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Alvor,a terra e a ria

Alvor,a terra e a ria

30
Jul20

Sentinela Flutuante

Joaquim Morais

         

   O salva-vidas de Alvor é um barco com uma enorme esteira simbólica que desencadeia emoções fortes e é um repositório de episódios marcantes na história, algumas vezes trágica, dos pescadores da nossa terra.

                                       

 

 

                                                      Centro de Interpretação vai preservar a memória do barco ...

 

                                                                  

                                    

Restaurando a esperança

 

 

 

 

 

Sem preâmbulos, nem avisos,

a várzea oceânica abriu-se

num temporal desfeito.

Em terra, os maus pensamentos

depressa afiam os aguilhões

da ansiedade e do desespero.

Prestes se aparelha no cais

o guardião da existência,

e doze homens enfrentam

o turbilhão do abismo

restaurando a esperança.

Na cordilheira movediça

em que as alfaias de Eolo

converteram a barra,

remam ao compasso da angústia.

Uma a uma, as embarcações

demandam a infernal passagem.

Rebentação e vento,

acompanham gritos e preces

numa sinfonia de desespero.

Atenta e solidária,

a sentinela flutuante balouça,

ao ritmo das convulsões elementares.

Na praia, alguém de negro vestido,

assiste alternando o olhar

entre os céus e o mar revolto.

 

 

 

         

29
Jul20

Caminhos para a vida

Joaquim Morais


       

   As palavras deste pequeno texto, lembram e registam a história de mulheres de Alvor, que tal como outras do concelho e limítrofes, teimaram a vida, com a coragem e o arreganho que sempre as acompanharam, apesar das dificuldades.

 

 

                                            OPERÁRIAS CONSERVEIRAS



   O barulho das sirenes provocava a habitual agitação nas mulheres, que se desdobravam para concluir as tarefas domésticas mais urgentes.

   E era vê-las numa roda-viva, a preparar o almoço para o homem que labutava no mar, a alindar os filhos para a escola, a arrumar e a limpar a casa, para depois, numa correria em resposta à chamada das sirenes, se porem a caminho da vila.

   Os sons diferentes das sirenes permitiam identificar as fábricas que os emitiam, e responder à chamada as operárias que nelas trabalhavam.

   De carnes secas, consumidas pela voracidade de ralações e canseiras, caminhavam leves, ágeis e velozes, gastando o tempo com diálogos recheados de impropérios e dichotes, eufemismando a trágica realidade duma vida com razões de sobra para o desânimo e para a descrença totais. Caminhantes em busca dum destino menos tormentoso para as suas vidas e de seus familiares, açoitados desde sempre pelos ventos da miséria, da insegurança e da instabilidade.

   Em tempos de abundante pescaria, a estrada da vila pejava-se de grupos de mulheres, que alegravam e coloriam o trajecto com a irreverência e o pitoresco das suas atitudes.

   Na fábrica, dirigidas pelo autoritarismo de encarregados e mestres, trabalhavam sempre e apesar de tudo, com alegre disposição, um dito mordaz e gracioso na boca, e um sorriso do tamanho das inquietações que povoavam o seu dia a dia.

   Missão cumprida, regressavam palmilhando os quilómetros que as separavam dos lares e da família, trazendo no bolso o peso de mais alguns tostões, que suavizariam as dificuldades, inquilino com quem compartilhavam a casa desde sempre.

   Mulheres de rija têmpera, que marcaram uma época, que fizeram história contribuindo para o florescimento duma indústria que teve um peso considerável no panorama económico do Algarve, mas que, acima de tudo, afirmaram a coragem, a persistência, e a capacidade de sofrimento das mulheres da nossa terra.

27
Jul20

As vinhas que assomavam ao mar

Joaquim Morais

     Nunca tive a procupação de saber exactamente o seu número, mas eram muitas as adegas que Alvor tinha. Talvez mais de uma dezena. Ainda conheci muitas delas, e tive o privilégio de saborear o vinho nelas produzido. Estamos a falar de há sessenta anos atrás, portanto duma época onde a sua dimensão e abertura ao mundo em nada tinha a ver com os tempos actuais. Era uma aldeia de pescadores, com pequenas hortas em seu redor, e sem expressão habitacional. A ultima adega de que tenho memória é de, talvez há trinta anos atrás. As uvas eram castas da região produzidas em terrenos de areia, soalheiros, junto ao mar e que originavam néctares duma qualidade excepcional.

