O voo de Raimundo
Raimundo sempre se sentiu em harmoniosa ligação com o céu. A permanente empatia, a sua fixação pelas alturas e o propósito inabalável de navegá-las, acompanhava-o desde criança, e com o encantamento próprio das mágicas epopeias.
Porventura ocultas teorias, das que nos situam em remotas e variadas existências fora da humana condição, pudessem vir a considerá-lo de entre os que do alto precederam.
De braços abertos e peito ao vento, cabelos soltos, alinhados pela brisa que o correr acentuava, em vão batia as pretensas asas. Fazia-o, apesar de tudo, com a convicção que a persistência e o tempo haviam de levá-lo a elevados portos.
Raimundo crescera sem esmorecimentos na vontade de voar.
Se outros homens em tempos decidiram o mar, e nele pintaram o quadro das suas vidas, porque razão não haveria ele de cortejar subidos lugares, para neles habitar o desejo que a vida porfiava.
Queria fazer do céu a sua janela do mundo. Queria, suspenso das alturas, perceber a terra, para lá da nivelada extensão do olhar, e dela partir sempre que a largueza do suspenso azul lhe convocasse.
Elevar-se no espaço por entre nuvens, ou deslizar na etérea transparência teria de ser o seu destino.
O pensamento, há muito afastado de rasteiros desígnios, ocupava-se agora de encontrar um meio, que tornasse possível a complicada tarefa de levar o olhar à dimensão que as alturas ofereciam.
Também por isso, Raimundo achou que apenas ponderado engenho, poderia tornar possível feito tamanho.
Em criança, a sua vida não tinha sido fácil. De origens humildes, as dificuldades acompanharam-no sem abrandamentos, e o calvário da sobrevivência foi sempre o caminho.
A tudo isso juntou-se o exagero do pai no consumo de álcool.
Valeu-lhe, que o vício nunca gerou a costumada violência, e, muito pelo contrário, quando acontecia apenas lhe provocava infindáveis e pacíficas horas de sono.
Benigno desconcerto, que viria a ser de fundamental importância para o que se seguiria.
O encontro, fortuito, deu-se na barbearia do meu pai: Lugar de passagem e de conversa, e da diversidade da notícia, que a habitual e considerável humana presença ia produzindo.
Raimundo aguardava que o barbeiro António Morais, lhe tirasse de cima os anos com que as suas palavras rematavam em cada cliente, a conclusão da obra.
O corte da barba, e, ou, cabelo, provocavam contentamento recíproco, e o novo ar era sempre, e de viva voz, sublinhado pelo mestre.
Passei, como noutras vezes, para no suplemento infantil do jornal diário treinar a leitura que a primeira classe iniciara.
Não me lembro de já o ter visto antes.
Olhou-me, perguntou se gostava de ouvir histórias e convidou-me a ouvir a sua.
Fascinou-me sempre ouvi-las. Primeiro, contadas, de viva voz, por quem se dispusesse a fazê-lo. Aí, contou e pontuou o meu avô materno, figura nem sempre simpática, mas que o enredo transformava em empenhado e afectuoso narrador.
Depois, e quando me brindou o saber dos sinais que tecem as palavras, decifrando os quadros, onde, inscritos, soletravam a sua comovente magia.
Disse-me Raimundo o que já sabemos da sua determinação em voar. Direi agora o que as suas palavras desvendaram do que ainda não conhecemos.
Raimundo vivia no campo e tinha o saber da terra. Cresceu rodeado dos seus incontáveis segredos, e fez da sua aprendizagem uma causa, para ajudar a adiar o esquecimento aos que, em permanência, se alheiam da sua relevância.
Desvendados que foram os segredos da terra e das criaturas do seu reino,era no céu que se abria e se oferecia, que queria muito escrever uma página diferente.
Pelo lugar onde vivia, passavam ao fim do dia enormes bandos de gralhas que cobriam o céu, e se dirigiam para os rochedos do litoral, onde pernoitavam nos inúmeros fojos que entre penhascos abundavam.
Lembro-me delas em criança, e de, com outras crianças, associar a sua passagem à ideia de matrimoniais festejos, como se de humanas criaturas se tratasse.
Acesa pela presença das gralhas nas falésias, aportou à memória a frequente embriaguez do pai, e o remate feito de anestesiantes e prolongadas sonecas.
O pensamento fervilha sempre que presente está a intenção de mudar qualquer coisa no rumo das nossas vidas. Laborava o de Raimundo como nenhum outro, que há muito procurava alternativas à rasteira forma de passar os dias.
Homem de prático saber, decidiu de pronto ensaiar o que lhe foram ditando as especulativas reflexões sobre os efeitos anestesiantes do álcool.
Aguardou pelo fim do dia, e, munido de pinga que bastasse, pôs-se a caminho das falésias onde pernoitavam as gralhas do plano.
Havia um poço, enorme, que a preia mar banhava nas areias do fundo, e os temporais de inverno galgavam, paredes acima, espirrando bátegas de esvoaçante babugem até à superfície.
Raimundo assinalara-o pejado das aves eleitas, que se abrigavam em pequenos vãos, irregulares, talhados pelos elementos nas paredes interiores. Em volta do poço, havia inúmeros afloramentos rochosos, desnivelados e preenchidos de pequenos sulcos e fendas, que no inverno retinham as águas da chuva, e funcionavam como bebedouros para os animais que a terra acolhia.
Pequenas nesgas de terra intervalavam a rocha compacta e permitiam carrascos e aroeiras que as felosas saltitavam.
A escuridão já tomara conta do lugar, e Raimundo já preenchera fendas e sulcos com a esperançosa vinhaça.
Regressou a casa, e a noite, longa e vagarosa como poucas, trouxe-lhe inevitavelmente, o desassossego da insónia.
Levantou-se muito antes que do sol assomasse afogueado preâmbulo. Cirandou até ao razoável calcular do tempo de espera, e fez-se ao caminho, com o sol desperto, e a interpretar exemplarmente o seu papel no palco do verão.
Equipado com as cordas que o estratagema recomendara, depressa chegou ao local.
A surpresa do quadro deixou-lhe sem palavras: dezenas de gralhas espalhadas pelo chão, mais ou menos adormecidas, jaziam prostradas em comovente e forçado abandono.
Passada que foi a impressão primeira, Raimundo começou de pronto a urdir a arrumação das cordas que o iriam unir às adormecidas aves. Com o cuidado e a atenção que a situação exigia, concluiu o trabalho, e aguardou tolhido pela emoção, que tudo acontecesse.
Raimundo quis contar-me do voo. As palavras que sabia, eram as que a terra lhe ensinara para traduzir o que à terra dizia respeito.
Por isso, Raimundo escolheu o silêncio, e o silêncio ditou-lhe um poema feito de palavras por dizer.