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Alvor,a terra e a ria

Alvor,a terra e a ria

23
Set20

A poesia dos netos

Joaquim Morais

 

 

 

  

Ser avô é saber ler o poema

que existe em cada neto.

 

 

 

Envolve-me o silêncio e a ternura

dum sorriso de criança

que brilha na insónia.

O orvalho cintila

na doçura da imagem.

 

 

 

Há duas janelas que me assomam a vida.

Vigias fulgurantes de horizontes improváveis,

incendiaram o olhar e o dizer,

e espantaram os fantasmas da ausência.

 

 

 

 

 

Consertaram o rumo,

e as velas que há muito grivavam,

já ensaiam ténues e improváveis bolinas.

O perfume da rosa rescende o ar

e a luz que acenderam iludiu o outono

 

 

 

 

 

   Não é fácil escrever sobre os netos. O incêndio que ateiam é de tal ordem, que a inefabilidade é quase total. Posso dizer vulgaridades. Coisas que se dizem quase sempre quando se fala deles. No entanto, acho que as palavras apesar do seu virtuosismo, apenas traduzem uma pequena parte do deslumbramento.

   Enleva-me a séria ingenuidade das atitudes, das perguntas, das considerações. Surpreende-me a originalidade permanente.

   As palavras que semeei, despontaram embriões que a fala foi revelando e modelando a cada dia, com o brilho e a novidade próprias do seu temperamento. Nuas e puras surgiam melódicas e teatrais no mágico discurso.

   As palavras estiveram sempre presentes. Desde muito novo,que o seu desfrute me deu particular prazer, sendo que o seu plantio no canteiro dos netos me deu acrescida alegria. Ajudei-os a dizer nessa altura e hoje, por isso, tenho com eles a possibilidade dos diálogos e a satisfação recíproca do seu acontecer.

   As palavras, os netos e as emoções, andaram sempre de mãos dadas. Hoje como ontem e seguramente como amanhã, será assim.

   Estar junto deles e vê-los. Estar ausente e pensá-los.

   É única a chama que se acende quando nos toca o sopro dos netos.

 

23
Set20

No lugar de Figueira do Cabo.

Joaquim Morais

 

 

 

 

  

   O lugar é de casas baixas, alinhadas pela estrada que as separa. Não vão muito para além das que rasam o caminho, como se a distância as fizesse perder a condição e o fulgor. Juntas à volta da serpente de azeviche, que se prolonga para além delas, a acompanhar o mar que não vê, e curvando suave, em declive manso, enquanto as tem à sua beira.

   Brancas, de poiais algumas, e portas arrimadas, com postigos que permitem a luz e a rua, e a prosa. Com janelas de rendas, e soleiras repletas de vasos que assomam o barro e a cor.

   Cheguei com o grupo. Viemos do sul. Do chão que o mar atalha. O arco do sol a meio do trajecto que o conduz ao abismo da cor.

Para trás as arribas, o azul, e a terra que semeou a fadiga que os corpos apontam. Agora é preciso mondá-la, que há o resto do arco do sol a cumprir.

   De entre o casario rasteiro, procurámos onde golpear o cansaço, dividir o farnel, e preencher o repouso, das palavras que o silêncio e a distância, não consentiram no terreno.

   Do dizer de um morador, é feito o caminho que nos leva à taberna do lugar, onde chegámos e entrámos numa agitação de fitas coloridas a negar o mosquedo.

   Lá dentro, o apelo dos mochos a assomar sob as mesas de tampos manchados pela voracidade descuidada dos que a terra obrigou a lavouras de canseiras.

   Como tantos, nos sentámos a convocar o repouso.

   Dos bornais, as merendas a cobrir os tampos e as manchas esperançosas da gordura que avive o painel.

Atrás do balcão, uma mulher, a quem, pelo ruçado do negro traje, a morte vestiu há já algum tempo. Do lenço, soltam-se brancas madeixas que ela repõe passando a mão pela testa a obrigá-las de novo. Uma outra laçada a cingir a alvura, e o olhar a aguardar o gesto que demora na escolha.