   As romarias às adegas em tempos de vinho novo, eram com as festas religiosas, a razão de afluência de muita gente dos arredores e quebra da permanente monotonia da aldeia. 

   A prodigiosa memória do meu pai, à beira dos noventa e três anos, permitiu-me acrescentar a este apontamento o nome dos homens que nas décadas de quarenta, cinquenta e sessenta, tiveram adegas em Alvor com fabrico próprio. A relação é aleatória, sem a particularidade da ordem cronológica. De referir também que já nenhum está entre nós.

  Francisco Fernandes, Joaquim Paulo, Francisco Faustino, José Mendes(o marreco), Eduardo, Francisco Mendes(alvanilho), Manuel Franco, Joaquim Martins,Francisco Domingos, José Cartaxo, Soares, Joaquim Catarino, Francisco Paulo Pereira, António Santana, António Pedro.

   Neste registo fica também a devida homenagem a todos eles                       

 

                                                                  


                                            TEMPO DE VINDIMAS



   Rompia o dia. O sol dardejava os primeiros raios de luz num céu sem nuvens, onde o brilho da estrela d´Alva ainda persistia. Levante radioso e fresco, que exaltava os odores discretos dos figos, dos maracotões e das uvas, que bandos de pássaros nervosamente depenicavam. Nas encostas rochosas que nos levavam à praia, rompiam fugidios, coelhos bravos que rapidamente se escondiam nas tocas escavadas na terra. Também aqui, os aromas do funcho, das aroeiras, do rosmaninho e do tomilho, misturavam-se perfumando o ar fresco da manhã silenciosa, onde apenas se faziam ouvir o marulhar das águas, o canto dos pássaros e o grasnar de gaivotas que enxameavam rochedos meio submersos. Bandos de pombos bravos saíam de fojos que as salgadeiras escondiam e disfarçavam, voando mais para o interior em busca de alimento. Por entre as videiras de troncos entrecruzados formando figuras grotescas e vestidas de folhagem dourada onde assomavam negros cachos de suculentas uvas, bandos de perdigotos ensaiavam correrias na peugada da mãe que vigiava todos os movimentos. Raramente, uma raposa astuta, mais descuidada, passava ligeira a caminho da toca, depois duma noite de rapina num galinheiro das redondezas.

   Mês de Setembro, tempo de vindimas. Nos areais sobranceiros ao mar que a falésia contemplava, ranchos de homens e mulheres separavam das cepas cachos reluzentes de uvas que o calor tórrido dum Verão que persistia se encarregara de amadurecer. De cabeças cobertas por grandes chapéus de palha, as mulheres movimentavam-se com desenvoltura, enchendo pequenas cestas de vime, para, de seguida, deitarem em enormes canastras, que homens cobertos de serapilheiras a que deram previamente a forma de capuz, carregavam para grandes dornas montadas em carros de besta.

   À medida que o sol subia no horizonte, o calor tornava-se insuportável, obrigando a uma pausa à sombra de uma frondosa figueira, onde havia sempre uma enfusa de água fresca para dessedentar toda a gente.

   Grilos e cigarras enchiam o ar com o seu canto arrastado e monocórdico. As vespas atraídas pelo néctar açucarado que escorria das cestas pejadas de uvas, esvoaçavam em volta das mulheres zumbindo ameaçadoras. Por vezes, ouvia-se o grito de alguém mais assustadiço que, na progressão, fizera levantar uma lebre que quase fora pisada na cama. A passarada refugiara-se do calor em cerradas e ramudas figueiras e nas aroeiras que enchiam combros e valados. Era uma canícula que só o descambar do sol poderia atenuar.

   À medida que a tarde avançava, a temperatura ia-se tornando mais suportável, a luminosidade esbatia-se, e havia um retomar da actividade em todos os seres até que o sol voltasse a esconder-se no horizonte poente.

   O dia chegava ao fim. Nas adegas, já tudo havia sido preparado para iniciar um ritual de séculos que daria sequência ao trabalho da vindima. Daí a alguns dias fermentaria o mosto nos lagares e a natureza voltaria a cumprir-se.

