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Alvor,a terra e a ria

Alvor,a terra e a ria

19
Out24

Breve apontamento sobre as traineiras e as conserveiras

Joaquim Morais

 

 

  Meados do século vinte; estava-se em plena temporada do cerco, e o sol, a inaugurar o fogo e a cor, pintava barcos e suas redes, que num enorme leque e vogadas pelo corcho, se estendiam por bombordo. O mar, adormecido, repousava dos desmandos da nortada, que reinava nas tardes, soprando desabridos humores até ao dissuasor abismo da colorida chama do poente.

  A bordo, o guincho virava a arte devagar, que o mar, fundo, não despertava a inquietação da pedra. Com as argolas à borda e a aberta cerrada, era tempo de alar, de trazer à superfície a prateada esperança, alimentar os sonhos, e devolver ao barco a graça que o vazio da rede impede.

  Os braços e a voz em sintonia, arrancam-na do fundo acompanhados pelo grasnar intenso das gaivotas que enxameiam a pesada arte.

  Era assim na pesca do cerco, que, ainda sem mecânicas ajudas, recorria à cantoria do leva leva, para aligeirar a rede e o cansaço.

  As traineiras, que nas décadas de cinquenta e sessenta eram em número considerável, foram o suporte fundamental da indústria conserveira em Portimão, transformando a cidade num importante centro industrial e piscatório. O rio Arade era um soberbo quadro de cor e movimento, e as traineiras o símbolo e referência maior da cidade.

  Utilizavam a arte do cerco, e as capturas predominantes eram de sardinha cavala e carapau, sendo que as duas primeiras, constituíam a quase totalidade do trabalho das conserveiras.

  Sempre que na faina a sorte (elemento que à época era tido por muitos essencial) sorria aos mestres, a abundância de peixe transformava a cidade num quadro de benigno e pitoresco alvoroço.

  O cais era um andar de gente numa constante roda viva, e no percurso do pescado, da rede até à mesa, havia um grande número de famílias a assegurar a subsistência.

  O comércio era a vida e o cais fervilhava.

  Na lota vendia-se a a fatia maior, e nela estavam envolvidos grandes compradores, com comércio assegurado na cidade, e noutros mercados em vários pontos do país. As fábricas tinham também presentes na lota os seus representantes, que asseguravam nos leilões, a compra do peixe indispensável ao seu funcionamento.

  Em pleno cais havia o pequeno comércio, mais em conta, levado a cabo pelos próprios pescadores, que por vezes decidiam vender a parte que lhes cabia nas divisões de bordo, e outros que enchiam a canastra no descuido alheio, fazendo nela pingar a paciência e a sardinha.

  Na procura de uns e de outros, circulavam os muitos que queriam comprar.

  A chegada do pescado às conserveiras, fazia soar de imediato estridentes sirenes, para aviso e convocatória das operárias.. Residentes na cidade, e nas áreas circundantes mais ou menos distantes, depressa se punham a caminho para iniciarem o trabalho.

  Tendo todas as fábricas, idêntico modo de avisar e reunir o pessoal tornou-se necessário que cada um aprendesse a diferenciá-las pelo ouvido; não foi difícil, e até mesmo os que não tinham compromisso laboral com nenhuma delas, o aprenderam, ajudando a divulgar o sonoro recado.

  Escutados na aldeia os estridentes apitos, agitavam-se as envolvidas em apressar domésticos afazeres e promover preparos de caminhada; o caminho era longo, o tempo urgia e o vazio da bolsa clamava. Por vezes não era fácil, sobretudo para as que tinham permanentes exigências familiares, e o tempo mal chegava para o seu cumprimento. A vida dura, e o norte invariavelmente tormentoso, davam-lhes a força para ir sempre mais além.

  Palavra passada no lugar, depressa se juntavam e se punham estrada fora até à cidade, num ritual de cansaço, que a vida exigia mas o paleio suavizava.

  Das conserveiras, que durante décadas levaram no singular soar das suas sirenes uma mensagem de vitalidade a todo o concelho, nada resta.E eram muitas, talvez mais de duas dezenas, que ao longo das margens do Arade, deixaram na cidade a indelével marca duma actividade que a envolveu, porventura como nenhuma outra. Ficaram delas e nos lugares onde estavam implantadas, as características chaminés, quase todas com alados inquilinos, que por ironia são símbolos de anunciadas vidas, já não permitidas ao moribundo senhorio.

