A escola primária era uma imposição, e raros os que colhiam algum prazer na sua frequência. A rua e os espaços abertos foram sempre os lugares primeiros para a brincadeira, e estavam sempre presentes do nascer ao pôr do sol, com todos os ingredientes reclamados pela gente moça. Era nesses lugares, naquela época plenos de liberdade festiva, que as exigências da idade verde encontravam eco, e, ao contrário da inércia dos bancos escolares, celebravam a vida a cada instante.
O meu tempo de criança passado nos finais da década de cinquenta, tem lugar neste cenário de natural privilégio, e a escola acontece da primeira à terceira classe, num ambiente repressivo e sombrio, incapaz de concorrer com o que lá fora estava à minha disposição.
Até que, chegado ao último ano da então chamada instrução primária, a novidade vem pela mão duma professora nova.
Acabado o curso do magistério primário que lhe conferia o direito de exercer pela primeira vez o ensino, coube à Senhora Solange Maria da Palma Fernandes trabalhar com os alunos da quarta classe da escola primária de Alvor onde eu estava incluído.
A propósito desse tempo de escola único, passado consigo, escrevi-lhe uma carta. Já há algum tempo. Guardei-a porque não sabia do seu paradeiro. Leio-a muitas vezes. Para si. Leio-a como quem dita e recorda-me o que no banco da escola escrevia ditado por si.
Tenho-a entre as coisas que mais prezo.
Sem saber do seu lugar de agora, decidi enviá-la para parte incerta, na ilusão do feliz acaso.
Cara D. Solange Maria da Palma Fernandes
Os tesouros da infância, são sempre o resultado da vivência de sublimes trechos existenciais, numa altura em que os sentimentos emergem da forja das emoções, passando por isso a constituir referências para a vida, permanentemente cintilantes e presentes.
Escrever-lhe, é, de alguma maneira, reencontrar-me com o pequeno tesouro que constituiu algum do meu tempo de escola, protagonizado pela figura graciosa duma professora que o pensamento amiúde aflora, e faz despontar um sorriso, uma lembrança precisa, um episódio alegre, uma vivência que a infância registou indelevelmente preciosa.
Passaram seis décadas. Não obstante, a memória, esse écran da vida onde desfilam as imagens das pequenas felicidades que a compõem, teima em iluminar-se e revelar esse tempo de excepção, onde os dias se cumpriam sucessivamente fascinantes, ao compasso do pulsar pleno, que nove anos de vida naturalmente impunham.
Frequentava então a quarta classe. Os três primeiros anos não tinham sido muito estimulantes, já que, as recordações que deles trazia, reflectiam, de algum modo, a repressão e os laivos de brutalidade, com que eram agraciados, os que por força das circunstâncias, tinham naturais dificuldades. Aliás uma práctica, na época acho que generalizada. Por todas as razões próprias duma criança cujo entendimento da vida se está a fazer, a metodologia expressa teria mais efeitos dissuasores, do que um despertar para a via do saber.
É neste contexto, em finais dos anos cinquenta, princípios da década de sessenta, que a senhora, nessa altura penso que a iniciar-se na profissão, chega a esta terra, para ministrar aos alunos que comigo partilhavam a sua aula, os ensinamentos que encerravam a chamada instrução primária, ratificada depois pelo exame final.
Desde logo, a sua figura afável e simpática espantou os nossos receios, e depressa se gerou um clima de empatia, que transformou a aula num local desejado, onde o interesse pela aprendizagem competia de igual modo com a ânsia de brincar. Foi uma sensação nova, um prazer inusitado, uma lição, que, por essencial nunca esqueci.
Esse ano passou, iniciei os estudos liceais, e fui surpreendido pelo convite para participar na festa do seu casamento. Naturalmente sensibilizado, na medida em que me permitiam os dez ou onze anos, lá fui com um outro colega e amigo da escola, também convidado.
Entretanto os anos passaram. Cresci; fiz-me homem; casei; tenho duas filhas , um neto e uma neta que me preenchem a vida já há alguns anos liberta do peso das obrigações profissionais, e vivo com a relativa tranquilidade que me permite ser.
Perdi o seu contacto, mas não perdi a lembrança desse tempo. Algumas vezes, quando encontrava alguém da sua terra, perguntava se a conheciam, se sabiam do seu paradeiro, como é que estava, enfim, procurava o fio duma meada que o tempo e as circunstâncias da vida haviam enredado, mas que a vontade teimava em libertar.
A poeira dos anos e os meandros da vida nublaram o caminho até si, mas a luz da sua presença manteve-se acesa, e continua a iluminar o menino que o homem conserva.
Por isso aqui estou.
Ser adulto, é também ser a criança que as recordações exigem.
Joaquim António da Costa Morais