26
Jul20

As melhores amêijoas do mundo

Joaquim Morais

           

 

 

 

    Dizem muitos dos que nos visitam e que já tiveram o privilégio de as provar, estarem num nível de sabor, que as pode colocar entre as melhores do planeta. Eu, cá por mim, que não tenho elementos de prova tão abrangentes, atrevo-me mesmo assim, a subscrever essas opiniões. Apenas me conduzem os argumentos do tempo, e o dever de afirmar, que apesar de já algumas décadas a saboreá-las, a hipótese de té-las na mesa põe sempre em alvoroço as minhas papilas gustativas.  

 

                                                              

 

 

 

                                                   Mariscar a amêijoa

 

 

 

   A luz da alvorada revela formas espectrais, movimentando-se nos baixios que a vazante deixou a descoberto. Pé ante pé, deslocam-se cabisbaixos, perscrutando atentamente o terreno à sua volta na busca de um sinal que permita localizar o tão apetecido bivalve. São os mariscadores da amêijoa, que, aos primeiros raios de luz, iniciam esta ancestral actividade de que são excelentes intérpretes.

   Ainda noite cerrada, costumam juntar-se para “matar o bicho” na taberna do José Morgadinho. É aí, com golpes de medronho e traçadinho, que em tempos idos acompanhavam com batata doce que uma caldeira bojuda ia parindo, que o ritual da matança se cumpre e se prefacia o dia de trabalho desta gente, cujos horizontes se medem na distância entre as vistas e o terreno que pisam no exercício da actividade que abraçaram. Com a alma aquecida pelo calor do álcool, conversam acerca da safra do dia anterior num linguajar característico, feito de entoações que podem sugerir discussão acesa, mas que não passam dum modo muito peculiar de se expressarem e comunicarem.

   Assim que se esboça a claridade nascente, aí vão eles de cesto no antebraço: uns passando de barco para o rio da outra banda, outros bordejando a pé a ria pela baixa mar, junto aos morraçais lamacentos, em direcção às cabeças ao longo da Quinta da Rocha, ou a poente dos torrões.

   A ria rumoreja a vazante nos inúmeros e pequenos regatos que a preia mar generosamente preenchera. A baixa mar matutina é indicadora do crescimento das marés, cuja amplitude se altera ao ritmo da evolução lunar. Bandos de maçaricos correm nervosos, debicando a lama dos baixios onde ainda persistem pequenas poças de água salgada. O crepúsculo matutino, traz consigo bandos de gaivotas que os rochedos do litoral abrigaram durante a noite e que a montra da manhã exibe num ritual de som e movimento fantástico. O homem, alheado da magnificência que o rodeia, interpreta a rotina da vida que as circunstâncias conceberam.

   Munidos de uma sachola trapezoidal que manobram com habilidade e ligeireza, vão escavando a superfície, deixando atrás de si inúmeras pequenas covas, que correspondem a outras tantas amêijoas, denunciadas apenas por ténues sinais, que, apesar disso, não escapam às vistas experimentadas destes mariscadores. Conduzidos por uma intuição natural inata, aliada a uma astúcia que a experiência modelou em função das necessidades, estes homens torneiam com mestria as dificuldades naturais, que, frequentemente,estorvam a localização do saboroso bivalve. Os sinais indicadores da presença da amêijoa nem sempre são iguais. Se por vezes é relativamente fácil a sua localização, dada a definição exacta das marcas que a denunciam, noutras, localizá-la é o resultado do exercício conjunto da experiência e dessa intuição especial, que é apenas privilégio de uma minoria.

   As formas diferentes como se apresenta o terreno que tem este bivalve como inquilino, dependem essencialmente das condições atmosféricas. É nos dias calmos e quentes de Verão em que a baixa mar ocorre durante o princípio da manhã, que mais perceptível se torna, o chamado “olho da amêijoa”. Nestas condições, a amêijoa apresenta-se de “olho” bem aberto, e o seu aspecto é de dois orifícios oblíquos, convergentes num ponto que se situa aproximadamente entre cinco e quinze centímetros de profundidade, e cujo afastamento à superfície oscila entre um e dez centímetros. O ponto de convergência destes dois orifícios é naturalmente a própria amêijoa. Fora destas condições atmosféricas consideradas ideais, a amêijoa está “amuada”, manifestando-se o “amuo” de várias maneiras: desde a existência visível de apenas um dos dois orifícios, até à quase total inexistência de sinais identificadores, passando por subtis indícios que mais não são do que ténues alterações no terreno, que passam despercebidas à grande maioria das pessoas. Durante o Inverno, com o tempo frio e chuvoso, a ausência de sinais obriga, por vezes, a que os mariscadores recorram ao método da raspada, ou da cavada que consiste em procurar, raspando ou cavando a eito num determinado terreno, conduzidos apenas por uma motivação meio aleatória meio intuitiva.

