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Alvor,a terra e a ria

Alvor,a terra e a ria

26
Dez20

A festa do pão

Joaquim Morais

  

 

 

 

 

   Familiares e amigos diziam-me do pão; e as palavras eram mágicas, porque apesar de novas ao ouvido, traziam com elas vivências ancestrais. Seria preciso recuar aos tempos que antecederam a história, para situar uma arte que os séculos consagraram.

   Desde o pão primordial até ao pão dos nossos dias, a complexa simplicidade da combinação de dois elementos (farinha e água), foi para o homem um permanente desafio. Umas vezes por acaso, noutras pela experiência acumulada, e noutras pela partilha do conhecimento, chegou até nós com todas as cortinas descerradas.

   Símbolo do alimento essencial, o pão acompanhou a história da humanidade como nenhum outro, e continua a ser presença elementar nas mesas do mundo.

   Hoje, a beneficiar da sabedoria disponível e consolidada, decidi a sempre saborosa tarefa de dar cumprimento a mais um dia em que o livro do pão dirá do seu jeito e do seu acontecer.

   Já vai longe o tempo inicial, mas nem por isso se apoucou o entusiasmo que o acto suscita.

   A ocasião e a vontade nem sempre acordaram, mas um tempo novo e a sua pandémica circunstância deram as mãos, e desde essa altura que a festa está de volta.

   O fabrico do pão na sua versão mais pura e mais tradicional, envolve um conjunto diferente e mais demorado de procedimentos, quase sempre ausentes na produção industrial: A correria dos dias de hoje, não comporta o demorado passo do pão de outro costume.

   Mas vamos à festa, e ao conjunto das pequenas coisas que a compõem:

- Elemento essencial, o forno de lenha obriga-me a tê-la sempre disponível, e aqui, a vantagem de morar numa zona de feição acentuadamente rural, dá-me grande ajuda, e a sua recolha um prazer imenso, apesar do esforçado encargo.

- Na noite que antecede o dia do pão, tem lugar a preparação do “isco”, que nalguns lugares também chamam de massa mãe: esta massa, da maior importância, feita com água, farinha, e fermento (uma pequena porção de massa já levedada que conservo no frio, volto a amassar com um pouco de farinha na manhã da véspera do pão, e vai levedar até à noite do “isco), irá promover a fermentação do nosso pão, e dar-lhe a qualidade que o distingue.

- No dia, ao nascer da manhã, avalio o crescimento do “isco”, coloco-o sobre a farinha já depositada no alguidar de barro, ajusto o sal que costumo diluir na água levemente aquecida, arregaço as mangas, e com o vigor possível, ponho durante algum tempo na massa, as mãos e a atenção; amassadura pronta e abafada, é só deixar que as leveduras se cumpram e a fermentação aconteça; a temperatura exterior dirá do tempo necessário, mas a prática aponta que três horas, um pouco mais no inverno, um pouco menos no verão, são suficientes para que a massa cresça quanto baste para o que se pretende.

- Com a fermentação consumada e a massa no ponto ideal, chegou o momento de dar forma aos pães: retiramos do alguidar a quantidade de massa para o pão que pretendemos, e voltamos a amassar um pouco cada um, antes de moldar. Depois de moldados e colocados num tabuleiro, ficam a “fintar” para nova fermentação, à volta de uma hora; tempo em que preparamos o forno para recebê-los.

- Com o forno na temperatura que o traquejo recomenda, colocamos um a um os pães para a cozedura que se espera bem sucedida, e que demorará cerca de uma hora.

   No tempo certo, do forno virão os aromas do pão quente que nos deixam felizes, e à mesa chegará o prazer dum pão genuíno, feito com a devoção que nos merece a sua simbólica riqueza.

 

13
Dez20

O vento a raiva e o silêncio

Joaquim Morais

 

 

 

 

 

   O vento soprava desabrido e frio, semeando transtornos que a noite agravara.

   Surdira a sul, no despertar do dia, jovem, por isso bonançoso, a hesitar o sopro, que a manhã diria no correr, do seu crescer e do seu rumo: na ladeira do sol até ao cume havia de enfunar velas ansiosas e soprar as virtudes do seu génio, alternando a rota, até que, declinada a chama, seguisse a rosa nos caminhos do norte.

   A tarde costumava fixá-lo fresco, colateral e derradeiro, e a noite, demovê-lo do vigor do sopro.

   Mas a noite chegou, sem argumentos para a veemência do ar.

 

 

 

   A decisão do mar e a sujeição à sua versátil natureza, fizeram de Luís, homem de poucas falas e basta fúria. Vezes sem conta, a sua raiva mal contida se derramou nas contrariedades da relação.

   A dureza do homem, a energia e o mau génio, valeram-lhe alcunhas, respeito, e algum temor, da parte dos que com ele partilhavam o mar e a vida.

   Sociável em parca medida, e apenas na sempre breve pausa entre a faina e a família.

   Tinha um companheiro jovem, que fazia a aprendizagem da lida com acanhado e apreensivo respeito; na instrução, o silêncio de bordo, nada devia ao que a muda envolvência revelava: José Inácio era o seu nome, e ensaiou quase sem palavras, a peça que levaria à cena em grande parte da sua vida.

   Preparadas que estavam as artes para um dia de pesca, para estas almas, nem ventos nem marés, nem humores de mar, haviam de impedir o pão.

   Com os aparelhos à cabeça, e as curvas dos braços argoladas por asas de cestos pejadas de apetrechos que a faina exigia, caminhavam rua abaixo em direcção à ria.

