonitas flores.

 

  Quando a vida nos permite o tempo que as inúmeras obrigações impediram em grande parte do seu decurso, é altura de olharmos em redor. Teremos por certo esta e outras surpresas, que nos farão despertar para uma realidade da qual fomos parte activa, e de que nos temos vindo a afastar tempo demais.

 

  As estações oferecer-nos-ão os frutos das suas árvores; reparar neles talvez espante a ausência que nos tolhe.

 

  A natureza também somos nós.

 

  É uma planta tipicamente mediterrânica, conhecida pelo nome científico de limoniastrum monopetalum, e pela designação comum de salado ou purslane seco.

 

  Tolera bem a salinidade dos terrenos onde está habitualmente implantada, mas pode embelezar os jardins das nossas casas, não necessitando de especiais cuidados. É resistente a pragas e a secas; não requer grande manutenção; não precisa de ser podada, sendo suficiente fertilizá-la apenas uma vez por ano. Multiplicam-se no verão atras de estacas.

 

  Tal como o salado, mas apenas na zona onde desponta o relevo dunar, portanto um pouco mais afastada dos terrenos salgados, há uma outra espécie, que, para além da utilização feita por alguns pescadores em Alvor há algumas décadas, e descrita por mim em post anterior, tem características idênticas e pode perfeitamente integrar-se em jardins. Tem o nome comum de Aroeira, sendo também conhecida por Lentisco: possui folhagem abundante, e tem de entre as suas valias paisagísticas, a possibilidade de gerar bonitas sebes.

 

  São plantas autóctones de raiz mediterrânica, sobretudo recomendadas para ter em conta num contexto de escassez de recursos hídricos.

03
Jun23

As Fases da Ria

Joaquim Morais

 

 

 

 

  Esteve quase sempre longe dos olhares do mundo. Viam-na os que em seu redor se fixavam, e, sobretudo, os que nela decidiam modo de vida, ou dela faziam caminho para o largo.

Para esses, o olhar, essencialmente comprometido com o pão, raramente era animado por vislumbres contemplativos.

 

  De entre os que visitavam a terra que lhe deu o nome, eram poucos os que a afoiteza convocava para o desafio de percorrê-la. Ao tempo, o trajecto e o conforto raramente coincidentes, suscitava muitas vezes a hesitação, e abria quase sempre caminho para a recusa.

 

  Viam-na à distância, privada da inteireza que só os detalhes lhe conferem, e desfrutavam-na apenas à mesa saboreando as suas diversas iguarias, com particular destaque para as deliciosas ameijoas.

 

  Isentos de sérias obrigações, e fazendo da diversão razão maior, foram os mais pequenos, onde felizmente me incluo, que, atraídos pelo seu mágico chamamento, a ela se chegaram e com ela firmaram singelo compromisso.

 

  Sem o calvário das tormentas, que os ventos por vezes teciam na vastidão oceânica, a ria oferecia-se mansa e disponível.

 

  As crianças fizeram-na sua semeando nela as flores das suas primaveras; navegando os impulsos da verde condição; guinchando a vida e chapinhando a nudez em lamacentos regatos; mareando toscos barcos, que, guiados pelas pétalas da mão, ou soprados pelos ventos do desejo, faziam da noite o palco onírico de náuticas proezas.

.

 

  A passagem do tempo, as mudanças que em nós iam ocorrendo, e o constatar mais ou menos explícito da sua generosidade, fizeram considerá-la para lá da lúdica feição: sugeriram novas abordagens, e tiveram como resultado a exploração dos seus recursos e decorrente descoberta dos seus tesouros.

  O início foi um suceder de emoções,e o entusiasmo resultante, muito próximo da juvenil euforia.

  Foi uma fase intensa, duradoura, e que havia de manter-se enquanto colorido o quadro da frescura física.

 

  A diversidade disponível, impossibilitava delimitar no tempo, a tarefa da sua pesquisa e entendimento. Era uma iniciativa para a vida, mas as fronteiras do saber pleno, ficavam sempre muito longe da maioria das pretensões.

  A ria inteira, era apenas dos poucos que ela fizera cúmplices.