  Restou apenas o edifício da fábrica Feu Hermanos, transformado agora em museu municipal, que tem na representação detalhada de toda a laboração da indústria o foco principal.

  Actualmente, existe em funcionamento uma pequena unidade artesanal criada em 2015 no Parchal. Chama-se Conserveira do Arade, tem processos de fabrico próprios, e está certificada como produtora artesanal.

 

 

12
Out24

Tia Catarina

Joaquim Morais

 

 

  Sem prévio pensar e num repente, fez-se presente a lembrança de alguém que, não tendo sido parte activa da minha vida, participou nela a espaços, por gestos e atitudes de estima e agrado duma simplicidade comovente.

  Chegada assim clara e súbita, decidi então que a digam, e à sua recatada existência, algumas palavras.

  Era minha tia-avó; chamava-se Catarina, e representou em toda a sua vida de trabalho, o papel simples, por vezes amargo, de operária conserveira.

  Já a conheci desgastada pelo tempo, pelo trabalho, e pela canseira das incessantes caminhadas em modo apressado, desde Alvor onde residia, até ao local da fábrica em Portimão onde trabalhava.

  Baixa, enrugada e franzina, tinha, talvez por isso ou apesar disso, a inesgotável energia que a fazia calcorrear caminhos com a leveza duma corça.

  Catarina nasceu em Alvor, e viveu enquanto jovem numa casa humilde, com a mãe e dois irmãos.

  A sua certidão de nascimento, tal como a dos irmãos, atesta incógnita paternidade. Desse pai que a certidão omite não tenho clara notícia. Fala-se de alguém, em concreto nomeado, ser pai confesso, mas sem formal aceitação, nem assumida responsabilidade. A época favorecia a impunidade dos que, sem pingo de valores a norteá-los, conduziam a vida a bel-prazer.

   Após a morte da mãe, Catarina viveu sempre sozinha.

  Não me foi dado saber, que tenha tido quaisquer namoricos no tempo certo, tendo-me chegado, isso sim, a existência de algum distanciamento e uma clara reserva, em relação a eventuais candidatos a ligações mais chegadas.

   Talvez por timidez ou receio, ou por outras e insondáveis razões, a tia Catarina decidiu tomar a solo as rédeas da sua vida.

  Não será porventura de excluir traumática razão para a animosidade que a movia em relação aos homens, a atitude de renúncia do pai.

  Num tempo em que o peso da religião fazia da frequência da igreja público costume, Catarina viveu sempre à margem dela. No alto, tal como na rasteira dimensão, levava apenas até às fronteiras do entendimento, a sua crença.

  A situação de Catarina enquanto jovem, provocou nalgumas pessoas um despertar humanitário e uma atitude fraterna, que se manteve após a morte de sua mãe

  Apesar de sozinha, pôde continuar a contar com a amizade de alguém, e a proximidade solidária de toda a família.

  As amizades forjadas no trabalho e as brejeiras conversas que preenchiam as caminhadas, serenavam os tempos de solidão mais prolongada, ou de eventuais agruras que na vida sempre acontecem.

  Para além do trabalho e da doméstica ocupação, e pouco mais havendo do que as épocas festivas que o calendário anunciava, chegou-me no entanto a notícia, de habituais e concorridos bailaricos que aconteciam na aldeia, onde era presença assídua a tia Catarina. As amigas e colegas de fábrica elogiavam-na pelo jeito, sendo certo que, de acordo com público parecer, ela sobressaía pela energia, pela leveza e pela graciosidade.

   Tivemos portanto improvável dançarina, e o decorrente benefício que a sua prática lhe trouxe.

  Não se tendo cumprido em materna função Catarina não deixou empedernir os afectos, contemplando sobrinhos com sorrisos, carinhosas conversas, e lembranças feitas da mais genuína e enternecedora matéria.

  Hoje, acresce um brando sentimento de gratidão e simpatia pela singeleza dos mimos, e por essa afeição que, sempre que fosse preciso, transbordava inundando o mundo à sua volta.

 

 

 

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