   A apanha da amêijoa, pode também processar-se utilizando a técnica do arrasto; espécie de ganchorra constituída por uma armação em ferro, a que se encontra ligado um saco de rede e em cuja parte inferior existe uma fieira de dentes. Um cabo de madeira, permite ao homem cravar este engenho na lama e, apoiado na clavícula, arrastá-lo numa área previamente definida. Esta operação, é feita naturalmente dentro de água, sendo directamente efectuada pelo homem se a profundidade o permitir, ou de barco no caso contrário. Para além do arrasto, é frequente também em regatos pouco profundos, um outro método, que consiste em esgravatar com as mãos directamente na lama, ou na areia dos inúmeros pequenos cursos de água em que a ria se subdivide, na busca desse saboroso bivalve.

   Para além de todos os processos aqui apontados, torna-se necessário e imprescindível que haja uma predisposição e uma tendência natural para o exercício desta actividade; condições que, a não existirem, condena ao fracasso qualquer tentativa de iniciação e continuidade nesta arte. Esta prática é desenvolvida em ligação estreita com um ambiente natural único, cuja influência em termos afectivos acabará sempre por contagiar todos aqueles que com ele estabeleçam contactos regulares, fazendo ao mesmo tempo despertar sentimentos de alegria íntima, só possíveis numa relação aberta com o meio original, de que nos temos vindo progressivamente a afastar.

 

 

25
Jul20

as árvores explicam o vento

Joaquim Morais

                                  

 

As árvores explicam o vento

 

 

 

 

Nada mais que sopro.

Subtileza fluida

Que respira o céu e a terra

E diz do tempo e da lonjura

Na sua voz de asa

Que as árvores explicam.

 

 

 

 

 

 

Íntimas celebrações

 

 

Há uma luz que derrama o céu

Pelas margens do olhar

E vai esculpindo o mundo

Com o cinzel da sua ofuscante claridade.

A festa dos sentidos

Prestes dá lugar à sublime liturgia

Das íntimas celebrações.

 

 

 

 

 

 

 

Um novo amanhecer

 

 

 

Agora que anoitece

É desmedida a ânsia de cantar.

Em cada verso

Ensaio a claridade,

Construo um espantalho de palavras

E invento um novo amanhecer.

 

 

 

 

 

Biografia telúrica

 

 

 

 

Os olhos ditam-me a pedra:

Súbita, informe e tosca.

Decido demorar-me nela,

Habitá-la sem pressas;

Fascina-me a sua nudez exacta,

A arte elementar dos seus perfis,

O enigma da sua biografia telúrica.

E assim, vou decifrando

As suas singulares esculturas,

Até à pétala que o tempo desfolhou.

 

 

 

Amanhecer na ria

 

 

 

O silêncio a exaltar cintilantes rumores

Por entre os despojos da noite.

Um embrião de luz

A descerrar as cortinas do dia.

A pincelar a cor. A tecer o vislumbre

E o espanto num dorso desnudado

Pela respiração do mar.

 

 

 

 

 

 

                            

A subtileza das aragens

 

 

 

Os olhos anunciam o fogo e o azul

Por entre a agitação vegetal

Que segreda a brisa.

A luz acende-se nos muros

E o orvalho regressa

À ágil subtileza das aragens

 

 

 

 

As palavras e o verso

 

 

Quero o céu e o mar

E o sol a escrever a poesia do sal.

Quero a alma do ar a açoitar-me,

E as éguas de espuma,

E a volúpia da chuva,

E a terra a inundar-me.

Quero colher do verde

A luz que o acende.

Quero as palavras e o verso

E o mar que as navegue.