   Decidido o vinho e o chouriço que alguém recomenda, a atenção no balcão, agora vazio, gesto suspenso, que anda em avios de contra loja a enlutada dona.

   A conversa recheia o tempo da contra loja, até que a vista permita por fim o aceno, e o vinho e o conduto nos conduzam às palavras certas, que hão-de preencher a pausa dos que a terra trouxe pela mão da fadiga e da fome, à mesa escurecida pelo unto dos anos.

   Por fim providos e com os mochos a sachar a fadiga, depressa se validam os milagres do fumeiro e da pipa. De boa cepa parece ser a pinga, e bem nutrido o bácoro que o enchido revela.

   O repasto já não é promessa, quando se nos dirige a mulher que o lenço afrouxa:

   --Se estão a gostar, se é muita a caça, e de onde somos.

   Unânimes pela positiva na comida, é a escassez que ajusta as opiniões na segunda. À ultima, é claro: somos de Alvor.

   Acende-se o olhar quando escuta o nome da terra, e os lábios desenham um sorriso. O desenho é fugaz, como se o luto não consentisse a claridade que assoma entre eles. O olhar, ainda aceso, insiste no grupo. Estou perto dela. O discurso chega dum passado de cor no traje e sorriso branco nos lábios. Pergunta se conhecemos um homem da terra que ouviu e que a memória aflora, a frequentar a taberna e a louvar o vinho. Pescador que a faina trazia a estes recantos quando a sardinha abundava. Fazia parte, dizia-lhe, (agora olhando-me), da confraria do Senhor Jesus de Alvor. Das festas em sua honra, um dos responsáveis, de nome Joaquim Pedro.

   Respondi-lhe eu, já que era a mim que olhava:

   --Conheço perfeitamente, é meu avô!

18
Set20

Quadro cinegético

Joaquim Morais

 

 

                                                                               LUPI

 

 

    Outubro bem quente. Acresce, o esforço que o acto vai exigindo. A terra seca acentua-o, a língua dos cães descreve-o, e o arfar, e a demanda do porto das exíguas sombras.

   Fragas, arbustos anãos, e o perfume das funcheiras. Moledos a permitir a terra. Combros, valados, a linguagem do mar, e um falo que persiste na memória da pedra.

   A codorniz levanta-se inesperada e célere. Ausente na fragrância do redor, a atenção compromete a função do chumbo.

   Agitam-se os cães, mas é fugaz o gesto que a canícula racha.

   Liberto a atenção do canto dos odores, e avanço no caminho do voo, raso e curto, para uns pés de vinha que assomam escádeas a passar.

   A estiagem soa sob os pés. As esgalhas tentam-me, disputam-me. Decido a ave, que a cepa espera e as passas demoram.

   Ligeiro, o pensamento não interfere no afã dos sentidos.

   Aguça-se o olhar e o silêncio adensa-se no lugar talvez.

   Subitamente, vibra a antena da cauda e o Lupi renasçe no mormaço.

   Irrecusável o eflúvio.

   Alonga-se, hirto, silencioso, grave e demorado. Trai-o a estiagem sob as patas. Aponta o focinho, os olhos inquietos, a progressão lenta. Subtil, o fluido dispersa-se, confunde-o. Busca-o agora nas ténues aragens. Retoma a fiada, agora na terra. Avança, recua, agita-se em frouxos latidos até que o cinzel da evidência tallha a escultura.

 

    

06
Set20

carta a uma professora

Joaquim Morais

   A escola primária era uma imposição, e raros os que colhiam algum prazer na sua frequência. A rua e os espaços abertos foram sempre os lugares primeiros para a brincadeira, e estavam sempre presentes do nascer ao pôr do sol, com todos os ingredientes reclamados pela gente moça. Era nesses lugares, naquela época plenos de liberdade festiva, que as exigências da idade verde encontravam eco, e, ao contrário da inércia dos bancos escolares, celebravam a vida a cada instante.

   O meu tempo de criança passado nos finais da década de cinquenta, tem lugar neste cenário de natural privilégio, e a escola acontece da primeira à terceira classe, num ambiente repressivo e sombrio, incapaz de concorrer com o que lá fora estava à minha disposição.