 

  Entretanto, a ria abriu-se ao mundo e ficou à distância dum olhar.

 

  E aos meus olhos, livres de juvenis anseios e esperançosas pescarias, chegaram as imagens que, sendo iguais ao que sempre foram, ocupam agora toda a largueza do olhar, e serenam na perfeição as águas deste tempo.

 

  É talvez por isso, que a vejo todos os dias como se fosse a primeira vez.

 

 

com cânticos de algas e de ventos,

o oceano exalta o reencontro

e a terra celebra o orgulho da raiz.

É uma gota de universo;

será decerto um poema;

porventura branda inquietação;

é janela clara e alucinante

onde o olhar se afunda,

as gaivotas florescem,

e o mar respira o sopro das luas.

 

 

21
Mai23

Versos para minha mãe

Joaquim Morais

 

 

 

 

 

 

  A Patrícia, funcionária da IPSS que presta apoio domiciliário a minha mãe, decidiu compor na neve que há muito lhe tomara um novo poema.

 

  Disse-lhe que estava mais bonita e ela sorriu. Olhou-me com doçura; voltei a realçar a aparência, e permitiu que todo o rosto se iluminasse pelo agrado.

 

  Semblante raro, que me propus preservar.

 

  Está sentada à mesa para a refeição em que lhe presto apoio, e continua com um ar feliz. Há algum tempo que não a via assim; troca olhares comigo; volta a sorrir; regresso ao seu ar que reafirmo mais bonito, e invento novos versos para o mesmo poema.

 

15
Mai23

As Andorinhas e a Ria

Joaquim Morais

 

 

 

 

 

  Não buscam caranguejos, nem moluscos, tão pouco vermes, ou outros em que a lama da ria é fértil.

  As andorinhas ocupam um baixio que a vazante deixou a descoberto, e debicam o lodo tal como as aves aquáticas ao seu lado, como se da procura de alimento se tratasse. O que as move e faz diligentes no afã que envolve o pequeno bando, não tem a ver com gastronómicos intentos.

 

  Chegaram como sempre com a primavera. Deixam África onde passam o inverno, quando o desconforto climático, eventualmente a escassez de alimentos, ou outras razões menos explícitas mas não menos importantes a isso obrigam, e têm o regresso agendado ao mesmo continente, a partir de setembro pelas mesmas razões. Movidas por questões de sobrevivência, seguem os ditames do instinto, que as conduzem por extensas rotas migratórias, e conseguem a proeza de chegar ao lugar pretendido sem auxílio de qualquer tecnologia.

 

  Orientam-se, é suposto, recorrendo à posição do sol e das estrelas; dizem entendidos, que talvez percebam o campo electromagnético da terra; e com razoável grau de certeza, valendo-se da memória para referenciar pontos visuais em percursos repetidos. Para os que inauguram a viagem, basta seguir os adultos que a realizaram antes e fazer dela o prefácio duma aventura que a sua frágil compleição não faria supor.

 

  Mas voltemos à ria e ao baixio que convocou a surpresa, ou nem por isso. Não sendo alimento a razão desse esgravatar, percebi desde muito jovem que afinal as andorinhas apenas acautelam o futuro, como progenitores cuidados e responsáveis. A lama com que preenchem os bicos, destina-se à construção dos ninhos, e andará à volta do milhar, as vezes a que esse vai vem obriga para a sua conclusão.

 

  Organizadas, pacientes e sem a pressão do calendário e do relógio humanos, cumprem-se ainda de acordo com naturais desígnios, e enquanto o permitir o precário equilíbrio do planeta.

 

 

 

 

 

As andorinhas plantam a ria no beiral.

Trazem-na no bico,

suspensa da terra e dos beijos

com que amanham a leira branca do futuro.

 

 

 

08
Abr23

Versos

Joaquim Morais

 

 

O canteiro e a rosa

 

Agora que a neve me tomou,

farei dela o canteiro e a rosa,

e juntarei às cores do anoitecer

a tardia inocência da nova condição.

 

 

 

A exactidão do dia

 

A terra e o mar coincidem

na sóbria inteireza

que torna comovente

a exactidão do dia.