 

    

Andorinhas

 

 

 

 

As andorinhas plantam a ria no beiral.

Trazem-na no bico

Suspensa da terra e dos beijos

Com que amanham

a leira branca do futuro.

 

 

                          

                                 Desejo preciso

 

 

 

Com cânticos de algas e de ventos

O oceano exalta o reencontro

Enquanto a musa inquieta dos sentidos

Sugere ansiosa pausa

E a terra celebra o orgulho da raíz.

É uma gota de universo,

Talvez um jardim,

Será decerto um poema,

um desejo preciso,

Uma janela clara e alucinante

Onde o olhar se afunda,

As gaivotas florescem

E o mar respira o sopro das luas.

 

 

 

 

 

 

Olhar a lua

 

 

O crescente da lua

Encheu o olhar da Rita.

Posso? Posso agarrar a lua?

Sim! Claro!

Ergueu os braços

Na direcção da luz e disse:

- Já está!

 

 

 

 

 

Memória de feto

 

 

A bonança dita versos

De sedosa harmonia

Que o silêncio depura.

Ancorado na imensidão do poema,

Flutuo a maciez das águas

Na frágil robustez

Dum útero de tábuas e de sal.

Envolto por âmnio elementar

Reacende-se em mim o lume dos princípios.

Cintilações de volúpia iluminam

Os recantos da memória.

Experimento o prazer original

Embalado por este poema de quietude.

 

 

 

 

O cais do poema

 

 

 

Ditá-las-ão as nuvens

Ou a aragem que as toca.

Talvez a chuva, um sorriso,

A chama duma rosa,

O fulgor das espigas.

Porventura a lâmpada dum muro,

A geografia dum rosto.

Soprá-las-à o ar

Até ao cais do poema

De onde se parte

Para qualquer viagem

 

 

 

 

O sol das laranjas

 

 

 

 

Na página verde onde brilha

O sol das laranjas,

As danças do vento recortam o azul

Enquanto um pássaro chilreia a inquietação

Por entre um poema de versos

Brancos a transbordar de abelhas.

O canto nasce do silêncio.

 

 

 

 

O linho das palavras

 

 

 

Resgatar o barro que a fundura cala;

Provar a flor da pedra

E o lume das cinzas.

Beber o mar em cada fonte

E tecer o mundo

Com o linho das palavras.

 

 

 

 

 

 

 

Uma ideia de mar

 

 

Um coração imenso

Numa concha de terra.

Um desfile de flores que exaltam o sol

Pelas alamedas do vento

E se incendeiam numa praia de beijos.

 

 

 

 

Diálogos

 

 

 

A silenciosa coreografia

Do instinto na vertigem dos voos

Que a terra respira;

No imóvel desafio de asas

À crispação do tempo;

No deslizar suave pelas encostas azuis

Dum céu ondulado de horizontes verdes.

Sobre o cais, sereno, um diálogo

De asas e de vento exalta a eternidade

Em cada instante.

 

 

 

 

 

 

Apenas mar

 

 

Apenas mar.

Apenas uma sílaba.

Poema sóbrio, exemplar,

Que escrevo na página do olhar,

E em cada dia,

Tão pequenino,

Ouso soletrar.

                                

 

                               

                                 A palavra exacta

 

 

 

Uma palavra que brilhe para além

Das suas prosaicas fronteiras;

Que ateie a fogueira dos espíritos 

E amanse os ventos que a governam.

Que a sua música desperte

A graça de quem ouve e o seu silêncio

A musa de quem lê.

Uma palavra nua e pobre;

Liberta do jugo da retórica;

Que seja semente e flor e fruto,

E apenas se cumpra.

24
Jul20

A minha terra desce para o mar

Joaquim Morais

 

 

 

 

 

 

As casas erguiam-se dos rodapés cinzentos,

recortadas pelo ocre solar de barras e umbrais.

A luz passeava-se refulgindo carícias

na brancura viva das fachadas térreas.

A rua cheirava a terra.

Os meninos percebiam-na

e tinham com ela uma relação íntima,

uma cumplicidade espontânea.

Havia pregões nas ruas.

Havia flores nos quintais

com alegretes caiados onde cresciam

malmequeres que os amantes desfolhavam.

