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Alvor,a terra e a ria

Alvor,a terra e a ria

11
Jul21

A praça

Joaquim Morais

 

 

 

   A praça era o centro da aldeia. À praça chegavam as carreiras que traduziam o relógio e a novidade. Da praça partiam os que iam em busca dela, e do que a aldeia não era capaz.

   Era na praça que os homens diziam e ouviam. E aos homens, por subversivas razões, nunca era permitido numerosa parcela, nem duvidosa palavra.

   Havia olhos que o olhar nem sempre percebia, e ouvidos que às vezes convocavam o espanto quando desvendados: eram os inesperados tentáculos do regime a vasculhar no falatório, agitadora intenção.

   Só que, naquele lugar de encontro, nem os homens nem as suas falas, eram feitos dessa revolucionária matéria, que em causa pusesse tão altos desígnios.

   Juntavam-se os homens quando circulavam imprecisos rumores, para que deles se ouvisse apropriado esclarecimento, e sobre eles se fizesse satisfatória luz.

   Juntavam-se para falar da pesca; das pescarias do dia; das traineiras que em portimão laboravam com companhas e mestres da aldeia, dos melhores na arte do cerco onde a sardinha era rainha.

   Juntavam-se outros porque adoravam a galhofa, e faziam da praça lugar de risada e diversão.

   Havia mestres na arte da chacota, que a quase tudo emprestavam trocista abordagem, que nela foram com inexcedível graça.

   Nas noites de verão, principalmente aos fins de semana, a praça vivia madrugada dentro.

   Depois do fecho das tabernas do lugar, os resistentes desaguavam na praça, carregando eloquentes pielas, que fariam corar as suas habituais caladas abstinências.

   Alguns havia, feitos do saber do mar, e com um sem fim de histórias que o estímulo da embriaguez desenrolava.

  As narrativas, feitas num linguajar onde sobressaía a terminologia do seu dia a dia no mar, configuraram criações metafóricas bem conhecidas da comunidade, e muito interessantes do ponto de vista da linguagem.

   Era na praça que ficava o café mais central, e que quase todas as intenções escolhiam.

   Do seu interior percebia-se todo o espaço do largo, e as movimentações que nele ocorriam. Lá dentro bebia-se cerveja, café e medronho de monchique; e conversava-se, conversava-se muito.

   Havia barbeiro e merceeiro. Havia padaria. Havia loja de roupa e um lojista que também era regedor da freguesia.

Havia gente que a fazia ser, porque nela era.

   Mesmo ao virar da esquina, ficava a escola primária, a funcionar em edifício antigo, de interessante traçado, com águas furtadas que amedrontavam as crianças, por dela dizerem coisas assustadoras.

   Alguns professores eram vezeiros em usá-la para coagir alunos.

   Pela praça, passavam também solenes procissões, preenchidas de austeras figuras com rostos tristonhos, de merecimento disputado pelos ombros dos homens. As mulheres, que ladeavam o cortejo de cabeças cobertas por delicados véus, cantavam arrastadas melodias segurando velas que o vento soprava.

   Das janelas pendiam vistosas colchas.

   Na praça, as crianças brincavam a despreocupação dos pais, até que o nomear do brado as contemplasse.

 

 

 

 

10
Jul21

Um olhar sobre o olhar

Joaquim Morais

                                

 

                              

                                 Olhares diversos,

que vagueiam pelo mundo,

olhares bondosos, olhares perversos,

olhares que tocam ao de leve,

olhares que veem mais profundo.

 

                                 Olhares irrequietos,

que se movem agitados,

olhares atentos, circunspectos,

olhares serenos, olhares meigos,

olhares pacientes, resignados.

 

Olhares matreiros,

que observam com malícia,

olhares discretos, sorrateiros,

olhares intensos,

olhares que veem com argúcia.

 

Olhares vivos,

que faíscam de brilhantes,

olhares soberbos, altivos,

olhares sinceros e risonhos,

olhares finos, penetrantes.

 

Olhares frios,

que se quedam enigmáticos,

olhares que causam arrepios,

olhares místicos,

olhares tristes e apáticos.

 

Olhares que choram,

que derramam pelo rosto,

olhares que imploram,

olhares de medo,

olhares de raiva e de desgosto.

 

Olhares que fitam,

que traduzem a repulsa e o enfado,

olhares que irritam,

olhares que miram e remiram,

olhares que trazem mau olhado.

 

Olhares baços,

olhares que olham apagados,

olhares que tropeçam nos seus passos,

olhares que não se cumprem,

e buscam a vida sombreados,

 

Olhares que exprimem,

que retratam alegrias e misérias,

olhares que afrontam e que temem,

que se baixam humilhados nas derrotas,

e se erguem arrogantes nas vitórias

 

 

 

 

 

 

 

 

05
Jul21

O silêncio de Deolinda

Joaquim Morais

 

 

 

   Quando assomou ao mundo, a privação do aconchego uterino desencadeou ruidosa choradeira.

Foi o primeiro teste ao comportamento dos sentidos no contacto com o mundo, e a sonora expressão do impacto experimentado.

   A ausência de mobilidade, fazia centrar neles o desempenho da atenção inaugural.

Rodeada de gente e de desafios, correspondia aos incentivos com os recursos da sua básica condição.

   Ao entendimento familiar iam chegando os sinais da sua evolução: Deolinda acendia o olhar a cada sorriso; expressava o prazer e a rejeição quando comia; tocava o gesto com a seda das mãos; dizia dos odores em cada trejeito, mas não sabia dos sons que a rodeavam.

   Deolinda, nascera cercada de velado silêncio.

  Cresceu com ele e com a aceitação da sua inevitabilidade. A surdez impedira-lhe a fala, mas não impedira toda a normalidade restante.

  Já mulher, soube da possibilidade de deixar de ser refém do silêncio. Alguns exames e consultas da especialidade revelaram que a surdez poderia ser revertida.

   Hesitou a decisão e conviveu com a dúvida durante algum tempo. Após reflexão e conselhos resolveu aceitar.

Instalaram-lhe os instrumentos adequados e receitaram-lhe os medicamentos que lhe ajudariam a suportar a mudança.

  Todo o seu corpo, funcionara em função duma quietude absoluta, perfeitamente arrumada na sua natureza. Tudo passaria a ser diferente.

  A percepção dos ruídos, foi por isso feita de sofrimento. A voz dos que habitualmente a rodeavam às vezes provocava-lhe ténues sorrisos, mas foi sempre dolorosa a novidade.

   O desconforto era permanente, e a tentativa de correcção mostrava-se cada vez mais difícil de suportar.

   Desistiu.

   Decidiu dar outra vez o braço ao silêncio, e com ele assumir eterno compromisso.

 

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