A luz que ilumina o olhar,

abre as portas ao poema.

 

 

 

O pequeno lume

 

Se o redor nos conceder o calor

dum pequeno lume,

convidaremos a noite

e faremos da estrela o farol da viagem.

 

 

 

22
Out22

Amigos na doença

Joaquim Morais

 

 

  O meu pai, a quem o sorriso a palavra e o gesto amigo nascidos da presença do outro nunca faltaram, está doente. É a sua sombra, que numa cama de hospital o teima, tentando encontrar nesse lugar de circunstância, terreno onde lançar a semente da sua entranhada condição de ser marcadamente social.

  É comovente a inquietação do olhar em busca de outro que o acolha. Não está sozinho na sala de medicina interna que ocupa. Os quatro internados onde se inclui, são idosos, sendo que o mais próximo ainda fica longe do seu desgastado ouvido. Mesmo assim, e quando os olhares se ligam, atreve-se ao diálogo; As palavras desafiam a distância sem complementos de gesto nem sorrisos; apenas palavras: as que o digam e as que tragam o outro para dele saber. O afastamento e a doença condicionam o discurso e fazem-no telegráfico. Por entre as inúmeras hesitações do ouvido, o meu pai consegue dele a informação elementar: o nome, a idade, a terra onde nasceu, a ocupação profissional e a doença que o prende à cama.

  Juntá-lo-á à infindável lista de amigos que os noventa e cinco anos de vida lhe foram oferecendo, e que a memória conserva com orgulho.

20
Set22

Danças de fugidia luz

Joaquim Morais

 

 

 

 

 

Danças de fugidia luz

 

 

A obscura mensagem dos sentidos,

O inquieto labor das emoções

Que voluteiam a sua imprecisão

Em danças de fugidia luz.

No turbilhão do círculo, sílabas fugazes

Ensaiam fortuitos acordes.

A música ilumina a palavra

Que nasce serena e clara,

E a bonança regressa nas asas do poema.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Navegações

 

 

 

Sem flor nem luz

Navega-me o leme do vento

Nos mastros nus.

A estreiteza do rio apressa a vida

E a foz desenha-se sem brilho nem glória.

Esmaga-me o algodão do relógio

E o desejo naufraga

Na tormenta do tempo.

 

 

 

 

 

 

 

Sobressalto

 

 

 

 

Procuro o sobressalto das palavras.

A surpresa da sua transparência sombria.

Que sejam pontes, barcos,

Pétalas perenes nos canteiros do vento.

Que a sua música permita

A dança dos Espíritos.

E o seu perfume

Rescenda o ar do seu dizer.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Flor de Outono

 

 

Os ramos acenam serenas despedidas

E em cada árvore se acende

O esplendor da decadência.

Há uma ânsia de terra

Na palidez das folhas.

Um desejo cinzento.

Um voto,uma certeza.

Os rumores são ecos de silêncio

Que pulsam nos rituais do tempo.

A nudez é uma flor de Outono

Com raiz de vento, perfumada de terra

E matizada pelo olhar.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Cristalina escuridão

 

 

 

Do chão erguem-se páginas de verde

Tingidas pela poesia dos cachos.

Versos de pétalas ausentes,

Ditadas pelo fogo, pela chuva e pela terra,

Que o canto das leveduras irá converter

Na cristalina escuridão dum poema

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tecendo a vida

 

 

 

No tear do tempo que me assiste,

Entrelaço os fios da fantasia.

Lanço a trama, teço o dia-a-dia.

Dou-lhe relevo, dou-lhe forma, dou-lhe cor.

Dou-lhe o ar da tristeza ou da alegria.

Dou-lhe a feição

Do desengano ou do Amor.

E da tela, assim entretecida,

Vai nascendo o poema que é a vida.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Conquistas

 

 

 

 

 

O vento respira o lugar,

Insinua-se, habita-o,

Toma os perfumes secretos

E sopra no redor suas conquistas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Conjugações

 

 

A lua convida-me às palavras.

Que o ditame as revele

Conjugando o canto

Com a graça da visão.

 

 

 

 

 

 

 

 

Desafios

 

 

 

Não resisto aos desafios

Da primavera.