A minha terra era branca

e descia para o mar.

A minha terra... ainda desce para o mar.

24
Jul20

um modo de ser que o tempo apagou

Joaquim Morais

 

Minha terra dos pregões,

das récitas,

dos cantares,

das crenças, superstições,

e dos jogos populares.

 

 

 

 

Minha terra de pomares,

de hortejos e vinhedos,

das praias,

do mar azul,

dos arraiais e folguedos.

 

 

 

Minha terra das chufas,

dos impropérios,

do jeito rude e fagueiro,

das festas, das procissões,

e do fato domingueiro.

 

 

 

 

Minha terra das descascas,

e bailaricos na eira,

dos mastros

p’lo S. João,

e do saltar a fogueira.

 

 

 

 

 

Minha terra da empreita,

dos bordados,

e das rendas,

dos bilros e bastidores,

das preces e das oferendas.

 

 

 

 

Minha terra de brancura,

dos poiais e barras vivas,

das casas simples,

caiadas,

e das janelas floridas.

 

 

 

 

Minha terra de mil brigas,

disputas e mexericos,

de enredos,

e de intrigas,

de sortes e namoricos.

 

 

 

 

Minha terra dos serões,

dos milhos e do xerém,

do vinho novo,

das mós,

dos meios reis e do vintém

 

 

 

 

Minha terra dos presépios,

com figuras de encantar,

do natal simples,

e belo,

e das canções de embalar

 

 

 

 

minha terra de magia,

de rezas e de feitiços,

das bruxas,

dos lobisomens,

dos medos e das crendices.

 

 

 

 

Minha terra de poesia,

e das noites

de luar,

do cheiro da maresia,

e das histórias de pasmar.

 

 

24
Jul20

Desejo de partilha

Joaquim Morais

  

  

   Alvor é uma terra onde as mudanças aconteceram demasiado depressa. A rapidez das alterações e a surpresa da novidade,entusiasmou muita gente, principalmente jovens, levando a situações comprometedoras do entendimento das realidades culturais que os antecederam.

   A actividade turística com todos os benefícios económicos que trouxe foi também responsável por um fenómeno de aculturação evidente e difícil de contrariar. Os jovens vivem uma espécie de deriva identitária, pairando entre o desconhecimento quase total acerca das origens, tradições e modos de ser da comunidade onde estão inseridos e a influência da diversidade cultural de quem nos visita.

   Se Alvor ainda mantém, apesar de algumas transformações, muito do seu património paisagístico e das suas edificações de referência que nos tocam a vista e o orgulho, saber do passado em toda a riqueza da actividade humana, seria um contributo interessante para nos ajudar a ser cidadãos naturais deste lugar privilegiado.

   Depois dos textos introdutórios, que, de alguma maneira, apontam ao título do blogue, é minha intenção continuar a privilegiar este lugar em notas futuras.Unido por fortes laços afectivos que a relação gerou, sou quase sempre levado pelas palavras em sua direcção. Dizer dela aquilo que o desejo e as circunstâncias conjugam, tem sido uma forma de festejá-la e de deixar testemunho do prazer que as suas singularidades me têm proporcionado ao longo da vida. Irei continuar a fazê-lo nesta janela, partilhando as imagens que a sua realidade me suscita.

21
Jul20

Ria de sublimes afectos

Joaquim Morais

     Durante o tempo em que os nossos sentidos se ocupam com agitado interesse na pesquisa e no conhecimento do mundo que nos rodeia, a vida revela-se particularmente dominadora e absorvente, e quase todas as nossas acções se subordinam à fascinante soberania do instinto, singular e fiel aliado da aventura e da descoberta. Nessa altura, tal como hoje, tive o privilégio de viver em comunhão estreita com uma natureza onde o meio aquático predominava. Pelas janelas da casa onde nasci entrava o mar, que cedo passou também a fazer parte dos horizontes do menino que nela crescia. Dos caminhos da terra que aos poucos ia conhecendo, eram os que me levavam para perto da água os mais trilhados. Desde muito novo, o mar e a ria passaram a ocupar uma parte significativa dos meus pensamentos, e suscitaram o aparecimento de qualquer coisa para mim desconhecida até então, que tocava particularmente o território dos sentimentos e era duma originalidade deslumbrante. Foi aí que despertaram as primeiras emoções, e naturalmente se foi exercitando e apurando o desempenho dos sentidos. Ria de sublimes afectos que descobri e aprendi, e que no silêncio da sua linguagem simbólica me fez cúmplice dos seus mistérios. Testemunhei a excelência do seu acontecer, a magnífica versatilidade da sua fisionomia, a placidez dos seus remansos, o pulsar suave das suas marés. Serenamente fui construindo uma relação única que me tocava cada vez mais. Sem formalidades inúteis nem espaventosos protocolos, a natureza ia-me ditando os preceitos elementares duma relação original. Sem calculismos nem obscuros interesses, fui com ela estabelecendo um pacto de solidariedade, até que dela me irmanei. Uma fraternidade que enraíza num diálogo silencioso entre o coração e os seus elementos, que o tempo se encarregou de consolidar e de fortalecer.

