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Alvor,a terra e a ria

Alvor,a terra e a ria

19
Fev21

O vazio dos excessos

Joaquim Morais

 

 

 

 

 

 

   Com olhos de terra e de mar a lhe dizerem do mundo, fez da liberdade a aprendizagem dos lugares que o sol inundava, e a chuva e o vento cantavam. Lugares onde os elementos forjam a harmonia, a vida pulsa pujante e autêntica, e ao homem assomam antigas emoções que a ausência privara e o tempo esquecera.

   Plantou árvores e fez sementeiras de entusiasmo e de esperança; aprendeu os pássaros, o seu canto e os seus ciclos: os que nos habitam e os que do longe trazem a esperança da vida por longínquas e precisas rotas, que a dúvida assalta pela grandeza e pelo rigor; soube de outros animais e do seus hábitos; assistiu ao desfile das estações e ao desempenho dos seus intérpretes; o deslumbre da água e o fascínio da imensidão, convidaram-lhe ao mar e ao silêncio.

   Esquecidos do que somos, vivemos alheados de singelos argumentos, que delicadamente nos sopram a atenção e o desejo.

  Cientes do mérito de presumidas convicções, caminhámos por opostos caminhos, que acrescentam distância, mas que não nos impedem o regresso.

   A terra e o mar olham-nos com esperança renovada de todos os lugares do mundo.

   Ficamos mais longe mas não ficamos mais felizes.

   Sabemos que é possível, e que os ganhos não se podem traduzir apenas por riquezas acumuladas, sendo que, a maior delas, é a que se traduz pelo bem estar genuíno, que reabilite a adulterada condição que nos enferma.

   Os avanços tecnológicos, e tudo o que o conhecimento tem posto à nossa disposição ao longo do tempo, trazem-nos bem estar, e ao mesmo tempo a inquietação dos limites que amedrontam a razão.

   A inteligência artificial, ameaça-nos com a possibilidade de banalização e de manipulação do seu criador, ausentes que estão dos seus desígnios, valores que fundamentam a nossa versão humanitária.

   Forte candidato a refém das suas criações, ao homem que o livre arbítrio contemplou, restará exercê-lo com a sensatez que, apesar de tudo, continua a assistir-lhe.

   Sê-lo-emos quando nos tomarem a quietude e o espanto, e nos caminhos da rosa se ouvir a música do mundo.

   Em cada um de nós há um desejo que não morre; uma semente que aguarda a hora da terra que as origens conservam.

   Com coisas simples, preencheremos o vazio dos excessos.

 

 

12
Fev21

Os trovadores da desventura

Joaquim Morais

 

 

 

   A aldeia era igual todos os dias. Nada acontecia para lá das rotinas que a sua circunstância determinara, e a vida acontecia redonda e previsível.

   Duma tranquilidade comovente, apenas as falas entrecortavam o silêncio que a ausência tecia.

Nas ruas de terra, reinavam as crianças que a brinca juntava, até aos brados das mães a lembrar o regresso.

   As mulheres mourejavam portas dentro, e garantiam asseio e sustento aos que com elas partilhavam a estreiteza de vida.

   Os homens tinham o mar, os seus horizontes, e os seus acasos.

   A monotonia era quebrada com inesperadas visitas, que traziam a diferença e despertavam o reparo.

   Era um encontro com outro que não o mesmo.

 

 



   Cantores viajantes, gente desconhecida cujos locais de origem nunca soube, e que, de tempos a tempos, traziam a informação cantada e musicada de ocorrências estranhas e comoventes, que a pacatez do cantinho onde vivia tornava ainda mais espantosas e inquietantes.

   Arautos da desgraça que lapidavam à sua maneira, dando-lhe um brilho literário que a requintava no trágico, e uma interpretação onde o propósito maior era exacerbar o cunho comovente da composição, de maneira a conseguir uma imagem que garantisse o sucesso jornalístico e económico da notícia.

   Chegados à aldeia, postavam-se numa encruzilhada fazendo chamariz com as harmonias dum acordeão que me atraía sobretudo pelas cintilações que produzia, e os acordes duma velha viola dedilhada por um homem cujo aspecto pressupunha a tragédia a divulgar.

   Reunido o povo, começava a cantoria pela voz esganiçada duma mulher de meia-idade, anafada, de cabelos ruivos presos por um carrapicho que lhe acentuava ainda mais a volumosa figura.