Os versos abundam;

Que o olhar os perceba

E o canto os desperte.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caminhos do sul

 

 

 

Soaram aos sentidos

As notas da fugidia chama.

Cânticos de cor na voz do cisne

E a lenta agonia dos contrastes.

No céu exemplar

A geometria das aves

Nos caminhos do sul.

 

 

 

 

 

 

Vazio

 

 

 

No palco dos desejos

Apenas claridade branca

Um vazio de luz

Que aguarda a noite do poema.

 

 

 

 

 

 

 

 

Traduções

 

 

 

Que as palavras traduzam

A veemência do desejo.

Que tenham a subtileza do ar

E a leveza do voo

 

 

 

 

 

 Um olhar

 

 

                                 Acendi na cal o olhar

                                 Que uma súbita gaivota preencheu.

O muro, estreito,

Margina a foz da existência.

Talvez o mar esteja por perto.

 

 

 

 

 

 

Fogachos na tormenta

 

 

 

 

Avulsas, dispersas,

Filhas de mórbida inquietação.

Não serão mais

Que fogachos na tormenta.

Barcos reféns de pesadas âncoras

A caturrar versos nas amarras.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Os sonhos do pousio

 

 

 

 

Fragmentos de poente

Que esvoaçam nas aragens

Em pálidas despedidas.

Pássaros decadentes que aspiram

Aos ninhos da terra

Onde a alquimia do tempo

Torna possível os sonhos do pousio.

 

 

 

 

 

 

As mãos da terra

 

 

 

 

O silêncio e a noite

Incendiaram os gritos do ar.

Vinham do sul

A tocar a harpa da chuva

E a exaltar a inquietação do abismo.

As mãos da terra

Modelaram o barro do clamor.

 

 

 

 

 

 

 

Nas amuras do vento

 

 

 

 

 

Ressuscitam os dorsos nas

Amuras do vento

Com a proa a desfolhar nas cavas

A flor do sal.

O leme e a quilha teimam a rosa

Enquanto as mãos caçam

A luz branca

Que acende o veleiro.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

14
Ago22

O gato Zen e a matemática

Joaquim Morais

 

 

 

  Há nove anos que está connosco; chama-se Zen, e faz total justiça à palavra que o diz.

Veio dum gatil próximo, trazendo já com ele a graça, que, tudo parece indicar, foi desde sempre luva talhada à sua medida.

 

  Chegou muito novo à casa que passou a ser sua, e cresceu com a Rita, três anos à sua frente nas contas do tempo, que o fez aturado desejo, e foi, também por isso, razão determinante para a sua vinda.

  Brincou em cada tempo seus desafios, e exibiu a sua ágil e irrequieta natureza fazendo as delícias de todos.

 

  O quintal da casa tinha espaço avonde, e suficientes motivos para fazer o que é suposto e esperado aos da sua espécie: caçou pássaros que desafiavam a sua paciência sem nunca a esgotar, insectos vários que se cruzavam nos seus trajectos, e obrigou os clássicos roedores que se atreviam no espaço onde ele reinava, ao temor e ao respeito adequados.

  Teve sempre tempo e largueza suficientes para desenvolver e apurar os seus instintos, e, não sendo um gato de alcofa, nunca a dispensou para as suas, por vezes, demoradas sestas.

  Em todos os quintais vizinhos, e nalguns terrenos que o abandono descuidou, o hábito da sua presença também se fez notar, bem como percebida e estimada, a sua natureza pacífica e afectuosa.

 

  Apreciador do silêncio à sua volta, é também de absoluto sossego a sua postura. Em casa, nunca ninguém o viu assomado, e os tímidos miados que raramente emite, costumam acontecer quando a intempérie o surpreende em noturnas caçadas, e, no regresso a casa, tentar com eles sinalizar a sua presença para que o acolham.

 

  Adora sardinhas. Quando acontecem, sabe-o pela habitual logística a que obrigam, e, discrecto, silencioso, e ainda muito antes do seu cheiro intenso se espalhar a partir do fogareiro, já ele feito comensal, se senta à mesa em banco corrido e pose de louça, aguardando pacientemente e sem miados, que lhe sirvam a democrática iguaria.