   Uma terra com o oceano ao fundo e a ria a seus pés: um destino de mar; uma promessa de vida; um irresistível apelo à memória mais profunda das vivências comuns; o doce e indelével sortilégio duma ligação que a minha vida festeja em cada instante. Hoje, como ontem, o apego a este jardim de águas vivas é uma realidade que me excita. A sua visão é um bálsamo e estar no seu seio é ficar próximo duma dimensão que sinto extravasar a minha efémera humanidade.

   Que lugar é este que suscita tais sentimentos? Que tem ele de especial para desencadear esta serena inquietação?

20
Jul20

A Ria

Joaquim Morais

 

 

Aos pés da terra, que cortejou desde sempre com o encanto irresistível dos seus argumentos, estende-se a ria que tem o seu nome. Resultante da confluência de quatro braços de água principais, que são as ribeiras de Odeáxere, Arão, Farelo e Torre, espraia-se numa vasta área separada do oceano por um cordão de praia e dunas, apenas interrompido num estreito canal, a barra, porta aberta para o mar, afinal origem e destino das gentes desta terra. Foi esta ria, feita do misticismo que as hesitações da história foram urdindo, que teria provavelmente constituído a razão primeira do desejo humano de instalar-se, e estabelecer o embrião comunitário, fonte de toda a evolução por que passou, até aos nossos dias. Duma generosidade quase sem limites ainda hoje, adivinha-se as suas potencialidades em épocas onde se reclamava pouco mais do que a sobrevivência, num ambiente que o carácter primário da acção humana não alterava substancialmente.

   A geografia dinâmica do seu curso, operada pelo engenho de correntes e marés, oferece-lhe uma mais valia estética rara e preciosa. Inúmeros pequenos regatos, sulcam os baixios, teimando a ria, nas vazantes que alimentam a sofreguidão oceânica. Na baixa mar, despida pelo refluxo da maré que a virilidade sideral ciclicamente impõe, a ria mostra-se na intimidade da sua nudez quase completa e presenteia o homem com uma diversidade biológica ímpar. Os bancos de areia e lama, são percorridos por bandos de aves migratórias, que aqui encontram as condições elementares de sobrevivência para a residência temporária a que as obriga as rotas do instinto. Os sapais, as arribas, as dunas e a terra que gerou, envolvem-na num abraço estreito, comungando em silêncio da originalidade dos rituais que são a sua essência. A maré viva, reflecte a pujança oceânica e a aliança cósmica que preside à prodigalidade do acto. É uma espécie de excesso deslumbrante e mágico, um respirar profundo do mar que entra terra adentro, marulhando segredos e carícias pelas casas e pelas gentes que traz presas nas malhas dos seus encantos.

   Local de silêncio e de contemplação, a ria desperta-nos a dimensão espiritual, e convida-nos a uma reflexão que facilmente ultrapassa as fronteiras da superficialidade, e permite-nos a constatação duma realidade mais próxima da nossa condição autêntica.

   É neste lugar fantástico, outrora povoado por gerações de homens e mulheres que a bruma dos anos mais longínquos foi transformando em figuras cuja obscuridade reclama os favores da imaginação, que se encontra ainda instalada uma já diminuta comunidade de pescadores, vivendo em estreita ligação com o mar e com a ria e pautando a sua vida pelos recursos que ambos, apesar das agressões, continuam generosamente a oferecer.

 

 

 

 

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