   Acompanhada pelos lamentos do acordeão decadente e pelo som magoado da viola, a mulher esforçava-se por cativar a assistência pondo algum empenho na interpretação, que não disfarçava a ausência de talento

   Mais preocupados com o conteúdo do que com a forma, as pessoas procuravam não perder o fio da história que ali estava a ser tecida, e ansiavam pelo desfecho que se adivinhava, e que de antemão se supunha dramático. Fora aliás quase sempre o infortúnio e a tragédia, a substância das mensagens que nos traziam estes estranhos viajantes. Porventura seria esse o género, que, aliado ao insólito, melhor prendia a atenção e o interesse da gente simples a quem a informação se dirigia.

   Não era raro ver-se a comoção tomar conta de algumas pessoas mais sensíveis. Por vezes, era até o pranto que rematava a ansiedade com que alguns dos ouvintes seguiam o desenrolar da narrativa.

   Ao fim e ao cabo, estava ali o testemunho de que o mundo era capaz de gerar a malvadez que pelos contornos anunciados, nunca a teríamos imaginado existir.

   Depois de feita a cobertura duma parte da aldeia, abalavam sempre rodeados de pequenada. Instalar-se-iam de seguida noutro local adequado, e reiniciariam todo o ritual.

   Importa dizer, que após cada uma das várias cantorias com que presenteavam a aldeia, eram postos à venda os folhetos, onde podiam ser    lidos os versos da história acabada de ca(o)ntar.

 

06
Fev21

O outro lado das palavras

Joaquim Morais

                                      Enquanto me convocar o espanto

                                      viverei na iminência dum verso

 

 

 

 

 

 

 

       Apenas o linho das palavras

          permitirá a cal do poema.

 

 

 

 

 

            Propósitos

 

 

Que as palavras traduzam

a veemência do desejo.

Que tenham a subtileza do ar

e a leveza do voo.

 

 

 

 

 

As flores da sua lavra

 

 

As palavras habitam

o mistério do poema.

Convictas da sua condição,

dirão com a clareza

da sua obscuridade,

e em cada jardim

despontarão as flores

da sua lavra.

 

 

 

 

                                       Sintaxe de abelhas

 

 

Fachos de orvalho que incendeiam as sílabas,

e descerram cortinas de aurora

na bruma do verbo.

Palavras solares, que esmagam doutrinas

e florescem em jardins de água,

solidárias e inquietas,

cheirando a espanto e a jasmim,

cúmplices de frases que governam o vento,

e em cada parágrafo sopram o riso das manhãs.

Discurso de pedra lavrado pelo cinzel das águas,

onde uma sintaxe de abelhas insinua a primavera.

 

 

 

A poesia do sal

 

 

Quero o céu e o mar

e o sol a escrever a poesia do sal.

Quero a alma do ar a açoitar-me,

e as éguas de espuma,

e a volúpia da chuva,

e a terra a inundar-me.

Quero colher do verde

a luz que o acende.

Quero as palavras e o verso

e o mar que as navegue

 

 

 

 

 

A música e o silêncio

 

 

Uma palavra que brilhe para além

das suas prosaicas fronteiras;

que ateie a fogueira dos espíritos

e aquiete o sopro que a obriga.

Que a sua música desperte

a graça de quem ouve,

e o seu silêncio a musa de quem lê.

Uma palavra nua e pobre;

liberta do jugo da retórica;

que seja semente e flor e fruto,

e apenas se cumpra.

 

 

 

 

Maternos sobressaltos

 

 

Sempre que no redor se acende

o olhar e o desejo,

a terra agita-se em maternos sobressaltos,

até que a insónia lhe dite as palavras

que ousem subverter o mundo.

 

 

 

 

                                       O dizer do vento

 

 

Quando as palavras são pássaros,

e voam nos versos que as resgatam

para o dizer do vento,

talvez o canto as liberte

da prisão dos espelhos.

 

 

 

 

O novo canteiro

 

 

Agora que o tempo

nos impede a flor nos lábios,

faremos da voz e do olhar

um novo canteiro.

 

 

 

 

 

Livros

 

 

Os livros nascem nos olhos

de quem lê.

Às vezes, descem

por veias comoventes,

até ao lugar onde pulsam

a estranheza vibrante

do seu hálito,

e aí fermentam

o desejo de mar.

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