Alfredo e o mar
A revolução iria trazer coisas novas, dizia-se. No lugar, pouco dado a novos motivos de conversa, depressa as falas se ocuparam da notícia, e sobre ela teceram as mais variadas considerações.
Os jornais, a rádio e a televisão, desdobravam-se no esforço de informar, e a profusão, também feita de palavras nem sempre coincidentes com as de quem escutava, levava com frequência a alguma confusão.
Os militares percorriam o país, tentando esclarecer toda a gente acerca da nova realidade política, e dos benefícios que ela poderia trazer à vida das pessoas.
A informação passava de boca em boca, e, retocada pelo entendimento de cada um, depressa se transformava num conjunto arrevesado de palavras de impreciso sentido.
A impaciência especulava, e o desejo era ser informado e esclarecido de viva voz, pelos que, em representação do movimento das forças armadas, para isso estavam mandatados.
Entre os pescadores, onde a precariedade na protecção social após a vida activa era quase generalizada, vivia-se a esperança de mudança; também por isso, a expectativa da mensagem clara, olhos nos olhos, era evidente, e ansiosamente aguardada.
Não obstante as limitações que o avanço dos anos naturalmente traziam a quem ao mar dedicara as suas vidas, alguns havia, que, mesmo com idade de puderem vir a colher os benefícios de eventuais pensões, desejavam em simultâneo, prolongar a vida activa.
Para outros, o divórcio era pacífico e desejado, encerrando sem constrangimentos, um importante capítulo das suas vidas.
O tempo e a duradoura ligação ao mar, foram deixando ao longo dos anos marcas de amores e desamores, que haviam de importar, na decisão final de cada um.
Alfredo era um dos atormentados pela inquietação, e a quem uma eventual separação compulsiva desagradava.
Ao mar a vida, e a entrega, feita de estranha afeição, sem idade, conduzida pelo olhar e pelo gesto, talhados para apenas nele serem por inteiro.
Chegou por fim a aguardada comitiva, que trazia palavras novas, e se desejavam esclarecedoras; ouvia-se a música dos novos tempos; e os rostos sorriam a esperança de dias melhores.
E nem os anos esmoreceram Alfredo, que, na plateia apinhada de gente, fez chegar o seu desassossego, aos que vieram para ouvir e dizer.
Um jovem oficial do exército, escutou Alfredo com tranquila atenção; ouviu das suas incertezas, das suas expectativas, do seu desejo de prolongar o mar para lá do tempo, e respondeu-lhe:
- Sr. Alfredo, pelo que me acabou de dizer, atrevo-me a concluir que a sua ligação ao mar é profunda, tal como o desejo de continuar essa dedicada relação. A sua pretensão não fere a legalidade, e não faria sentido impor-lhe esse amargo divórcio; Recomendo-lhe até, que enquanto a primavera lhe sorrir, faça-se ao mar e escreva nele as páginas que essa duradoura afeição lhe for ditando.
Apesar do perigo e do abismo, talvez a Alfredo sorrisse o céu que o mar espelhava.