A última valsa
Olhei-o pelo canto do olho, pela desconfiança e pela dúvida. Pareceu-me capaz de provocar dor se olhado de frente. Metálico, baço, a lembrar um engenho que os conflitos exibem para matar. Cobrimos o rosto ou receamos o olhar se a incerteza nos convoca e o medo.
Passei por ele tombado entre ervas, na caldeira do plátano que o passeio desenhou, e levei comigo a sua estranheza.
A manhã, a transbordar de sol, já colorira o mundo em sua posse.
Continuei, levando pela trela um pastor alemão, que me fora oferecido por um amigo há alguns anos. Um suposto cão de guarda, que apenas se revelou capaz de dar cumprimento aos seus mais primários e genuínos desafios do instinto. O seu território e a sua afirmação plena foi sempre fora de portas, e a pretensa protecção de bens um desejo permanentemente adiado, por acessório no quadro das suas prioridades. Apenas rivais e fêmeas lhe disputavam o interesse, e nem o bizarro objecto metálico na caldeira do plátano o convocou para olfactiva avaliação.
Talvez a razão lhe assista e não à humana pretensão de domínio e manipulação.
Passeio fora com o cão no punho e a dúvida presente, a magicar saídas e a engendrar desenredo, fui pelo costumado caminho, sem que o tempo e o percurso me alijasse a carga da incerteza.
O regresso trouxe-me o retomar da visão. As coisas estavam mudadas. A bruma era mais leve e à nova luz aportou um novo olhar.
Alguém mais curioso e menos acanhado enfrentara sem receios o engenho que o entendimento primeiro amedrontara. Certamente tomara-o entre mãos, talvez o tenha observado e do reparo tenha nascido a decisão. Acedera à tampa que a distância impedira, e decerto também depressa percebera o enigma do seu conteúdo.
Porventura ousado na primeira abordagem, a surpresa macabra do que se seguiu, quiçá o tenha levado ao arremesso rápido do objecto para o chão da caldeira. Emborcada na terra, com a tampa distante, a urna já vertera parte do seu conteúdo. O vento sueste useiro em danças improváveis soprava no redor o clamor das origens e desafiava a leveza do mundo. A guarda agora precária das cinzas restantes não impediu que a música do deserto redemoínhasse a suave textura da sua finitude no interior do vaso e com ela dançasse uma última valsa.
O cão olhou-me estranho e uivou… Talvez a impaciência, talvez o enfado.
Ela chamava-se Kathleen Parker. Foi cremada em 4-2-2008, e foi atirada porventura da janela dum carro em andamento para a caldeira dum plátano, numa rua do Algarve.