   Até que, chegado ao último ano da então chamada instrução primária, a novidade vem pela mão duma professora nova.

   Acabado o curso do magistério primário que lhe conferia o direito de exercer pela primeira vez o ensino, coube à Senhora Solange Maria da Palma Fernandes trabalhar com os alunos da quarta classe da escola primária de Alvor onde eu estava incluído.

   A propósito desse tempo de escola único, passado consigo, escrevi-lhe uma carta. Já há algum tempo. Guardei-a porque não sabia do seu paradeiro. Leio-a muitas vezes. Para si. Leio-a como quem dita e recorda-me o que no banco da escola escrevia ditado por si.

   Tenho-a entre as coisas que mais prezo.

   Sem saber do seu lugar de agora, decidi enviá-la para parte incerta, na ilusão do feliz acaso.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

   Cara D. Solange Maria da Palma Fernandes

 

 

 

 

   Os tesouros da infância, são sempre o resultado da vivência de sublimes trechos existenciais, numa altura em que os sentimentos emergem da forja das emoções, passando por isso a constituir referências para a vida, permanentemente cintilantes e presentes.

   Escrever-lhe, é, de alguma maneira, reencontrar-me com o pequeno tesouro que constituiu algum do meu tempo de escola, protagonizado pela figura graciosa duma professora que o pensamento amiúde aflora, e faz despontar um sorriso, uma lembrança precisa, um episódio alegre, uma vivência que a infância registou indelevelmente preciosa.

   Passaram seis décadas. Não obstante, a memória, esse écran da vida onde desfilam as imagens das pequenas felicidades que a compõem, teima em iluminar-se e revelar esse tempo de excepção, onde os dias se cumpriam sucessivamente fascinantes, ao compasso do pulsar pleno, que nove anos de vida naturalmente impunham.

   Frequentava então a quarta classe. Os três primeiros anos não tinham sido muito estimulantes, já que, as recordações que deles trazia, reflectiam, de algum modo, a repressão e os laivos de brutalidade, com que eram agraciados, os que por força das circunstâncias, tinham naturais dificuldades. Aliás uma práctica, na época acho que generalizada. Por todas as razões próprias duma criança cujo entendimento da vida se está a fazer, a metodologia expressa teria mais efeitos dissuasores, do que um despertar para a via do saber.

   É neste contexto, em finais dos anos cinquenta, princípios da década de sessenta, que a senhora, nessa altura penso que a iniciar-se na profissão, chega a esta terra, para ministrar aos alunos que comigo partilhavam a sua aula, os ensinamentos que encerravam a chamada instrução primária, ratificada depois pelo exame final.

   Desde logo, a sua figura afável e simpática espantou os nossos receios, e depressa se gerou um clima de empatia, que transformou a aula num local desejado, onde o interesse pela aprendizagem competia de igual modo com a ânsia de brincar. Foi uma sensação nova, um prazer inusitado, uma lição, que, por essencial nunca esqueci.

   Esse ano passou, iniciei os estudos liceais, e fui surpreendido pelo convite para participar na festa do seu casamento. Naturalmente sensibilizado, na medida em que me permitiam os dez ou onze anos, lá fui com um outro colega e amigo da escola, também convidado.

   Entretanto os anos passaram. Cresci; fiz-me homem; casei; tenho duas filhas , um neto e uma neta que me preenchem a vida já há alguns anos liberta do peso das obrigações profissionais, e vivo com a relativa tranquilidade que me permite ser.

   Perdi o seu contacto, mas não perdi a lembrança desse tempo. Algumas vezes, quando encontrava alguém da sua terra, perguntava se a conheciam, se sabiam do seu paradeiro, como é que estava, enfim, procurava o fio duma meada que o tempo e as circunstâncias da vida haviam enredado, mas que a vontade teimava em libertar.

   A poeira dos anos e os meandros da vida nublaram o caminho até si, mas a luz da sua presença manteve-se acesa, e continua a iluminar o menino que o homem conserva.

   Por isso aqui estou.

   Ser adulto, é também ser a criança que as recordações exigem.

 

 

 

 

Joaquim António da Costa Morais

 

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