Alvor à distância da memória (1)
Ofereciam-se a terra e o mar, e a vida era feita
da rude simplicidade do trabalho.
Num lugar assediado pelo mar, presumível seria que a maioria dos homens traçasse nele os seus caminhos.
Alguns havia, poucos, que no redor a terra tomara; uns por herança, e outros, eleitos, a quem ela sorrira e convidara, para que nela fossem: eram pequenos agricultores que cultivavam hortas de que a aldeia se valia, e colhiam do sequeiro a doçura dos frutos que o sol dourava.
As mulheres dos que o compromisso à terra ligara, trabalhavam nela conjugando o esforço com a sua condição, prevalecendo nas tarefas, que, portas adentro o costume ditava.
As outras, a quem o mar coubera por conjugal união, ajudavam a cuidar das artes de pesca, tratavam dos filhos, tinham a seu cargo domésticos afazeres, e algumas, ainda palmilhavam esforçados caminhos, para, em fumeiros e fábricas de conservas, acrescentarem ganhos que suavizassem a vida.
Do que em terra e no mar a dureza do trabalho mostrava, o destaque ia para os que no mar se mostravam mais capazes.
Havia sempre quem dele tirasse maior proveito por melhor sabê-lo.
A terra, previsível demais para realçar desempenhos, não se prestava a graduar os seus obreiros.
As diferenças, provinham da excelência ou da vulgaridade das espécies que nela cresciam.
Os dias na aldeia eram feitos de rotinas, e a novidade pouco ou nada se atrevia.
O mar e a terra eram o suporte de vida, e o bem-estar decorria do adequado aproveitamento dos frutos do trabalho, tendo por certo, que o caprichoso decorrer do tempo nunca permitia certezas na sua obtenção.
A consciência do risco de privação, levou a que não existissem hábitos nem práticas de desperdício.
Quando no inverno se demoravam temporais, a ria espantava inquietações e temores, valendo a todos os que nela buscavam a mesa da sobrevivência.
Para lá da generosidade, tudo o que lá crescia era de sabor reconhecido, com destaque para as ameijoas, com toda a justiça elogiadas, e desde sempre consideradas simbólica iguaria.
Adequado à dimensão da aldeia havia também um pequeno comércio. Era importante para todos, e ajustava-se aos cenários que o tempo tecia. A incerteza dos ganhos obrigava por vezes ao prazo, ao coração, e ao fardo do rol, que, nalguns casos, podia levar a prolongada, e por vezes até, incobrável dívida.
Em casa, não havia o conforto da água fácil do nosso tempo. Existia no seu lugar, a escassez imposta pelo diminuto volume do cântaro de barro, que a voz do aguadeiro lembrava sempre que passava.
Tal como a água, a iluminação ainda estava longe do que temos hoje. A opção generalizada era a dos velhos candeeiros a petróleo, com torcidas que exigiam apuro no corte, para evitar tisnaduras que as imperfeições do talhe produziam na chaminé.
Eram um pôr do sol descolorido, e deixavam no ar o desagradável cheiro da sua combustão.
Em certas alturas, e determinado por ocorrências e assuntos que o interesse comum recomendasse levar ao conhecimento público, um homem bradava de rua em rua, convidando à atenção e à escuta.
A mensagem era feita de diversidade, e o vozeirão empenhava-se em fazer chegar o recado do mandador.
Alertadas pelo pregão, as mulheres vinham à porta vestindo graciosos bibes, e enxugando as mãos a pingar tarefas de cozinha, em encardidos aventais.
Esclareciam as falhas do ouvido, e avaliavam na proposta algum interesse ou benefício.
Os anúncios, sugeriam na maior parte dos casos, produtos que vinham da terra ou do mar, habitualmente do agrado de todos, e que se ajustavam ao desejo e à carteira das famílias.
Por vezes apregoava-se também a perda dum objecto de alguma valia, com a promessa de alvíssaras aos que o achado contemplasse.
Vinham de fora e no tempo certo, os que a proviam de algumas coisas que o hábito adquiriu para acrescentar à vida na aldeia. Deslocavam-se em carroças, anunciavam ruidosamente a sua vinda, e tornaram-se presença familiar e alegremente aguardada.
Traziam com eles a diferença de outros lugares.