Já é amanhã?
O Simão vive nos brinquedos, e no que a imaginação com eles decidir fazer.
Tudo o que, para além disso, no seu dia a dia tenha que ser feito, é sempre inoportuno, enfadonho e permanentemente adiado.
Primeiro que tudo brincar, a seguir brincar, e por fim brincar: este é o seu lema.
Retarda as obrigações até ao limite, e o seu cumprimento bate sucessivos recordes de velocidade.
A estratégia passa por adiar, só que, muitas vezes nos limites, e noutras já para lá deles, faz daí decorrer divertidos episódios.
O tempo das refeições fica sempre muito aquém do que o manual recomenda, de maneira a sobejar para os lúdicos projectos, onde nunca é demais. De entre os comensais é o último a chegar e o primeiro a sair.
As sestas, que o cansaço das crianças às vezes convida, nunca cabem no seu dia a dia.
Quando nalgumas vezes o olhar pesa, as cortinas tendem a fechar-se e a rendição parece inevitável, depressa renasce na vertigem duma pista automóvel, na criação dum cenário que envolva polícias e ladrões, bombeiros, resgates e salvamentos, ou na remontagem dum lego multiforme.
Os parceiros das brincadeiras, onde eu me incluo, raramente resistem ao tempo do Simão, ficando quase sempre pelo caminho, no interminável trajecto traçado para elas.
Quando a escola aconteceu, todo o programa diário habitual se alterou, mas nas novas rotinas criadas, o protagonismo continuou a pertencer ao fantástico mundo dos brinquedos.
A frequência da escola sujeitava-o ao tempo da permanência. Fora dela, a gestão era sua, desde que assegurados os trabalhos de casa que ela obrigava.
À semelhança das refeições, da satisfação de fisiológicas exigências, e de outras fortuitas ocorrências consumidoras do precioso tempo, os trabalhos de casa, seriam feitos num contexto permanente de economia temporal.
Acontecia por vezes, que a pressa nem sempre coincidia com o passo de certos trabalhos.
A necessidade de estudo e pensamento mais demorados, exigiam mais tempo, que, quando não providenciado, geravam resultados de rigor duvidoso e apresentação menos conseguida.
As constantes advertências raramente traziam as esperadas melhorias.
Com as tarefas da escola e tudo o mais, o dia do Simão desaguava na noite como se estivesse a começar.
A seguir ao jantar, assumido como sempre em modo ligeiro, ainda havia tempo para um último acto da divertida jornada, até à decisão materna de lhe lembrar a existência do descanso noturno.
Quando se entendiam a evidência e a necesssidade do repouso, acabava rendido à obrigação de dormir.
Sem saída possível, apenas lhe restava que a noite tal como os outros desperdícios temporais que habitavam o dia, fosse lesta, e que o prazer do sono que nunca sentia, o bafejasse, e a tornasse menos entediante.
Empunhando dois pequenos peluches de etiquetas delidas pelo roçar dos dedos, entrava na cama com a atenção virada para a leitura que alguém ditava e que no tempo do seu ouvido, depressa se apagava.
Nada melhor que os livros para levá-lo aos braços de morfeu
Na cama, o desejo de regresso ao palco por vezes acordava-o. Baralhado e sonolento, com a noite a decorrer e o dia ainda longe, fazia sempre a mesma pergunta:
-Já é amanhã? Já é amanhã?
A luz do dia raramente o apanhava entre lençóis. Madrugava, como se o sujeitasse uma obrigação laboral, ou um compromisso que exigisse as horas do alvorecer.
Tinha pela frente, o ledo encargo de criar uma realidade à sua medida, e com ela preencher o mundo de que era feito.
Ao tempo, diria de si, com toda a diversão que nele coubesse.