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Alvor,a terra e a ria

Alvor,a terra e a ria

29
Mai21

Já é amanhã?

Joaquim Morais

 

 

 

 

   O Simão vive nos brinquedos, e no que a imaginação com eles decidir fazer.

Tudo o que, para além disso, no seu dia a dia tenha que ser feito, é sempre inoportuno, enfadonho e permanentemente adiado.

   Primeiro que tudo brincar, a seguir brincar, e por fim brincar: este é o seu lema.

   Retarda as obrigações até ao limite, e o seu cumprimento bate sucessivos recordes de velocidade.

  A estratégia passa por adiar, só que, muitas vezes nos limites, e noutras já para lá deles, faz daí decorrer divertidos episódios.

  O tempo das refeições fica sempre muito aquém do que o manual recomenda, de maneira a sobejar para os lúdicos projectos, onde nunca é demais. De entre os comensais é o último a chegar e o primeiro a sair.

  As sestas, que o cansaço das crianças às vezes convida, nunca cabem no seu dia a dia.

  Quando nalgumas vezes o olhar pesa, as cortinas tendem a fechar-se e a rendição parece inevitável, depressa renasce na vertigem duma pista automóvel, na criação dum cenário que envolva polícias e ladrões, bombeiros, resgates e salvamentos, ou na remontagem dum lego multiforme.

  Os parceiros das brincadeiras, onde eu me incluo, raramente resistem ao tempo do Simão, ficando quase sempre pelo caminho, no interminável trajecto traçado para elas.

  Quando a escola aconteceu, todo o programa diário habitual se alterou, mas nas novas rotinas criadas, o protagonismo continuou a pertencer ao fantástico mundo dos brinquedos.

  A frequência da escola sujeitava-o ao tempo da permanência. Fora dela, a gestão era sua, desde que assegurados os trabalhos de casa que ela obrigava.

  À semelhança das refeições, da satisfação de fisiológicas exigências, e de outras fortuitas ocorrências consumidoras do precioso tempo, os trabalhos de casa, seriam feitos num contexto permanente de economia temporal.

  Acontecia por vezes, que a pressa nem sempre coincidia com o passo de certos trabalhos.

  A necessidade de estudo e pensamento mais demorados, exigiam mais tempo, que, quando não providenciado, geravam resultados de rigor duvidoso e apresentação menos conseguida.

  As constantes advertências raramente traziam as esperadas melhorias.

  Com as tarefas da escola e tudo o mais, o dia do Simão desaguava na noite como se estivesse a começar.

  A seguir ao jantar, assumido como sempre em modo ligeiro, ainda havia tempo para um último acto da divertida jornada, até à decisão materna de lhe lembrar a existência do descanso noturno.

  Quando se entendiam a evidência e a necesssidade do repouso, acabava rendido à obrigação de dormir.

  Sem saída possível, apenas lhe restava que a noite tal como os outros desperdícios temporais que habitavam o dia, fosse lesta, e que o prazer do sono que nunca sentia, o bafejasse, e a tornasse menos entediante.

  Empunhando dois pequenos peluches de etiquetas delidas pelo roçar dos dedos, entrava na cama com a atenção virada para a leitura que alguém ditava e que no tempo do seu ouvido, depressa se apagava.

  Nada melhor que os livros para levá-lo aos braços de morfeu

  Na cama, o desejo de regresso ao palco por vezes acordava-o. Baralhado e sonolento, com a noite a decorrer e o dia ainda longe, fazia sempre a mesma pergunta:

  -Já é amanhã? Já é amanhã?

  A luz do dia raramente o apanhava entre lençóis. Madrugava, como se o sujeitasse uma obrigação laboral, ou um compromisso que exigisse as horas do alvorecer.

  Tinha pela frente, o ledo encargo de criar uma realidade à sua medida, e com ela preencher o mundo de que era feito.

  Ao tempo, diria de si, com toda a diversão que nele coubesse.

22
Mai21

Crónica do insólito

Joaquim Morais

   

 

 

  

   Angola, enclave de Cabinda, corria o ano de 1972. No pequeno destacamento de Sangamongo, um pelotão da companhia de caçadores 3408 era guarda avançada para operações de patrulhamento, na zona de fronteira.

   Também perto da fronteira, no lado congolês, um aquartelamento do MPLA com guerrilheiros que faziam constantes incursões no território angolano emboscando colunas militares, e semeando de minas os trajectos habitualmente utilizados pelas tropas portuguesas, era a preocupação mais significativa.

   A coordenação de toda a actividade militar na zona era da competência da companhia 3408, que estava sediada no Chimbete.

   O Maiombe dominava toda esta área geográfica, tornando muito difícil pela sua natureza extremamente fechada, qualquer actividade militar no espaço da sua implantação.