   O trabalho acrescia, com o vento rijo a contestar o equilíbrio da carga.

   Palamenta a bordo e prontos para o mar, Luís recusou a vela, armou remos e vigor, e aprestou-se sem ajudas, a enfrentar ventos e correntes pelas rotas do céu, até ao destino que as acesas referências apontaram.

   Chegados ao mar do desejo, restava que o permitisse a cortesia do vento.

   A barlavento reinava o noroeste, que Luís enfrentava sem palavras, empunhando remos que os toletes gemiam.

   De proa no vento e pesqueiro na borda, remava sem seguimento, suspirando calmarias que a lida exigia e o tempo negava.

   A noite piscava luzeiros, e no silêncio de bordo a ansiedade crescia pela dúvida. Com vento tamanho, improvável seria a reclamada faina.

   O relógio ainda não obrigava, e a esperança vivia dos seus limites; depressa porém, sumiram esperança e tempo, que eram outros os desígnios de Eolo.

   Salpicos de água que o vento soprava, temperavam a fornalha humana, e à luz débil da lanterna de petróleo, eram visíveis a revolta e o desagrado nos traços do rosto de Luís.

   José Inácio, assistia no silêncio da sua timidez.

   O balão das emoções enchia perigosamente, e naufragavam na tensão que o vento acumulava, os cada vez mais fracos vestígios de bom senso.

   Remavam a raiva e a angústia, sucediam-se emoções e desacerto, e tudo fugia ao racional entendimento da peça em cena; até que, os limites ditaram o furor de Luís:

–Largando bruscamente os remos que empunhava, Luís ergueu-se enraivecido, lembrou arbitrários e constantes apertos e transtornos, contestou a absurda impunidade, praguejou, gritou, e desafiou o vento a humanizar-se e a enfrentá-lo, para, como semelhantes, resolverem a contenda à maneira dos homens ofendidos.

   Não abrandou o vento, nem em Luís a vontade de desforra.

  Impedido da faina e do pão e entre pragas e maldições, Luís não se conteve, e, de cabeça perdida, movimenta-se bruscamente para a proa da embarcação, procurando sob uma pequena coberta o cesto que continha o farnel.

   Com o semblante desfigurado pela raiva e o gesto possuído pelo desnorte, despeja-o impetuosamente, dele retirando um saco que depressa esvazia.

   Prestes, volta-se na direcção do vento, colocando-o com a boca de maneira que o ar em movimento depressa o encha.

   Acto contínuo, e exibindo o saco já prenhe da tirana ventania, ergue-se possante, puxa da navalha, e com a furiosa serenidade dos vencedores, esfaqueia-o vezes sem conta, ao mesmo tempo que grita frases de vitória e de vingança.

04
Dez20

Os pescadores e o mar

Joaquim Morais

 

 

 

 

 

 

   Havia um tio, pescador, que um dia da janela do seu barco me mostrou o mar. Mar que deslumbrou o menino, e que o jeito de olhar do homem, ao longo dos anos havia de o dizer em ingénuas alusões.

    E havia os meus avôs, também pescadores, e todos os outros, que o mar cortejara e a exígua dimensão do lugar irmanara.

Com todos eles, e por todos eles, nasceu uma história nova, um segredo que era preciso desvendar.

    Estive sempre muito perto de todos os que o mar tinha; aprendi-os, e ao mar; e ficou para sempre comigo um fascínio imenso por tudo o que significava ser pescador.

   E havia tanto, na vida de quem aceitara o repto da imensidão: o meu avô paterno tinha o saber dos aparelhos, - linhas de pesca com centenas de anzóis, que no mar se estendiam a perder de vista; na popa das traineiras por onde andou na pesca da sardinha em grande parte da sua vida, cabia ao meu avô materno o arrumo do corcho - conjunto de bóias de cortiça que sustinham a rede da arte do cerco.

   O meu tio, que me permitiu o mar e fez durante alguns anos as delícias das minhas férias grandes a bordo da traineira que governava, era mestre da arte do cerco, e foi de todos o que mais me marcou.

   Cada saída para o mar era uma roda de emoções que nunca esqueço. Dele veio o que ainda conservo, do conhecimento sobre a pesca da sardinha, e de toda a inesquecível experiência de vida a bordo.

   Cresci com o mar à vista, e a meu lado homens de quem recebi a medida possível do mérito das suas vivências.

   Em todos eles, para além do conhecimento da faina, existia um modo de ser que os terrenos ofícios não concedem.

   Pela dignidade e pela coragem, e por tudo o que a proximidade me ofereceu, tenho por todos os que no mar teceram as suas vidas, o apreço que a natureza da sua condição exige.

   O tempo e a recusa do corpo, vencido pelo cansaço e pela corrosão dos elementos, dirão do fim da relação, mas ela persistirá para além do seu termo.

   Ser pescador, é ter mar pela vida fora, mesmo quando já não o têm: alguns têm-no sobre a cómoda, na forma dum búzio que lhes trás recados e lágrimas; outros, recordam-no em inflamados relatos de apertos inúmeros, que fazem o apego brilhar ainda mais; todos o têm no rosto curtido pelo sal e pelo sol; no olhar distante que os largos horizontes obrigaram; nas mãos, onde se desenham intermináveis remadas e se escrevem cabos e linhas em pregas de tortura; alguns, ainda hesitam o andar e ajustam o passo como se a ondulação os tomasse; em todos, o mar navega nas palavras que a relação gerou.

   Eternamente rendidos ao enlevo do mar, conservam a chama dessa estranha afeição, para sempre acesa no seu entendimento.

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