 

  A escola chegou entretanto para a Rita. Os trabalhos de casa e o estudo de algumas matérias, obrigavam aos livros e aos cadernos sobre a mesa, o que levou ao imediato despertar da curiosidade do Zen para o novo cenário.

  Daí até ao pulo para a cadeira mais próxima deles, foi um instante.

  Posto pelas circunstâncias na rota dos livros, passamos a vê-lo de vez em quando, no insólito exercício da sua intrigante observação. Mas nem tudo suscitava o interesse do Zen. Alheado do colorido de desenhos e fotografias, tal como do arrumo preciso das letras nas palavras e das palavras no texto, outra improvável ciência havia de convocar de imediato o seu reparo: a matemática. A agradável impressão causada pela imagem dos símbolos que a traduzem, levaram-no sem hesitações, à adopção duma atitude quase contemplativa na sua presença; tendência que o passar dos anos e as diferenças nos níveis de aprendizagem da Rita, manteve sem abrandamentos.

  Após sentar-se num lugar feito seu pelo hábito, percorre atento as páginas que a Rita vai folheando, percebendo-se nitidamente o movimento da sua cabeça, na condução do olhar pelas ilustrações numéricas que a sua condição eminentemente felina tanto parece apreciar, e estranhamente elegeu.

 

  Sem o desconforto de ter que se debruçar sobre a eventual complexidade da matéria matemática, Zen parece ter descoberto nos infindáveis quadros da sua profusa simbologia, uma tranquilidade bem à medida do seu nome.

 

 

  O Zen continua connosco, e festejamos juntos e em silêncio, o prazer do reencontro a cada dia.

 

30
Jul22

os pescadores e os deuses

Joaquim Morais

 

  Do alto das serras do redor, desceram ribeiras com sonhos mareantes. Talharam na terra novos rumos; fizeram-se ria; e abriram as portas do mar aos que na imensidão tinham o destino e a razão.

 

  No lugar, o azul intenso que do sul acenava marulhando na praia as vozes da lonjura, preenchia as vontades e dizia-se caminho. Quase nada, para além dessa sedutora via.

 

   Entre a terra e o azul profundo, a mansidão da ria; uma largueza de águas vivas respiradas pelo vigor da lua; o lugar da iniciação, onde o aprender rimava com o ser; o repousado ensaio para a peça por vezes dolorosa, que os homens decidiam levar à cena em mar aberto.

 

  Porventura fascinados pelo canto e pela cor, ou porque a terra pouco ou nada tinha para lhes dar, foram muitos os que se fizeram pescadores. Viveram o desconforto da faina em precários berços de tábuas, ao sabor dos elementos, e navegando as emoções que as circunstâncias urdiam.

 

  Aos barcos, que o tempo decidia, impelia-os a força de vigorosos braços. Forjados no calor da faina, e temperados por bátegas de sal governadas pelo vento, tinham nas mãos o desenho das incontáveis remadas, escrevendo rotas que as estrelas ditavam. Quando reinavam sopros bonançosos, festejavam-se as tréguas, emprenhavam-se velas, e nasciam na proa dos botes, risadas de alabastro que os olhares celebravam.

 

  Porque era dura a faina, e por vezes violenta a escrita do mar, os homens chegavam-se aos deuses: diziam-no nas vistosas amuras das pequenas embarcações, inscrevendo nelas os eleitos da sua devoção. Consagrados pelo culto e sustentados pela crença, era suposto estarem a seu lado, quando tivessem que afrontar o aperto ou a má sorte.

 

  No tempo, e quando ao largo medravam ameaçadoras sombras e crescia a incerteza, algumas mulheres rezavam na praia, alternando os olhares entre o céu e o mar revolto

 

 

  Pelos meus avós, ambos pescadores, e por todos os que trocaram a relativa e provável firmeza terrena, pelo exíguo espaço dum barco a vogar a inquietação e o imprevisto, fica, mais uma vez, a notícia dum tempo e dum lugar onde os milagres dos homens eram obra dos deuses.

 

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