   São perto de trezentos mil hectares de floresta cerrada, com árvores gigantescas, de madeiras raras e valiosas, e uma fauna riquíssima e variada, onde se destacam gorilas, elefantes, chimpanzés e aves raras.

   É a segunda maior floresta do mundo a seguir à amazónia, e por isso, hoje também considerada uma das maiores reservas naturais do mundo.

   Sangamongo estava completamente enlaçado por essa pujança verde e cingido por uma barreira construída pelos militares que garantia relativa segurança.

   A proximidade do aquartelamento fazia deslocar muitas vezes os guerrilheiros do MPLA ao Sangamongo, para ataques surpresa, breves, de desgaste psicológico, a que juntavam de viva voz, obscenas advertências e indecorosos recados, para militares e respectivas famílias.

   As deslocações entre a sede da companhia no Chimbete e o destacamento, eram de risco elevado. O percurso, extremamente difícil em determinados troços, era apeado e o terreno picado para detecção de minas. Nas viaturas apenas os condutores, e em todos o atormentado desejo de um final feliz.

   Na época das chuvas eram quase heróicas estas travessias, pela dificuldade extrema que nos punham à progressão, a lama e a água.

   No interior do aquartelamento a vida desenrolava-se relativamente calma, e os afazeres decorriam rotineiros como em qualquer outro lugar.

   Nos intervalos da guerra, jogava-se futebol, bebia-se cerveja e jogava-se às cartas. Havia cozinha. Havia refeitório. Havia os serviços diários que a segurança e organização militar obrigavam, e o convívio possível no tempo que sobrava de tudo isso.

   A vida era feita de todas estas coisas, e às vezes, quando os apertos espaçavam e o seu esquecimento ocorria, regressávamos a nós, por algum, pouco, tempo.

   Como em qualquer outro lado, sujeito ou não ás angústias da guerra, aconteciam coisas, mais ou menos improváveis.

   A um militar que adoecesse, eram-lhe administrados os medicamentos habituais, que os sintomas recomendassem.

  A enfermaria local conseguia resolver a grande maioria das pequenas enfermidades que iam surgindo entre o pessoal, salvo em situações extremas, e quando os meios terapêuticos disponíveis se revelavam insuficientes.

   A Ricardo, aconteceram-lhe febres altíssimas, resistentes aos antipiréticos comuns, que obrigaram ao pedido de evacuação urgente para unidade hospitalar.

   Naquele lugar e naquelas naquelas condições, apenas o helicóptero poderia levar a cabo tal intervenção, com a rapidez que a situação recomendava.

   Accionados os mecanismos necessários, descolou da sede do batalhão em Cabinda a aeoronave requisitada.

  O voo até ao local da evacuação, não sendo muito demorado, encontrava na extrema densidade do maiombe e na localização fronteiriça do destacamento, a maior dificuldade.

  Recordo que não muito longe de Sangamongo, separado pela fronteira que o maiombe não escreve, ficava o aquartelamento do MPLA.

   Quando na parte final da viagem, na mancha verde que a terra inunda, se desenha clareira de precária habitação e humana presença, aos pilotos parece-lhes o objectivo pretendido, e depressa preparam a aterragem.

   Iniciada a descida, veem-se de repente cercados de homens, e, ameaçados pelas armas, impedidos de levantar voo.

   A constatação tardia do insólito erro já não lhes permitiu a retirada.

   Caído literalmente do céu nas mãos dos guerrilheiros, o heli foi capturado e os seus dois ocupantes feitos prisioneiros.

   Os pilotos foram resgatados passados alguns meses, numa troca de prisioneiros entre o exército português e o MPLA na fronteira de Massabi, perto do morro de Sala Bendje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

16
Mai21

Realidade virtual

Joaquim Morais

   A surpresa deixou de ser. Banalizaram-se os acontecimentos, mesmo os mais inesperados.

   O espaço das notícias alargou-se e nele passamos a conviver com a imensidão de coisas que gera. Já não é apenas o que acontecia no nosso bairro, na nossa terra ou na cidade mais próxima. Todos os dias, a televisão, a rádio, os jornais e os meios digitais, trazem-nos tudo o que de bom e de mau o mundo vai produzindo.

   A profusão transformou-nos em receptores cada vez mais frios, mesmos nos casos em que, o que ouvimos, deveria suscitar alguma reacção mais emotiva. Pouco sentimos e raramente nos emocionamos, e, quando algum sentimento aflora pela brusca contundência, há um encolher de ombros, um abanar de cabeça e tudo depressa se desvanece.

   Nunca tivemos tantos motivos para reflectir, e, curiosamente, continuamos a deixar que outros o façam,(não fazendo), por nós, com as consequências que estão à vista.

  Deixamos de ser, e permitimos que as nossas vidas se conduzam por caminhos que outros traçaram.

  Vivemos em função de padrões que não estabelecemos, e sufocamos com as opções essencialmente materiais que diariamente fazemos.

  Dizem que estamos endividados. Cada um de nós é responsável por uma quantia significativa no montante global da dívida do país.

  É portanto virtual a nossa realidade.

  Na verdade não somos o que parecemos, mas ostentamos esse parecer com o orgulho que ele enganosamente sugere.

  Estamos ocupados com o mar de coisas que puseram à nossa disposição, e com as que, ainda não tendo, são a prioridade que se segue,e por isso, não temos tempo para sentimentos nem emoções.

  Sentimentos e emoções, apenas os que são suscitados por tudo o que a tecnologia de última geração tem ao nosso dispôr.

  Vivemos para consumir, e ao consumir nos consumimos.

 

01
Mai21

Maia

Joaquim Morais

  

 

 

 

   A Rita tem dez anos e teve sempre o desejo de possuir um cão. O avô, que o texto diz, foi quase sempre a primeira via do constante pedido, mas nem por isso atendido.

   Nem célere nem pragmático. As minhas resoluções demoram quase sempre mais que o razoável e emperram por benigna indolência.

   Acabou por ser o acaso e não o avô, que fez aportar à Rita o animal que a criança há muito imaginava, sonhava e fantasiava.

   Uma conversa entre a mãe e uma amiga, desbravou o caminho que eu por inércia não chegara a encetar. Ajustaram e acordaram os procedimentos para trazer o animal nascido recentemente, e tudo ficou resolvido.

   Passaram os dias até ao combinado. À Rita pareceram-lhe anos. A impaciência e o desejo raramente concordam. A roda do tempo teimou na lentidão e para a criança foi quase sofrimento a espera.

   Mas o dia chegou. Juntamos a família e viajamos para Lagos onde nascera o novo elemento eleito, e onde permanecera o tempo adequado à separação da progenitora.

   Tive muitos cães durante muitos anos. Vivi o entusiasmo da caça em parte da minha vida, e isso obrigou-me ao convívio com animais dotados de qualidades para o acto. Animais com energia e apurado instinto, exímios na arte de perseguir e levantar as peças de caça numa aliança perfeita com o seu possuidor.

   Tinha agora diante de mim algo completamente diferente. Era a expressão mais reduzida dum canídeo que eu já vira. Uma fêmea Yorqshire minúscula, comovente pela delicadeza e pela dependência.

   A Rita iluminou-se desde o primeiro momento. Talvez tenha ocorrido nesse instante o primeiro indício da sua vocação maternal.

   O desvelo inundou-a, e ao olhar, concedeu a exclusividade da radiante visão.

   A viagem de regresso foi um alinhavar de intenções que pouco divergiam dos que requerem as humanas exigências.

   Chegados a casa, a cachorrinha fez do chinelo de quarto da Rita o seu primeiro refúgio que conservou até que o espaço o permitiu.

   Apelidei-a de migalha, com ternura, pela exiguidade. Precisava agora de um nome que a dissesse, acordado pelos que, doravante, iriam tê-la todos os dias nos horizontes do olhar.

   Nascera no primeiro dia de Maio e foi decidido, também por isso, que se chamasse Maia. Achei uma boa escolha. Era abreviado como convinha, mas claro e luminoso. Uma primeira sílaba tónica, aberta, a lembrar a vastidão que a sua pequenez não impedia; um grão de areia também pode insinuar o mar. Depois a outra, átona, mais discreta mas sempre presente no chamar.

   Para além da grafia e do dizer, o termo Maia trouxe-me a memória dum hábito antigo entre os algarvios por altura do inicio de Maio. Era chamada de Maia, uma boneca feita de palha de centeio, ligada aos ritos da fertilidade do inicio da primavera e do novo ano agrícola, em torno da qual se dançava durante toda a noite do primeiro dia do mês de Maio. A lembrança, também as trouxe expostas em janelas e varandas, pelas gentes a que a tradição acenou e teimou, colorindo ruas e casas com as ingénuas e simbólicas bonecas. Era uma espécie de arte Naíf, que o tempo esqueceu.

   Hoje festejamos o primeiro aniversário da Maia cadela. Um pouco mais crescida, mas ainda com abreviada compleição.

   O sentimento de pertença que desenvolveu no espaço que percorre, levou-a à sua vigilância permanente e ruidosa, eventualmente dissuasora de suspeitos propósitos.

   Não a meço aos palmos, porque a sua grandeza reside naquilo em que se tornou: Conquistou-nos a todos; rendemo-nos à sua inteligência, à sua dedicação, à sua sensibilidade, e à alegria com que nos festeja a cada dia que começa.

 

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